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6.2 Verbo dar Material

6.2.1 Verbo dar transformativo de extensão

6.2.1.6 O termo [-transferível]

Nas duas seções anteriores, foram apresentadas as opções dependentes do termo [+transferível]. Nesta seção serão apresentadas as opções dependentes do termo [-transferível]. As orações associadas a esse termo dispõem das funções Processo, Meio e Agente não condizentes com as regras de realização descritas por Hasan (1996) para o termo [disposição]. As orações (90) e (91) são exemplos associados ao termo [-transferível]:

(90) como tudo que eu faço / é com muita força / muito afinco / muita responsabilidade // fiz pa agradar o professor e a todos / né // aí ele me deu cem no estágio / né // (bfammn34) (91) o / garçom lá / e' falou / No' // Deus deu dinheiro ocês / porque / que apetite cês têm //

(bfamdl17)

Analisando a oração (90), percebe-se que o participante na função de Meio não é um bem alienável que sofreu uma mudança de localização – não se pode dizer que o professor pegou a nota 100 em algum lugar e a deu para a aluna. Em (91), por seu turno, não se tem a presença de um participante humano, pessoa ou instituição na função de Agente. Dessa forma, as três regras de realização de Hasan (1996, p. 76-77) não se aplicam a essas orações: “1. Processo Material: Evento; Evento: mudança de localização do Meio. 2. Meio: Ente; Ente: objeto alienável. 3. Agente: Ente; Ente: humano, pessoa ou instituição”. Há de se concordar, no entanto, que as orações (90) e (91) envolvem o ganho de algo por parte de um participante beneficiário, como atestado nas reexpressões em (92) e (93), e que a oração relacional correspondente é de natureza possessiva, como apontado nas reexpressões (94) e (95).

(92) Ganhei 100 no estágio.

(93) Ganhei esse dinheiro do meu Deus. (94) Tenho/estou com cem no estágio.

(95) Tenho/estou com (muito/esse) dinheiro (que meu Deus me deu).

Por considerar essas orações como sendo do tipo [extensão], então as três regras de realização apontadas por Hasan (1996) para o termo [disposição] são associadas apenas ao termo [+transferível], e não a todo o sistema de ACESSO, conforme proposto pela autora. Para o termo [-transferível], o Ator pode ser humano, instituição ou divindade; o Meio, embora possa

Corpus não é no que é gramatical e agramatical, mas no que é comum e incomum” (the focus of Corpus Linguistics is not on what is grammatical and ungrammatical in a language, but what is common and uncommon).

ter um caráter alienável (como dinheiro), sempre apresentará restrição quanto à locomoção, sendo verificada a impossibilidade de orações em que o Recebedor e o Ator se permutam: *vocês deram o dinheiro de volta para Deus; *a aluna deu o cem de volta para o professor. Em outras palavras, aqui deve-se ficar claro que, embora a natureza dos participantes nas funções de Ator e Meta seja diferente quando diante do termo [-transferível], ainda assim tem- se uma configuração transitiva que implica um Processo Material transformativo de extensão. Aqui vale a ideia da indeterminação sistêmica: orações associadas ao termo [-transferível], como (90) e (91), fogem do polo prototípico, espaço ocupado por orações do tipo [+transferível], principalmente aquelas dotadas do participante [Recebedor], como a mãe da

Fafica vai dar o fogão [de presente] [para os noivos] (bfamcv02).

As orações do tipo [-transferível] podem ser de dois tipos: [poder] e [parte do corpo]. No primeiro caso tem-se a concessão do que é representado na função de Meta. O participante na função de Meta pode ser uma substância corpórea (por exemplo, dinheiro) ou incorpórea (como, por exemplo, nota avaliativa e anos de vida). No C-ORAL-BRASIL, os exemplos encontrados para a formação dessa categoria envolvem a concessão de dinheiro, anos de vida e notas de atividades acadêmicas. As orações seguintes ilustram isso:

(96) como tudo que eu faço / é com muita força / muito afinco / muita responsabilidade // fiz pa agradar o professor e a todos / né // aí ele me deu cem no estágio / né // (bfammn34) (97) o / garçom lá / e' falou / No' // Deus deu dinheiro ocês / porque / que apetite cês têm //

(bfamdl17)

(98) aí / essa mesma entidade / pegou e / fez um negócio em mim / que a gente chama de “amarrar o santo” // e falou que / ia dar mais sete anos [de vida] pra mim // (bfammn32)

Analisando esses exemplos, nota-se que o Ator (professor, Deus e entidade) é dotado de algum poder que o habilita à concessão da Meta. Em alguns casos, a experiência tratada nas orações acima poderia ser representada sem se conferir poder ao participante na função de Ator, mas isso só seria feito por meio da troca do verbo dar e, consequentemente, também, do tipo de participante. O exemplo (96), por exemplo, poderia ser representado como ...aí eu tirei cem

no estágio, maneira de representação que já lançaria mérito sobre o aluno115.

115 É possível imaginar que, no meio educacional, caso um aluno queira dizer qual a nota de uma atividade avaliativa do tipo objetiva (do tipo que não envolve qualquer grau de subjetividade por parte do professor no ato da correção), seja conduzido a optar pela escolha de uma oração com um processo realizado pela forma verbal tirar, em contraposição a dar: tirei 10 na prova. Isso se dá porque, diante de uma prova objetiva, o poder do professor seria minimizado, sendo o seu papel reservado ao de reproduzir uma nota cuja identificação poderia ser feita até mesmo por um sistema automatizado.

O endereço sistêmico [-transferível: poder] somente se combina com o endereço [recebedor: inerente] do sistema de RECEPÇÃO. Há, no entanto, uma diferença: sendo o Ator uma divindade, é possível apenas a opção [não-reflexivo] – Deus deu dinheiro para vocês =>

*Deus deu dinheiro para si mesmo; a entidade ia dar mais sete anos de vida pra mim => *a entidade deu mais sete anos de vida para si mesmo; por outro lado, não sendo o Ator uma

divindade, são possíveis as duas opções: ele me deu cem no estágio [não-reflexivo] => o

professor deu cem para si mesmo na avaliação docente [reflexivo]116. Por isso, o termo [poder] é condição de entrada para o sistema com as opções [+divino] e [-divino].

A outra opção dependente do termo [-transferível] é [parte do corpo]. O próprio nome atribuído ao termo já demonstra que o Ente constituinte da função de Meio deve representar parte do corpo e, portanto, apenas um ser animado pode ser o participante na função de Ator. As orações (99) e (100) estão associadas a essa opção:

(99) aí peguei / deixei o carro no pé do morro / e fui subindo / né / e pa poder subir / e fazer essas menina + nu podia dar colo pa &n [/2] pra Hortência nem pa Mariana / né // Cíntia nu ia pedir colo mesmo / né // (bfammn17)

(100) te dou meu braço de presente // me <tatua> // (bpubdl09)

Da mesma forma que as orações (90) e (91), estas também podem ser reexpressas por meio dos verbos ganhar e/ou receber, como visto em (101) e (102), e possuem correspondentes do tipo relacional possessivo (reexpressões (103) e (104)). A permuta dos participantes Ator e Recebedor, também, não é possível, como atestado pelas reexpressões (105) e (106).

(101) Hortência não podia ganhar/receber colo (reescrita de (99)) (102) Ganhei o braço dele para tatuar (reescrita de (100))

(103) Hortência terá colo em breve (reescrita de (99)) (104) Estou com o braço dele para tatuar (reescrita de (100)) (105) *Hortência deu o colo de volta para a mãe (reescrita de (99)) (106) *Dei o braço dele de volta (reescrita de (100))

Assim como as orações do tipo [-transferível: poder: +divino], estas orações somente se combinam com a opção [não-reflexivo] do sistema de RECEPÇÃO. O exercício de reexpressão demonstra a impossibilidade da associação à opção [reflexivo]: *ela deu o colo para si mesma;

116 Essa possibilidade reflexiva se confirma por meio de buscas na internet: Berdych ficou satisfeito com seu desempenho e até deu nota para si mesmo. - É difícil dizer um número, mas acho que pode ser 8 ou 9. Joguei muito bem hoje.

