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4 OFICINÃO FINOS TRAPOS: A CRIAÇÃO COLABORATIVA EM PERCURSOS

4.2 PERSPECTIVA ARTÍSTICA – O INCENTIVO A POÉTICAS CONTEMPORÂNEAS

4.2.4 Preto no Branco

A segunda edição do Oficinão 2013 ocorreu em Jequié, situada na região sudoeste do Estado, entre os dias e 09 a 18 de Maio, com aulas no Centro de Cultura Antônio Carlos Magalhães e mostra cênica Realizada no Espaço Cultural Wally Salomão. Jequié divide com Vitória da Conquista o título de expoente microrregional, o que nos possibilitava conhecer os traços culturais daquela cidade.

Como artista independente, já havia visitado aquela região, mas nunca com uma atividade pedagógica. Já outros membros do “Finos” conheciam bem a “Cidade Sol” – título concedido a Jequié por suas características climáticas. Mas, para o Grupo esta seria uma nova experiência, vez que não tivemos a oportunidade de visitar aquela cidade com um de nossos trabalhos.

Aquele encontro com Jequié era cercado de expectativas. Primeiramente, pela cidade estar em foco de nossas recentes discussões, uma vez que hospeda desde 2012 o primeiro curso superior de licenciatura com habilitação em Teatro e Dança do interior do Estado, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E em segundo lugar, por abrigar Roberto de Abreu, membro do grupo afastado tendo em vista a sua assunção de cargo de professor titular deste mesmo curso.

Uma vez que se tornara um polo universitário, já prevíamos o perfil predominante do público que se inscreveria no Oficinão, o que acabou se confirmando. Dos 34 inscritos, a grande maioria tinha algum vínculo com os cursos de artes da UESB. Isso também gerou uma preocupação por parte dos monitores, pois, uma vez que Roberto era professor daquela instituição, havia grande probabilidade de que estes já tivessem algum contato com os princípios do processo colaborativo de criação e até mesmo da dramaturgia da sala de ensaio, o que não se confirmou, algo justificado pelo curso ser voltado à licenciatura e os interesses de Roberto de Abreu na ocasião estarem direcionados à pesquisa de sua tese sobre jogos teatrais na formação de professores de teatro.

Do total de inscritos, foram selecionados 30 participantes de perfil bem diferente das outras edições. A maioria era de dançarinos com pouca experiência com a linguagem teatral, o que notadamente dava ao grupo grande expressividade corporal e uma dificuldade com caracterização vocal e canto. Apenas 12 dos participantes não tinham vinculo com a

uiversidade, sendo predominantemente de teatro com passagem pelos grupos amadores locais. A faixa etária era de jovens entre 18 e 32 anos.

Figura 22 - Oficinão 2013 – Etapa Médio Rio das Contas (Jequié). Jequié-Ba, Centro de Cultura Antonio Carlos

Magalhães, 11 de maio de 2013.

Foto: Aldren Lincoln. Na foto, da direita para esquerda: Elisa Heichman, Diana Lucard, Peter Rodrigues e Leandro Santos, em experimento cênico.

Outro dado diferencial desse público selecionado foi ser majoritariamente natural de outras cidades baianas, residindo temporariamente em Jequié especificamente para cursarem a universidade. Assim, tínhamos participantes oriundos de cidades circunvizinhas (Poções e Vitória da Conquista) a cidades distantes situadas em outras regiões do Estado (Ibiritaia, Porto Seguro, Serra Grande e Uruçuca).

Alguns, sem vínculo com a UESB, não chegaram a concluir o Oficinão por não possuir residência fixa na cidade, tendo que se deslocarem diariamente para participar do curso, inclusive, pelas atividades profissionais que desenvolviam na região de origem, o que impedia um pouso temporário durante os dez dias de execução. Agravava esse quadro a indisponibilidade de ônibus com horário compatível ao translado diário. Pesamos muito a evasão dos participantes que se enquadravam nessa situação, mas um dado que era divulgado com clareza durante o processo seletivo era os dias e horários de realização do Oficinão, o que demandava dos candidatos uma atenção a esses detalhes de logística.

Essa edição também foi marcada por um alto índice de evasão. Uma das turmas da Universidade participaria com trabalho artístico do evento “Festival da Juventude”, realizado em Vitória da Conquista, evento que coincidiu com as datas de realização do

Oficinão, o que, como no quadro de Juazeiro, ocasionou prejuízos. Tivemos, inclusive que fazer algumas concessões, alterando os horários de realização das aulas, para não incorrermos na falta de quórum em determinados dias, vez que a participação no festival que duraria uma semana constituía-se em atividade curricular da universidade. Ao final, apenas 13 participantes foram certificados por cumprirem o índice mínimo de 75% de carga horária.

As expectativas dos participantes eram as melhores possíveis em relação ao Oficinão. Diferente do quadro encontrado em Juazeiro, o Grupo Finos Trapos já era conhecido naquela região, tanto pelo trabalho realizado quanto pelos depoimentos de Roberto de Abreu. Talvez por isso, não houve nenhuma resistência aos exercícios propostos durante todo o curso.

