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4 OFICINÃO FINOS TRAPOS: A CRIAÇÃO COLABORATIVA EM PERCURSOS

4.2 PERSPECTIVA METODOLÓGICA – CONCEITOS ESTRUTURANTES

4.2.3 Conceito de dispositivo

Ainda que Roberto de Abreu não tenha abordado o conceito de dispositivo em sua dissertação, considero ser este de grande relevância para a compreensão da transposição da dramaturgia da sala de ensaio para o plano metodológico do Oficinão Finos Trapos. A sala de ensaio enquanto espaço de construção da obra cênica, como é proposta nesse procedimento metodológico, configura-se em potência. Ali, a obra espetacular é erguida a partir do espaço vazio e do material humano disponível. Tal percurso, ainda que os envolvidos no processo façam prospecções ou estabeleçam conceitos motores e geradores, não é um dado exato, fechado, cartesiano. Do ponto de partida à linha de chegada, bifurcações, sinuosidades, avanços e regressos permearão o caminho até que um discurso se firme na forma de espetáculo.

O próprio Roberto de Abreu admite que

Cada escolha que é tomada dentro do circuito criativo gera outras tantas possibilidades de escolha, e outras tantas violências precisarão ser cometidas, para, ao optar por um caminho, anular os haveres que outras opções poderiam oferecer. A violência da escolha está pautada na misteriosa escuridão que salvaguarda os caminhos da criação, o enigmático ‘não saber’ que aturde o artista, fazendo-o entrar em situação de jogo. (SCHETINNI, 2009, p. 66-67).

Assim, a dramaturgia da sala de ensaio enquanto potência criativa e pedagógica não seria um método ou modo de operar. Suas características aproximam-se da interpretação

de Gilles Deleuze (1996) sobre o conceito de dispositivo, abordado a partir da sua interpretação da obra de Foucault. O autor considera um dispositivo como sendo

[...] uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente. E, no dispositivo, as linhas não delimitam ou envolvem sistemas homogéneos por sua própria conta, como o objeto, o sujeito, a linguagem, etc., mas seguem direções, traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se afastam uma das outras. Qualquer linha pode ser quebrada – está sujeita a variações de direção – e pode ser bifurcada, em forma de forquilha – está submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vectores ou tensores. (sem número de página).

Portanto, por sua flexibilidade, adaptabilidade e por instituir tensionadores do processo criativo, a dramaturgia da sala de ensaio, como utilizada durante o Oficinão Finos Trapos, seria então um dispositivo metodológico servindo aos intuitos artísticos e pedagógicos dessa ação de formação.

A definição de dispositivo metodológico caminha pari passu com os princípios que norteiam o processo colaborativo de criação, ao qual a dramaturgia da sala de ensaio se filia. Isso explica, inclusive, a adaptabilidade desse dispositivo à diversificada realidade contextual dos grupos teatrais, ganhando sistematizações peculiares em cada agrupamento. Uma vez que os dispositivos criativos são compostos por sistemas não-lineares que se bifurcam e se misturam, articulando enunciados e subjetivações, culminando em resultados tão particulares quanto a efemeridade da obra cênica, não podemos considerar o processo colaborativo um sistema universal.

Enquanto procedimento volátil, o êxito de um processo criativo que se intitule colaborativo está condicionado a certas variáveis: a filosofia de trabalho de cada grupo, as relações/tensões geradas no encontro cotidiano entre os artistas criadores, a liberdade e intimidade criativa entre os membros, dentre outro fatores. Porém, com a recorrência cada vez mais frequente do termo no meio teatral, muitas vezes empregado fora do contexto da criação compartilhada, há também uma grande possibilidade de a expressão processo colaborativo estar sendo utilizada por alguns artistas e coletivos de maneira equivocada.

É importante destacar que, no que diz respeito à criação compartilhada, Rosyane Trotta (2008), define claramente que a ideia

[...] comporta dois movimentos: aquele de compartilhar (distribuir) e aquele de compartilhar de (participar de). A autoria se realiza na reciprocidade do fazer. Nesta dinâmica, as funções agregam e cedem território. O processo de formação da autoria se instala na área

dimensionada pela diversidade de autores e de funções, enfrentando o problema de encontrar o consenso dentro do dissenso tanto quanto permitir o dissenso dentro do consenso (p. 84).

Ou seja, ainda que cada grupo de criadores tenha a liberdade de propor formatações diferenciadas, um dispositivo colaborativo precisa se utilizar de um dos movimentos indicados pela autora. Do contrário não pode ser encarado como sinônimo de compartilhamento de autoria.

É importante destacar também que o processo colaborativo enquanto dispositivo metodológico serve de maneira muito eficaz aos princípios da criação em grupo. As particularidades, a unidade na diferença, a variabilidade do percurso criativo, são características que se alinham diretamente com os princípios da autoria coletiva, modo de criação de alta complexidade, especialmente por trazer à tona as peculiaridades das relações interpessoais.

