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4 OFICINÃO FINOS TRAPOS: A CRIAÇÃO COLABORATIVA EM PERCURSOS

4.2 PERSPECTIVA METODOLÓGICA – CONCEITOS ESTRUTURANTES

4.2.4 Peculiaridades do processo colaborativo no Oficinão

Balizados pela noção de dispositivo metodológico poderemos então responder a seguinte questão: Como se configura o processo colaborativo de criação no percurso formativo do Oficinão Fins Trapos e como este dialogava com o plano pedagógico proposto?

Ora, a dramaturgia da sala de ensaio foi sistematizada tendo como foco principal a criação dramatúrgica dentro de um processo fundamentalmente artístico. Essa ferramenta de criação, considerada por Roberto de Abreu “[...] uma proposta metodológica centrada na criação colaborativa em teatro de grupo, e que tangencia a noção de dramaturgia do ator, concebida por Enrique Buenaventura, ao mesmo tempo em que dialoga com conceitos do teatro contemporâneo, tais que: ator-criador, ator-performer e autoria coletiva.” (SCHETINNI, 2009, 97-98), ainda que, enquanto criação artística, não exclua um processo de educação informal, a sua sistematização não se configura em si um procedimento didático. Seria necessária uma reestruturação visando adequar o procedimento aos objetivos específicos do Oficinão Finos Trapos.

Eleonora Leal (2012) aponta uma questão interessante ao analisar o processo colaborativo como dispositivo pedagógico em dança: “Em um processo artístico essas fases podem ou não ser lineares; por isso, é impossível determinar a sucessividade dos passos para a criação. Mas como seriam essas fases quando se trata de um processo criativo colaborativo em um espetáculo didático, onde o fator tempo é determinante?” (p. 35).

Essa questão é iluminadora para compreendermos a problemática na qual estávamos envolvidos ao planejar o Oficinão Finos Trapos. A complexidade que permeia os processos colaborativos de criação cênica e dramatúrgica gera a tendência de que seus percursos criativos sejam demorados. Em geral, levam-se meses ou até anos para se chegar numa estrutura cênica satisfatória. “Gennésius..”, por exemplo, durou dois anos correspondentes à pesquisa, montagem e temporada de estreia. Ou seja, ao optar por esse dispositivo metodológico, nós idealizadores do Oficinão Finos Trapos nos impusemos um árduo desafio. Algo que, inclusive, para alguns, poderia soar a primeira vista como impossível de ser concretizado.

A solução encontrada pelo Finos foi o investimento num plano pedagógico que ao mesmo tempo em que se abrisse para o terreno obscuro próprio da criação colaborativa conservasse certo rigor metódico. Como se vê também nesse caso, as dicotomias parecem ser marca recorrente da trajetória desse grupo (ou seria do teatro de grupo como um todo?).

A visão dos monitores com vistas a perseguir os resultados pedagógicos desejados, aliada ao planejamento e organização do grupo, bem como o compromisso dos participantes – algo comum à maioria das edições do Oficinão – possibilitaram que os processos vivenciados alcançassem os resultados desejados, mesmo num curto espaço de tempo.

Para tal, um aspecto fundamental verificado e vivenciado durante as edições do Oficinão foi o seu caráter de imersão. Desde o processo seletivo até a sua finalização Finos Trapos e participantes eram levados a se disponibilizar integralmente para a experiência. Não havia grandes intervalos de tempo entre as aulas, e durante as intervenções artísticas e pedagógicas toda iniciativa de dispersão era combatida.

Em verdade, o próprio ritmo do trabalho e a quantidade de informações que tinham que lidar naturalmente fazia com que os participantes direcionassem energia apenas para as atividades propostas. Além disso, logo nos primeiros encontros tratávamos de apresentar todo o planejamento e procedimentos que seriam adotados durante o percurso formativo, além de já iniciar a prática de exercícios que dessem a dimensão do comprometimento necessário à experiência, o que contribuía para que houvesse uma seleção natural. Os que permaneciam nos encontros subsequentes eram os que compravam a ideia e/ou se identificavam com a proposta.

Um diferencial que também auxiliava na execução do curso era o fato de sempre haver mais de um instrutor em sala de aula. Todos os membros do grupo se engajavam no projeto pedagógico a partir da sua área de especialidade e interesse. Assim, enquanto um

conduzia os jogos e exercícios propostos, os demais davam suporte. Alguns, monitorando os participantes, corrigindo suas posturas corporais durante os exercícios e/ou cuidando para que realizassem de maneira adequada o que era proposto; outros, tomando nota, documentando as cenas, improvisações, e/ou a experiência como um todo, seja através de anotações, seja com registros fotográficos e/ou audiovisuais. Ademais, ainda que a relação professor-aluno fosse garantida durante o processo de aprendizagem, em todas as etapas prezávamos por amalgamar o coletivo de modo a horizontalizar o processo e garantir que a quantidade de monitores não causasse prejuízos no sentido de inibir os participantes.