Desde os primeiros encontros foi fácil conseguir o entrosamento dos alunos entre si e destes com os instrutores. Um dado a ser considerado é que muitos já se conheciam por causa da universidade, o que facilitou de certo modo o processo. Os que não eram universitários em um primeiro momento se sentiram deslocados, mas isso logo foi superado pelo espírito acolhedor que imperava.

Mais uma vez nos deparamos com um perfil de artistas predominantemente intérpretes. Alguns poucos já exerciam a licenciatura, tendo esporádicas experiências com montagens didáticas, mas isso não saltou aos nossos olhos no decorrer do processo. Entretanto, isso não significava falta de proatividade.

Em geral, os participantes de Jequié tinham grande facilidade em assimilar os conteúdos e técnicas aplicados, e no que diz respeito à criação, geravam um rico material que fartamente podia ser aproveitado pelos encenadores. Como se vê, um quadro bem distinto ao encontrado em Juazeiro, o que sublinha a necessidade de atividades continuadas visando a formação e capacitação de artistas no interior baiano. Pelo que percebemos em Jequié, o curso superior em teatro e dança da UESB, mesmo ainda recém-instituído, já dá sinais de que será um importante difusor de conhecimento e formação para os artistas do Estado, descentralizando a demanda por formação na capital baiana.

Os participantes eram marcados por uma disciplina corporal que auxiliava e muito o trabalho, característica que atribuo a linguagem da dança. Era incrível a facilidade com que repetiam as cenas sem perder muito de material que era gerado no primeiro improviso, o que denota uma auto-observação poderosa e auxilia consideravelmente o desempenho artístico. Uma diferença marcante que, inclusive deu o tom da mostra cênica era a qualidade de movimento dos dançarinos. Parte da turma se identificava com uma linguagem corporal mais contemporânea, enquanto que outra com o ballet clássico.

Essas dicotomias (ator/bailarino, clássico/contemporâneo, corpo/voz) foram utilizadas a favor do processo pedagógico, sendo os participantes desafiados a superar os seus limites e não se basearem apenas no repertório de movimentos e personagens que já haviam construído ou na estética da qual eram especialistas. Um caso particular que aponto como exemplo é o do participante Matheus. Este aluno, muito identificado com o repertório de movimentos do ballet clássico, apesar de uma expressividade corporal fenomenal, não conseguia se expressar através da fala. Diálogo e movimentos sempre entravam em contradição. Isso foi um tanto difícil de ser superado, mas grandes avanços foram percebidos. Foi então que topamos o desafio de provoca-los com exercícios de improvisação baseados no diálogo, o que surtiu bons resultados.

Figura 23 - “Preto no Branco’, Oficinão 2013 – Etapa Médio Rio das Contas (Jequié). Jequié-Ba, Espaço

Cultural Waly Salomão, 18 de maio de 2013. Cena 09 – A Morte do Operário.

Foto: Polis Nunes

No que tange ao processo de criação da mostra cênica, apesar de obtermos um coletivo amalgamado e proativo, esbarrávamos em um problema. Partindo da temática “cidades invisíveis”, o coletivo de Jequié escolheu lançar um olhar sobre o comportamento e a cultura do povo daquela cidade. Mas uma vez que a maioria dos participantes estava na cidade há pouco tempo, não podendo lançar um olhar mais aprofundado sobre os costumes locais, como o tema escolhido deveria ser abordado, preservando o ponto de vista dos artistas criadores?

As discussões nos revelaram um caminho viável que condicionou, inclusive, a poética da encenação. No debate, os próprios participantes assinalaram como o campo universitário isolava os estudantes da dinâmica da cidade. Isso se dava tanto por sua

localização afastada do centro da cidade – o bairro Jequiezinho, onde se encontra o campus da UESB situa-se em uma colina, unida à cidade apenas por uma ponte sob o rio Gavião – quanto pela pouca interação desta com a cultura local. Vivendo em pensionatos no entorno do campus, aqueles participantes se viam isolados da dinâmica local, e por isso se sentiam, estrangeiros.

Decidimos então que a mostra cênica lançaria um olhar sobre Jequié pela perspectiva do estrangeiro. Como esse estranho chega e é recebido? Como se relaciona com os habitantes da cidade? Como percebe a cidade e como é percebido por ela?

Procurando responder a esses questionamentos levamos a cabo uma pesquisa de encenação em espaço não convencional, a fim de transformar o espectador em estrangeiro tornando-o personagem central de uma história permeada pelo teatro físico e o olhar dos artistas sobre urbanidade e a intolerância nas relações interpessoais. De tudo isso resultou a mostra “Preto no Branco”, exibida dia 18 de maio no Espaço Cultural Waly Salomão.

