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A motivação intrínseca reflete a propensão primária e espontânea de alguns organismos, especialmente os mamíferos, de se desenvolver através da atividade – brincar, explorar e manipular as coisas e, ao fazê-lo expandir suas competências e capacidades (RYAN e DECI, 2017, p. 123, tradução nossa).

Dessa forma percebemos que a necessidade psicológica básica de competência não é apresentada apenas pelos seres humanos e está entrelaçada com a evolução de outras espécies. Assim, podemos entender que as outras necessidades psicológicas básicas de autonomia e relacionamento também podem ser apresentadas por outras espécies. E, ao discorrer sobre necessidades psicológicas básicas e evolução das espécies, é necessário apresentar a primeira das seis mini-teorias que forma a SDT.

A Cognitive Evaluation Theory (CET), traduzida por nós como Teoria da Avaliação Cognitiva, foi uma das primeiras pesquisas sobre modificação na motivação intrínseca publicada por DECI, ainda na década de 70. Essa mini-teoria foi uma das primeiras peças do quebra-cabeça da SDT.

Para explicar os efeitos das recompensas monetárias, Deci (1971, 1972) usou as idéias de DeCharms (1968) e Heider (1958) para afirmar que os pagamentos monetários haviam induzido uma mudança no local de causalidade percebido de interno para externo, resultando em motivação intrínseca reduzida para a atividade. Considerando que o comportamento intrinsecamente motivado tem um lócus de causalidade percebido interno: a pessoa o faz por recompensas internas, como interesse e domínio; o comportamento extrinsecamente motivado tem um lócus de causalidade percebido externo: a

pessoa o faz para obter uma recompensa extrínseca ou cumprir uma restrição externa. Com uma recompensa ou restrição externa, uma instrumentalidade se desenvolve de tal forma que a atividade se torna um meio para um fim e não um fim em si mesmo. O comportamento não é mais algo que é feito porque é interessante; é algo que é feito para obter uma recompensa externa ou cumprir uma restrição externa (DECI e RYAN, 1985, p. 49, tradução nossa).

Um termo importante que foi citado no trecho anterior é sobre o lócus de causalidade percebido, ou em inglês Perceived locus of causality (PLOC). O PLOC é como o indivíduo percebe a fonte da motivação em realizar a ação. Se o indivíduo perceber que a motivação partiu dele, de motivos internos a ele como por exemplo a tentativa de satisfazer alguma necessidade psicológica básica, teremos um lócus de causalidade percebido interno (I-PLOC). Nesse caso, a perseverança na ação será maior e também observa-se uma melhor qualidade na ação. Mas, se o indivíduo perceber que a motivação em realizar a ação não partiu dele, e sim de um motivo externo a ele, a perseverança e a qualidade na ação será menor. Sendo assim, teremos um lócus de causalidade percebido externo (E-PLOC). Quanto mais interno é o PLOC, mais intrinsecamente motivada será a ação. Pesquisas constataram que, ao aplicar uma recompensa externa em uma ação intrinsecamente motivada, uma mudança de um I-PLOC para um E-PLOC é causada, tornando a ação mais extrinsecamente motivada e reduzindo, consequentemente, sua perseverança e qualidade. (DECI E RYAN, 1985; RYAN E DECI, 2017).

Assim, a CET afirma que recompensas podem transformar uma motivação intrínseca em uma motivação extrínseca.

E ainda se referindo à necessidade de competência, DECI e RYAN (1985) escrevem:

Deci (1975) sugeriu que a necessidade de competência leva as pessoas a buscar e conquistar desafios ideais para suas capacidades, e que a aquisição de competências resulta da interação com estímulos desafiadores (DECI e RYAN, 1985, p. 28, tradução nossa).

Aqui temos outro aspecto da SDT, onde o indivíduo geralmente busca por desafios ótimos para desenvolver suas competências. Se o indivíduo já apresenta competência na ação, ele poderá não apresentar motivação para realizá- la pois compreende que não desenvolverá nenhuma nova competência ao realizar a

ação. Por outro lado, se o indivíduo perceber ou pensar que a ação está além de sua capacidade, ele também não apresentará motivação. Por isso a importância da percepção do desafio como ótimo, ou seja, ele deve ser difícil o suficiente para que ocorra o desenvolvimento de alguma competência, e não pode ser excessivamente difícil para que sua realização não seja obtida. Aqui está uma das ações importantes aos professores: eles dever ter a sensibilidade suficiente para propor desafios ótimos aos seus alunos. E isso não é uma tarefa fácil devido à heterogeneidade observada em diversas salas de aula. Aqui percebemos também a importância de um trabalho em grupo, pois em um grupo heterogêneo um aluno que já compreendeu o conteúdo poderá tentar explicá-lo para outro que ainda não o entendeu. Assim, o desafio para um pode ser de compreender o conteúdo e para o outro de auxiliar seu colega a entendê-lo. Além disso, o grupo pode reforçar a necessidade de relacionamento, porque os integrantes do grupo poderão compreender que o outro está lá para facilitar sua necessidade de competência. Isso é possível porque as necessidades psicológicas básicas são interdependentes.