Por todos esses fatores, conseguíamos atingir a meta de aliar objetivos artísticos e pedagógicos tendo como dispositivo metodológico o processo colaborativo de criação em curso de curta duração. Os números do Oficinão Finos Trapos impressionam. A primeira edição teve uma carga horária total de 64 horas/aulas, já as demais foram realizadas, cada uma, em um total de 40 horas/aulas. Em 2008 e 2012 essa carga horária foi distribuída em um período de 30 dias. Já nas três últimas edições, realizadas em 2013, toda a carga horária foi concentrada em um período que corresponde a 10 dias seguidos.

Esses indicadores ilustram bem o caráter de imersão, próprio dessa experiência. Isso possibilitava que o processo colaborativo do Oficinão se configurasse em uma célula do cotidiano de um grupo de teatro com toda a complexidade que permeia a criação compartilhada. Claro que a custo de muita dedicação, tanto por parte dos alunos, que tinham seus condicionamentos físicos postos à prova, quanto por parte dos instrutores e equipe artística, que se reuniam todos os dias antes e após os encontros para analisar os resultados e adequar os planejamentos, incluindo exercícios e disparadores criativos com base no que surgia nas improvisações e discussões durante as aulas.

Ainda que se detivesse mais concentrada na dramaturgia, encenação e interpretação, fator também peculiar à dramaturgia da sala de ensaio, a colaboração era vivenciada durante todo o tempo também em outros setores, como nos planejamentos, na produção e execução de figurinos, maquiagem, trilha sonora, dentre outros aspectos.

Um fato verificado que nos chegou através dos depoimentos dos participantes, especialmente nas edições de 2012 e 2013, foi que apresentávamos a colaboração e a filosofia do trabalho em grupo, não apenas na teoria ou na prática dos exercícios como também pela via do senso ético e coerência discurso/prática. Os alunos percebiam e se identificavam com a forma com que o grupo conduzia o processo, uma vez que a nossa prática era como uma corporificação do discurso.

Assim, além dos conteúdos serem acessados pela via cognitiva, a observação dos participantes das atitudes do grupo no pré e pós-aula enfatizava, espontaneamente, o que era teorizado durante os encontros. Rosyane Trotta (2008) também aponta os benefícios desse tipo de observação para o bom andamento do projeto artístico. Na pesquisa que originou a sua tese,

Os diálogos que acontecem em encontros informais, na mesa do bar e sem pauta, são apontados por vários entrevistados como fonte de aquecimento do trabalho – momento em que se comenta livremente o que vem sendo feito, em que se trocam impressões, em que surgem ideias e opiniões e, principalmente, em que se pode rir junto, potencializando a cumplicidade e o prazer. São momentos que ampliam a relação entre os autores e sua prática, que promovem a integração dos indivíduos ao sujeito coletivo e à obra. (p. 266)

Isso destaca bem a colaboração como dispositivo de aprendizado. Nesse procedimento a obra de arte em construção torna-se, necessariamente, um espaço de diálogo, de escuta e de entendimento entre os agentes criadores. As ideias postas e corporificadas na sala de ensaio refletem o entendimento e a integração. A falta desses dois elementos durante o processo provoca entraves que se persistentes poderão interferir decisivamente no produto final almejado.

Todo agente do processo criativo que lança uma ideia ou sugestão precisa estar triplamente preparado. Primeiro, para arguir sobre sua proposição em um debate. Depois, ter a consciência de que a obra de arte vem em primeiro plano, o que indica que a ideia proposta pode não ser aceita pelos demais criadores-autores. E por último, estar ciente de que caso a sua ideia seja incorporada à obra ela passará a pertencer ao coletivo de criadores, não podendo ser utilizada, portanto, para promoção individual.

O processo colaborativo de criação como dispositivo metodológico torna a sala de ensaio um empolgante fórum, servindo a intuitos criativos e educativos:

A sala de ensaio, que reúne todos os participantes, é o espaço público por excelência, onde se corre o risco, se lançam propostas e se debate. Os diálogos que ocorrem fora dali fazem parte do trajeto criativo e, com pauta especifica, alimentam a criação e redimensionam o material que surge em sala (TROTTA, 2008, p.266).

Mas um problema encontrado, especialmente a partir da segunda edição do Oficinão, quando investigação da dramaturgia da sala de ensaio já havia sido concluída, foi seguir todas as quatro etapas na ordem prevista na sistematização organizada por Roberto de Abreu. No formato adotado em “Gennésius”, devido ao seu caráter investigativo e com vistas

a gerar um produto cênico que entraria no circuito oficial das produções profissionais, uma etapa só era iniciada depois de um exaustivo debruçar sobre a fase anterior, o que contribuía para o alongamento do tempo de criação.