*ele deu o braço para si mesmo. A diferença de orações como essas com a característica [- transferível] em relação às orações com a característica [+transferível] é evidenciada quando se imagina que determinadas partes do corpo podem ser desmembradas e dadas/transferidas para um outro ser vivo, casos em que se teria, geralmente, um transplante. Na Figura 51, a seguir, são demonstradas, na primeira linha, as regras de realização do termo [-transferível]. Nas linhas que seguem são apresentadas as seleções de expressão (e as respectivas regras de realização) possibilitadas pela combinação do sistema de ACESSO com o sistema de RECEPÇÃO. Exemplos de orações são expostos na segunda coluna.

Figura 51 – Resumo das orações do tipo [-transferível] [-transferível]

Processo Material: Evento; Evento: sem mudança de localização do Meio. Meio: Ente; Ente: não necessariamente alienável.

Agente: Ente; Ente: ser animado, instituição ou divindade. [poder: divino; não-

reflexivo]

Agente: Ente; Ente: divindade.

Deus deu dinheiro para vocês

Ator Pr.: Mat. Meta Recebedor

gr. n. gr. v.: dar gr. n. sint. prep.: prep. para (bfamdl17)

[poder: -divino; não- reflexivo]

Agente: Ente; Ente: ser animado ou instituição.

ele me deu cem no estágio

Ator Recebedor Pr.: Mat. Meta Circ.

gr. n. gr. n.: pron. oblíquo

gr. verbal gr. n. sint. prep. (bfammn34)

[poder: -divino; reflexivo] Agente: Ente; Ente: ser animado ou instituição.

ele deu cem para si mesmo

Ator Pr.: Mat. Meta Recebedor

gr. n. gr. v.: dar gr. n. sint. prep.: prep. para (reescrita de bfammn34)

[-transferível: parte do corpo] Meta: Ente; Ente: parte do corpo

eu nũ podia dar colo pra Hortência

Ator Pr.: Mat. Meta Recebedor

gr. n. gr. v.: dar gr. n. sint. prep.: prep. pra (bfammn17)

Fonte: O autor (2019).

Com esta subseção, finaliza-se a explanação do sistema proposto na Figura 47 para a descrição das orações transformativas de extensão com a forma verbal dar. Muitos dos termos dispostos no refinamento do sistema foram adotados da rede de sistema disposta na Figura 21, de Hasan (1996); outros foram propostos com base no objeto aqui estudado. O sistema proposto deixa um caminho aberto para a análise de outros processos do tipo [material: transformativo:

extensão], a exemplo de emprestar, entregar, passar, enviar e oferecer. Por enquanto, o que temos é uma rede com algumas diferenças em relação à de Hasan (1996) – o que é de se esperar, já que esta tese trabalha com um verbo não sistematizado pela autora e com uma língua diferente do inglês – e também uma proposição aberta a complementações provenientes de futuros estudos sistêmicos do português brasileiro.

É importante mencionar que o endereço sistêmico [material: transformativo: extensão] não se limita às orações com o verbo dar pleno (RASSI, 2015; RASSI; VALE, 2013) ou prototípico (TUCKER, 2014a)117. Nosso estudo demonstra como orações de fato distintas pela natureza alienável/inalienável da Meta (provocadoras de duas classes do verbo dar, de acordo com Tucker (2014a)) se relacionam (até que ponto se assemelham e a partir de que ponto se distinguem) na generalidade da rede de sistema de TRANSITIVIDADE. Nessa parte seguimos Tucker (2014a, p. 51) quando afirma que “talvez o maior desafio para a GSF repouse na modelização dessa gama de expressões [com o verbo dar] nas redes de sistema que constituem o coração teórico do modelo”118.