Há outros aspectos da CET que devem ser levados em consideração. O uso de recompensas externas também pode transmitir a informação de que a atividade em si não vale a pena, contribuindo mais uma vez para a redução da motivação em realizar a ação. No lugar de uma recompensa tangível, como dinheiro ou até mesmo uma nota por realizar a tarefa, o recurso de feedback positivo pode ser explorado. Um feedback positivo, como um elogio após realizar uma tarefa ou até mesmo pelo esforço em tentar realizá-la, pode não ser interpretado como uma forma de controle, e assim não transformará um I-PLOC e E-PLOC, mantendo a ação intrinsecamente motivada. Além disso, eventos externos relevantes ao início e regulação do comportamento podem apresentar três aspectos: (i) aspecto informacional, fornece apenas a informação sobre a competência a ser adquirida ao executar a ação, nesse caso há um suporte a necessidade de competência, facilitando o I-PLOC; (ii) aspecto controlador, nesse caso o indivíduo compreende o evento externo como controlador, facilitando um E-PLOC e reduzindo a motivação intrínseca; e (iii) amotivação, nesse caso o indivíduo percebe que não há competência necessária para realizar a ação ou ele acha que não há habilidade ou até mesmo que a realização da tarefa não vai lhe ter valor nenhum e assim, o indivíduo não terá nenhuma motivação, nem intrínseca e nem extrínseca, para realizar a tarefa (RYAN e DECI, 2017).

Duncan (2020) corrobora com o parágrafo anterior quando escreve:

(...) de acordo com uma mini-teoria da SDT - a teoria da avaliação cognitiva que visa esclarecer a imprevisibilidade da motivação intrínseca - contextos sociais como feedback positivo e recompensas que dão suporte à autonomia e competência de uma pessoa, podem aumentar a motivação intrínseca. Por outro lado, recompensas tangíveis, situações pressionadas e ameaças minam à autonomia e competência. A teoria da avaliação cognitiva se aplica apenas a atividades que são valiosas para a pessoa [intrinsecamente motivadas]. No geral, os comportamentos são motivados pela satisfação da autonomia, competência e sentimento de pertencimento com outras pessoas relacionadas ou dedicadas (DUNCAN, 2020, p. 5, tradução nossa).

Por último podemos tentar resumir a CET por meio de quatro propor- sições apresentada por FREDERICK E RYAN (1995):

Primeiro, atividades intrinsecamente motivadas são por natureza autônomas ou autodeterminadas. (...) Segundo, a motivação intrínseca também é sustentada pelos sentimentos de competência e pela excitação do desafio. (...) Terceiro, Deci e Ryan argumentam que o impacto motivacional do feedback, recompensas ou outras comunicações relevantes para uma atividade dependerá de seu significado funcional (ou seja, significado psicológico). (...) Uma quarta e última proposição é que a questão das entradas informacionais, controladoras e amotivadoras é relevante não apenas para eventos interpessoais, mas também para a regulação intrapsíquica da ação (FREDERICK E RYAN, 1995, p. 5, tradução nossa). A primeira proposição indica que a natureza da motivação intrínseca está relacionada com interesses próprios, inclusive as necessidades psicológicas; vale lembrar que há eventos que podem transformar um I-PLOC em E-PLOC e reduzir a própria motivação intrínseca. A segunda proposição confirma a importância do desafio ótimo ao desenvolvimento de competências; o indivíduo tende a não apresentar motivação para ações não desafiadoras, ou para ações com desafios além de sua capacidade. Em ambos os casos o indivíduo sente amotivação pela ação. A terceira proposição afirma que, mais importante do que o feedback é a forma com que ele é interpretado pelo indivíduo; feedback que dá suporte à necessidade de competência é efetivo para reforçar o I-PLOC e manter a motivação intrínseca. Se o feedback tiver um aspecto controlador, ele reforçará o E-PLOC

reduzindo a motivação intrínseca. O feedback também deve ser autêntico, caso o indivíduo perceba que o reforço oferecido não é verdadeiro, ele poderá não ter efeito em reforçar a motivação intrínseca e até mesmo reduzí-la, caso o indivíduo entenda o feedback como controlador. Além disso, podemos acreditar que o mesmo

feedback possa ser interpretado de formas distintas por indivíduos diferentes. A

quarta proposição está relacionada com o envolvimento do ego e nesse caso temos uma regulação autocontrolada (E-PLOC), e não autônoma (I-PLOC) (FREDERICK E RYAN, 1995).