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Financiamento público, contrapartidas sociais e atividades de formação

2 PRESSUPOSTOS DE UMA PEDAGOGIA DO TEATRO DE GRUPO

2.2 O TEATRO DE GRUPO NO BRASIL A PARTIR DA DÉCADA DE 90

2.2.2 Financiamento público, contrapartidas sociais e atividades de formação

As conquistas políticas iniciadas na década de 1990 ganham intensidade nas décadas subsequentes e lançam luz à discussão sobre questões endêmicas do fazer teatral. Por sua perda de popularidade para outras linguagens, o teatro passa a se reconhecer como arte que não se adequa facilmente ao modelo neoliberal de produção. Sendo uma arte de difícil reprodução em grande escala e diante de um mercado cada vez mais exigente nesse sentido, o teatro passa então a ser considerado inviável financeiramente pela dificuldade em ser autossustentável, tendo que recorrer ao fomento e intervenção do Estado.

Até mesmo a noção de amadorismo e profissionalismo – de início, comumente utilizada para auxiliar na diferenciação entre teatro experimental e teatro comercial – veio se transformando ao longo das décadas. Se antes, profissional e amador denotavam a relação desses artistas com o mercado, com o aumento da interdependência entre teatro e Estado, essa noção passa a ilustrar muito mais a ideia de apuro técnico do que qualquer outra coisa.

No contexto do teatro experimental a busca dos artistas por um novo modo de interpretação e encenação passa a requerer também um novo modelo de organização e produção. Daí o fato de no período anterior à década de 1990 o teatro de grupo ter sido aceito primeiramente por artistas tidos como amadores e que não se sujeitavam à logica de mercado imposta pelo teatro comercial. Assim, “sua independência em relação às normas capitalistas adotadas pelo sistema das grandes produções, lhes garante a liberdade de criação” (TROTTA, 2008, p. 54).

Todavia, essa licença poética e ideológica gera complicadores. Usufruindo dessa emancipação, os coletivos de então passam a investir em formação e capacitação continuada, independente de objetivarem a construção de um produto cênico, gerando problemas como, por exemplo, a dilatação do tempo de criação, o aumento dos custos de produção, a necessidade de captação de recursos para além do financiamento de uma montagem, a necessidade da aquisição de um espaço que funcione como sede, dentre outras questões. Ou seja, os artistas de grupo, para gozarem de um direito, passam a necessitar mais e mais do aporte financeiro estatal, seja através de financiamento direto ou de isenção fiscal a empresas

privadas ou mistas. Para tanto, são obrigados a adequar os seus projetos às diretrizes e normas deliberadas pelo Estado.

Uma das condições recorrentes dessas diretrizes de usufruto de financiamento público é a previsão das chamadas contrapartidas sociais, que dimensionam a relevância do projeto, possibilitando – e em alguns casos sendo determinantes – a sua aprovação e execução. Essas contrapartidas ganham corpo em ações culturais das mais variadas, que abarcam diversos aspectos do fazer teatral, como nos mostra o estudo realizado por Maria Lúcia Pupo (2012):

Procedimentos lúdicos são inventados, modalidades inéditas de vinculo entre a atuação e a escrita são construídas, inovações quanto à difusão da representação são propostas. O epicentro do fenômeno teatral [...] se desloca da encenação. O teatro transborda, portanto, de suas margens até aqui consagradas: a reflexão sobre o processo de criação, a realização de oficinas, viagens, encontros, ensaios abertos, intervenções nos ambientes urbanos ampliam a envergadura daquilo que a cena dá a conhecer. (p. 153-154). Vê-se, portanto, na exigência dessas contrapartidas, uma potente via de intervenção sociocultural possibilitando que através de ações educativas de caráter não formal, executadas pelos coletivos teatrais, o teatro redimensione a sua atuação junto a outros setores da sociedade, especialmente às camadas menos privilegiadas economicamente. Isso gera benefícios para a comunidade, fortalece os vínculos desta com os grupos e promove a difusão da linguagem teatral. Paradoxalmente, essa exigência imposta pelas políticas culturais não é verificável em seleções públicas de outras áreas do funcionalismo público, o que leva alguns artistas a questionarem a obrigatoriedade dessas contrapartidas, apesar de reconhecerem a sua relevância.

Ao mesmo tempo em que a exigência de contrapartidas sociais por parte de alguns editais públicos denota um grau de juízo de valor sobre as linguagens artísticas, elas possibilitaram aos agrupamentos sistematizarem suas práticas e planejar ações de formação de caráter multiplicador, desenvolvendo uma pedagogia própria e ampliando a sua área de atuação. Esses fatores reverberam no seguinte quadro: das formas de organização que se utilizam do modelo de educação não formal como catalisador de suas práticas artísticas e formativas o Teatro de grupo é uma das que mais tem se destacado desde a década de 90.