Rosyane Trotta (2008), pesquisadora que se debruça profundamente sobre questões do teatro de grupo, conceitua autoria coletiva como sendo

[...] o processo pelo qual um conjunto de artistas trabalha na formação de um modo de criação, dando-lhe forma e conceito, sendo ambos os procedimentos – formação e formalização – dinâmicos, simultâneos, não lineares, não progressivos, mas cumulativos, e a partir de indivíduos que, pelo objetivo da criação, se colocam em questão, quer dizer, se abrem à crise. O espetáculo apresenta uma espécie de jogo de embate e conciliação de subjetividades que se organizam para funcionar em conjunto. A aparente harmonia com que os elementos funcionam na obra concilia, na representação, as tensões e os conflitos inerentes a este processo, que não foram eliminados, mas que encontram um consenso para permitir uma fixação da forma. (p. 94)

Esse processo é ao mesmo tempo complexo e pedagógico. De um lado temos a subjetividade dos indivíduos integrantes, algo que jamais pode ser desprezado em um processo de criação artística. Do outro, a construção de uma coesão de discurso em um processo de autoria coletiva.

Muitas tensões podem ser geradas para que desta relação entre individualidade e alteridade resultem produtos cênicos bem articulados ideológica e poeticamente, traduzindo as inquietações dos artistas-idealizadores, sendo muitas vezes necessária a figura de um mediador – na maioria das vezes personificada em um encenador ou diretor – que procurará o equilíbrio do processo criativo, mesmo nos contextos mais conflituosos:

Quando passa pelo conjunto da equipe, a concepção do projeto pode significar uma das etapas mais difíceis e conflituosas, uma vez cada proposta

é uma tentativa de interpretação sobre o grupo – quem ele é – e a projeção de um desejo – o que ele poderia ou deveria ser. O projeto necessita encontrar um ponto em comum entre as diversidades e não pode contentar inteiramente cada individuo. [...] Da tentativa do artista de abrir espaço no grupo para a sua subjetividade, resulta o conflito entre o indivíduo e o grupo. Tal processo pode se dar de forma racionalista ou empírica, pode ser fruto do diálogo e da negociação ou da experiência, ou mesmo conjugar ambas as práticas (TROTTA, 2008, p.88).

Esse processo de negociação me leva a supor que a própria dinâmica das relações interpessoais – dentro do grupo e fora dele – condicionam e criam os mecanismos para lidar com as tensões existentes entre autoria/hierarquia nos processo criativos. Em outras palavras, não existem regras universais predeterminadas. Cada grupo, em seu contexto, lida de maneira peculiar no que diz respeito às essas tensões.

Se observarmos, por exemplo, procedimentos de agrupamentos brasileiros já estabelecidos que se utilizam da criação em colaboração, veremos um cenário multifacetado: grupos como o Teatro da Vertigem (SP) onde a visão do encenador aparece como marca indispensável à sua identidade; grupos como o Oi Nóis Aqui Traveis (RS) – que segundo Stela Fischer (2010, p. 79-105), transitou durante a sua trajetória da criação coletiva para a criação colaborativa – em que a unidade do coletivo é característica perceptível em todos os trabalhos; já em outros contextos nos deparamos com organizações como o Lume (SP) onde cada trabalho parece ter a identidade individual derivada dos objetos de estudo dos atores- pesquisadores. Procedimentos marcadamente distintos, mas que funcionam a seu modo enquanto processos colaborativos, uma vez que são configurações ou tentativas de resposta ao problema da autoria coletiva.

No caso dos pressupostos norteadores do Oficinão Finos Trapos, o processo colaborativo de criação enquanto dispositivo metodológico demonstrou-se como sendo uma estratégia de alto potencial pedagógico. Propondo etapas que funcionam como tensionadores da criação, este dispositivo colocava em destaque todas as questões concernentes à criação compartilhada: Como lidar com os diferentes pontos de vista em um processo de criação? Como abrir mão de uma ideia ou uma opinião em prol da construção da obra de arte sem sentir-se frustrado em alguma medida? Como exercitar a escuta ou mediar o diálogo entre os criadores? Como lidar com conflitos e impasses? Como o participante pode melhorar os argumentos com vistas a defender a sua ideia de forma clara e concisa para que esta seja aceita pelo coletivo? Como formular uma ideia a partir de uma visão holística da obra em construção? Como trazer uma imagem ou conceito do plano das ideias para a cena coletivamente?

Essas e outras questões mobilizaram os participantes durante o processo contribuindo para que estes tivessem proatividade, disponibilizassem energias físicas e psíquicas tendo sempre em primeiro plano a obra em construção.

Assim, todos os envolvidos – instrutores e participantes – deveriam sair da sua zona de conforto, dispondo-se a discutir e a dialogar sobre a obra a ser construída. Enquanto a obra cênica era levantada os participantes construíam relações de aprendizado: sobre o trabalho criativo; acerca de suas funções e as que são desempenhadas pelos colegas; sobre a polifonia intrínseca ao fenômeno teatral; exercitam uma visão holística da obra espetacular; percebem a necessidade de serem flexíveis, especialmente no que tange à dinâmica das relações interpessoais; valorizam a escuta como mecanismo indispensável ao processo criativo; dentre inúmeros outros saberes.