Na dramaturgia do espetáculo, o espectador vira personagem, sendo um anônimo que acaba de chegar e é percebido pelos moradores locais. Os interpretes encenam personagens do cotidiano da cidade, tendo como laboratório de pesquisa as praças, avenidas, feiras-livres, igrejas, e toda a dinâmica social de Jequié. Os mesmos foram desafiados a durante os dias de Oficinão caminhar pela cidade, procurando um olhar mais apurado sobre aquele cotidiano, verificando que teatralidades possíveis poderiam emergir daquela vida real. Os exercícios cênicos foram muito profícuos e toda uma população de personagens tipo emergiu.

Na narrativa construída, o público é levado por brincantes que celebram o São João – festa mais conhecida da cidade – até o portal de entrada do espaço de representação, onde são recebidos por uma Onça transmutada em Esfinge. A referência à onça é encontrada tanto no imaginário local quanto no próprio nome da cidade (Jequié significa, onça ou cachorro, animais típicos daquela região na ocasião de sua fundação). Essa personagem enigmática, numa alusão à celebre frase do mito de Édipo – “Decifra-me ou te devoro!” – dá boas-vindas aos estrangeiros que acabam de chegar, alertando para os perigos do novo mundo que irão desbravar. Ao adentrar o espaço, os espectadores são inundados por abraços, sons e cheiros que o proporcionam uma experiência sensorial que marca a descoberta de um novo lugar. Já acomodados, os mesmos encontram personagens locais e imagens metafóricas que retratam o cotidiano e os contrastes da cidade: os operários das fábricas, os feirantes, a religiosidade protestante, as estórias sobreo rio gavião, dentre outras.

A expressão “preto no branco”, popular em algumas regiões sertanejas, ilustra tanto o ato de deixar tudo às claras – o que segundo a pesquisa realizada é um traço característico do povo de Jequié – quanto os contrastes, as diferenças socioeconômicas e culturais que marcam o cotidiano daquela gente.

Um dado interessante a considerar é que para ilustrar por meio de metáforas esses contrates, utilizamos o repertório de movimentos e as dicotomias apresentadas pelos corpos e fazeres artísticos dos participantes, potencializando os desafios pedagógicos em resultados estéticos. Utilizamos, por exemplo, as distintas qualidades de movimento suscitada pelos dançarinos, a partir de sua estética de interesse (clássico, contemporâneo, brake, etc.) como elementos que realçavam as diferenças e conflitos entre os personagens.

Ainda que a evasão seja um algo que tenha frustrado parte das expectativas sobre o Oficinão em Jequié, esta não maculou os resultados estéticos e pedagógicos alcançados. Parece ser marca recorrente no processo colaborativo de criação o alto grau de compromisso dos artistas que permanecem durante todo o processo. Não foi diferente nesta cidade. O empenho dos participantes mesmo com uma rotina exaustiva de exercícios e experimentos cênicos sob o sol escaldante fez da passagem do “Finos” por Jequié uma experiência sensível, delicada e criativa.

Nos processos de avaliação, algo que pode ser destacado como observação relevante foi a sugestão de incorporação de um coreógrafo na etapa da dramaturgia da sala de ensaio. Ainda que Aldren Licoln permanecesse conosco nessa etapa, auxiliando nos aspectos concernentes à corporeidade, a sua função não era de coreógrafo da mostra cênica. Essa observação foi feita por apenas alguns dos participantes, e indica o desejo de que a linguagem da dança ganhe mais destaque na metodologia, o que é um dado a ser considerado paras as próximas edições. Outro dado recorrente foi no que diz respeito ao aumento da carga horária do curso para que se pudesse aprofundar no processo colaborativo de criação, algo que também foi observado na avaliação de Juazeiro.

No caso de Jequié, já temos notícias sobre a articulação dos alunos no intento de se constituírem em um coletivo. Outros grupos que estavam desativados voltaram ao trabalho com a passagem do Oficinão, como nos indica o depoimento de Pretho Souza, participante de dedicação e encantamento que inebriou toda a equipe, que diz:

[...] Estarei pondo em prática o que aprendi com vocês, oficinas, métodos, processo de criação colaborativo no grupo de teatro que montamos ontem. (Na cia. Arte Viva estava apenas tendo oficina e o grupo estava desativado, retornamos ontem pra valer.).

Grande abraço, desejo que os focos, refletores, set lights e etc... permaneçam sempre ligados na vida de vocês e para vocês. (depoimento do aluno encaminhado via e-mail dia 20 de Maio de 2013).

Pretho foi um dos participantes que ao final da mostra decidiu retornar para casa sem tirar o figurino e maquiagem, como se quisesse que seus personagens ficassem tatuados em sua pele através da eternidade. Sensação que nos fez rememorar com nostalgia o início da trajetória teatral de alguns dos membros do “Finos”, que, quando ainda integrantes do Grupo de teatro da UESB, lá em Vitória da Conquista, contávamos as horas para que chegasse o fim de semana e caminhar da Avenida Olívia Flores até o Campus da Universidade – que fica afastado quatro quilômetros da cidade –, às sete da manhã, para ter aula de Teatro, em pleno domingo, o dia todo, e retornar para casa, também caminhando, sob um lindo entardecer, com um imenso sorriso de satisfação no rosto.