Procurando se aprofundar nesta discussão Maria Lúcia Pupo, se atendo ao contexto paulistano, ao analisar as ações propostas por coletivos contemplados com a lei de incentivo municipal, afirma que

Um critério interessante para se examinar o significado dessa oferta pode ser sintetizado a partir da seguinte interrogação: a oficina/workshop em questão se articula organicamente com o projeto como um todo? Ela constitui efetivamente uma via de mão dupla entre os membros do coletivo e as pessoas que se dispõem a frequentá-la? Qual o grau de conexão que apresentam com processos de criação sob responsabilidade dos grupos? Objeto a priori favorável, o oferecimento de oficinas pode em alguns casos encobrir a fragilidade de determinadas propostas, mais por vezes constitui o germe privilegiado de autênticas criações em parceria. (PUPO, 2012, p. 162) Nesse sentido, poderíamos incorporar outras problematizações aos questionamentos levantados pela autora: Como o Estado que delibera a exigência de contrapartidas sociais fiscaliza a sua execução? Como aferir os resultados alcançados nessas iniciativas? Existe um interesse real do poder público em que essas ações sejam executadas a contento? O fato de exigir contrapartidas sociais indica um julgamento de que a produção/ execução de uma obra de arte per si não é relevante socialmente?

Ainda que não haja, até o momento, pesquisas que respondam a essas perguntas, o fato é que no que se refere à estruturação metodológica ou de condução desses processos pedagógicos idealizados por coletivos teatrais, não podemos falar de um modelo único preponderante. Podemos encontrar grupos com uma sistematização bem delineada, possuindo, em alguns casos, membros com formação especializada com ênfase em Pedagogia do Teatro e/ou Teatro-Educação, que respondem pelos processos artístico-pedagógicos, bem como coletivos que organizam suas práticas pedagógicas de modo intuitivo e sem nenhuma rigidez metodológica.

Esse cenário heterogêneo suscita certa desconfiança em relação ao engajamento dos grupos na promoção de ofertas de ações voltadas a essa modalidade de ensino. É realidade que boa parte dos grupos teatrais tem a Pedagogia do Teatro apenas como atividade secundária, uma vez que sua principal frente de trabalho geralmente é a pesquisa e criação de produtos cênicos, não podendo, portanto, serem considerados instituições educativas. Quando o trabalho de formação desempenhado pelo grupo ganha notoriedade e, em certos casos, um enquadramento no sistema de ensino formal, em geral de nível tecnólogo, acabam por se tornar instituições independentes, não tendo o seu funcionamento condicionado à agenda de trabalho e viagens dos membros do grupo, precisando, portanto, do aporte de profissionais parceiros.

Assim, essas práticas pedagógicas podem ser analisadas sob distintos pontos de vista: ou como resultado de um oportunismo do grupo promotor com vistas à sustentabilidade financeira de seus projetos, ou como algo resultante de uma filosofia de trabalho com o intuito de proporcionar benefícios em via de mão dupla aos agentes envolvidos.

No que concerne à primeira interpretação, a flexibilidade dos grupos, no que tange à rigidez de sistematização de seus percursos formativos, é encarada como a ilustração de certas fragilidades nessas ações. Quando são executadas em caráter de contrapartida social, um dos riscos que pode rondar essas ações é a burocratização do fazer, sendo encaradas como um desvio dos propósitos do projeto, a fim de alcançar um financiamento adequado para a sua realização.

Nesse caso, uma questão que também devemos refletir, e que me parece tão ambígua quanto a real necessidade da exigência de contrapartidas sociais por parte do poder público, é a postura ética dos profissionais envolvidos nessas ações culturais. E isso não se restringe somente às atividades educativas promovidas pelos grupos.

Natural de Vitória da Conquista, terceira cidade em número de habitantes do Estado da Bahia e ainda com pouco incentivo à formação e profissionalização dos artistas locais, pude presenciar de perto posturas de artistas renomados, que levados pelo imobilismo, transformavam os workshops e oficinas em mera burocracia institucional. Ainda que seja compreensível a indignação e certo grau de comodismo por parte desses profissionais, pelas razões aqui já expostas, não posso concordar com essas posturas. Se não suscitarmos o debate e nos rendermos à cômoda postura do imobilismo, não seremos tão corruptos quanto os políticos que muitas vezes condenamos?