Já no contexto do Oficinão, por seu caráter didático e instrumental, não tínhamos a necessidade de longos períodos exploratórios de cada fase daquele sistema. Nosso foco primordial era apresentar o dispositivo sistematizado pelo Finos cuidando para que os participantes se apropriassem daquele procedimento a fim de o utilizarem em processos criativos futuros, preferencialmente dentro dos agrupamentos que integravam ou que desejassem fundar a partir de então. O caráter pedagógico caminhava pari passu com os intuitos artísticos.

Então, para lutar contra Cronos e atingir a dimensão estética e pedagógica da experiência, decidimos apresentar em explanação teórica os conceitos sistematizados na dramaturgia da sala de ensaio investigada em “Gennésius..”, apontando, inclusive, as fases estabelecidas. Já na experimentação prática que culminaria na mostra cênica, realizávamos uma decomposição dos procedimentos adotados nessas etapas e o agregávamos à estruturação metodológica do Oficinão. O resultado dessa decomposição corresponde ao esquema descrito a seguir:

 Ponto de Partida: o que eu quero dizer como artista? (escolha de um tema base, texto literário, imagem etc.)

 Discussão dos conceitos motores/geradores do ponto de partida escolhido e realização de experimentos cênicos (improvisações dirigidas e espontâneas);

 Organização do material teatralmente potente (extrato do que foi mais interessante dramatúrgica e cenicamente nas improvisações, tanto no que diz respeito às cenas quanto em relação a situações dramáticas suscitadas);

 Estruturação do roteiro (proposto pelo dramaturgo em parceria com o encenador e rediscutido no coletivo Oficinão);

 Montagem (estruturação da encenação) em concomitância com a criação do texto dramatúrgico;

 Produção (concepção e execução dos elementos da cena; discussão de estratégias de produção executiva/divulgação);

 Ensaio geral;

É importante destacar que essa decomposição não significa uma reordenação das etapas a serem seguidas, e sim a identificação de vetores, de linhas de força que conduziriam o processo criativo. Reiterando que como dispositivo metodológico esses vetores, ainda que disparados em momentos distintos, se imbricam, se interconectam e se bifurcam, criando uma cartografia tão complexa quanto o fenômeno da criação.

Em síntese, a dramaturgia da sala de ensaio executada durante o Oficinão, ao não se estruturar em etapas de realização e sim em linhas de força, possibilitava a otimização do tempo de trabalho. Com essa mudança, não incorreríamos no problema de esgarçarmos uma etapa durante um longo período, desprivilegiando as demais. Não destinando um tempo específico para cada etapa, privilegiava-se o ritmo da turma. Poderíamos trabalhar os pontos fracos e as peculiaridades de cada coletivo que se formava sem perder de vista os vetores determinados. Se, por exemplo, o ponto fraco da turma fosse chegar a consenso no que diz respeito ao ponto de partida, passávamos à realização de experimentos cênicos ou à organização do material teatralmente potente, e naturalmente, ao se debruçar sobre os outros vetores, o grupo conseguia vislumbrar um caminho de solução consensual para o escolha do tema base. Assim, privilegiávamos o aprendizado sem desmerecer o processo artístico.

Um belo exemplo dessa possibilidade estratégica foi o que ocorreu na etapa de Juazeiro-BA no Oficinão 2013. No momento de execução do ponto de partida, durante o debate sobre a escolha do tema a ser abordado na mostra cênica conflitos entre os participantes afloraram. Parte da turma naquele momento manifestou-se insatisfeita com a gestão do prefeito e propôs a ideia de abordarmos como tema central do espetáculo algumas discussões polêmicas sobre a administração municipal. Contudo, outros participantes eram partidários do prefeito, alguns, inclusive, eram funcionários da secretaria de cultura municipal.

Um verdadeiro impasse sobre o tema da mostra se estabeleceu.

Percebendo que a insistência no atrito e na busca de consenso apenas desgastaria ainda mais os ânimos coletivos, fragilizando as relações interpessoais dentro do coletivo que se formara para o Oficinão, decidimos partir de imediato, sem a definição clara do tema para as improvisações espontâneas e dirigidas. O diálogo corpóreo-sensorial suscitado pelos jogos e exercício de improvisação provocaram imagens que delinearam um tema que contemplava partidários e não partidários do prefeito: o imaginário coletivo sobre a cidade, os contrastes entre esses problemas urbanos com as suas belezas naturais. Assim, a partir desse encontro de ideias, pudemos prosseguir com o dispositivo metodológico que resultou mais tarde na mostra “Águas de Ferro”.