A postura ética dos idealizadores e executores das propostas de práticas pedagógicas não formais, independente do lugar em que figuram em um projeto, pode resultar em contribuições efetivas não apenas para os alunos, como também para os condutores. Estes últimos, quando possuem a intenção de dar uma contribuição real para os envolvidos, promovem processos estimulantes que reverberam, inclusive, no desenvolvimento do próprio grupo promotor:

É muitas vezes dentro de oficinas teatrais com jovens e menos jovens, não raro desenvolvidas em ilhas de encontro e trocas instaladas nas periferias das grandes cidades, que emerge a matéria-prima posteriormente lapidada no percurso que leva à encenação realizada por grupos teatrais reconhecidos. Relatos apresentados oralmente pelos membros das oficinas, temas que vem à tona em situações de jogos alimentam, nesses casos, a criação artística de tais grupos. (PUPO, 2011, p. 12)

Por isso, considero que não são as condicionantes do financiamento público que determinarão o caráter do diálogo que pode ser promovido a partir do encontro-potência de membros dos grupos com os participantes de um curso de curta duração, e sim, o senso ético,

a horizontalidade nas relações, sejam elas coletivas ou colaborativas, e a disponibilidade de ambas as partes para experimentar.

Outra problematização emerge desse contexto: Se a elaboração de contrapartidas sociais surge como questão a ser revista e debatida, também é necessário fazer uma reflexão sobre o fato de que os coletivos teatrais dentro da configuração atual acabam se tornando verdadeiras “ilhas flutuantes”, como sugere Eugenio Barba. Mas, no caso brasileiro, essas “ilhas” têm cortado veementemente os vínculos com a comunidade onde estão situadas. Resguardadas as exceções, montagens contemporâneas do teatro de grupo brasileiro são muitas vezes destinadas a um número reduzido de espectadores.

A aquisição de infraestrutura mínima de financiamento e as condicionantes das políticas de formação de plateia – é recorrente exigência dos editais que os projetos contemplados mantenham os ingressos a preços populares, visando a facilidade de acesso aos espectadores com baixo poder aquisitivo – causaram no cenário cultural uma espécie de anestesia dos artistas frente à conquista e fidelização dos espectadores. Em não sendo a bilheteria determinante para a gestão do projeto, a mobilização para manter as casas de espetáculo cheias em todas as sessões passou a ser um dado flexibilizado.

Mas esses não são fatos que se restringem apenas ao cenário dos grupos teatrais. Na verdade, por seu trabalho continuado o teatro de grupo passou a ter um público cativo e admirador não apenas dos seus produtos cênicos, como também da estética e de todo o trabalho que desenvolve.

Entretanto, essas possíveis contradições derivadas do senso ético e filosófico dos agentes envolvidos em um processo formativo não diminuem a relevância dos desdobramentos políticos e pedagógicos da filosofia e prática de ações de formação em caráter de educação não formal. Especialmente nos contextos menos favorecidos, no que se refere à formação especializada, os cursos de curta-duração proporcionados como contrapartida em alguns casos surgem como única via de capacitação profissional. Ou seja, ainda que estes não devam substituir a formação proporcionada pelo ensino formal, seguramente temos nessa prática preciosos mecanismos para difundir a acessibilidade de qualificação profissional nos lugares brasileiros mais longínquos, onde a educação regular destinada à formação de profissionais das artes do espetáculo – atrofiada no que diz respeito aos recursos financeiros disponíveis, se comparada a outras áreas do conhecimento – ainda precisará de muitos anos para se estabelecer.

Assim, os coletivos teatrais, sejam como mediadores, sejam como propositores, cumprindo um papel que deveria ser do Estado, possibilitarão aos artistas vocacionados, se

não o alento de melhores condições para exercício de sua profissão, o conforto de saberem que nãos estão sozinhos na estrada.

Aponto também uma segunda interpretação possível para a flexibilidade no que tange à sistematização dessas ações por parte do grupo, que se associa ao segundo ponto de vista delineado sobre as mesmas. Essa característica também pode ser resultante das especificidades do aprendizado proporcionado pelos coletivos, que não necessariamente precisam estar articulados com os saberes e fazeres canônicos sistematizados.

Os coletivos, então, possuiriam uma práxis pedagógica própria, pautada nas suas experiências empíricas e no arcabouço teórico que fundamenta a sua corrente de pensamento filosófico ou estético. Por isso, não é raro encontrar nos percursos formativos idealizados pelos grupos, conteúdos que se relacionam diretamente com as ferramentas e procedimentos utilizados e/ou desenvolvidos no cotidiano de seus processos de criação. Essas ações seriam então vias de compartilhamento e socialização desses conhecimentos, cumprindo um papel multiplicador dos saberes difundido dentro dos coletivos. Não à toa, a execução de atividades dessa natureza se torna cada vez mais frequente dentro de encontros como festivais, mostras, colóquios, seminários, dentre outros eventos.

Assim, seja enquanto contrapartida ao financiamento de espetáculos, seja como projeto independente, não podemos negar as contribuições do Teatro de grupo para o desenvolvimento, sistematização e difusão da Pedagogia do Teatro. Essas práticas pedagógicas proporcionam geração de conhecimentos e reflexão sobre a prática artística, o que amplia a relevância do fazer artístico como agente mediador entre os objetivos do Estado e as necessidades da sociedade.