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2 PRESSUPOSTOS DE UMA PEDAGOGIA DO TEATRO DE GRUPO

2.2 O TEATRO DE GRUPO NO BRASIL A PARTIR DA DÉCADA DE 90

2.2.1 Reconfigurações na relação entre teatro e Estado

Os primeiros anos do país redemocratizado são palco de tentativas de revisão da responsabilidade do Estado para com as linguagens artísticas. Em 1985 é criado o Ministério da Cultura (Minc), na gestão do presidente José Sarney, iniciando um novo – porém, não menos conturbado – capítulo nessa relação. Desfeito em 1990, pelo governo do presidente de Fernando Collor de Mello, e reconstruído em 1992, já no governo do presidente Itamar Franco, o Minc passa a ser um dos principais fomentadores de todos os setores da cultura, principalmente através do instrumento legal Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91), que no intuito de ampliar a participação da iniciativa privada no fomento à cultura, previa, dentre outras políticas, isenções fiscais às empresas e pessoas físicas em prol do incentivo à produção e difusão de bens culturais:

O clima de instabilidade econômica e as contradições das leis de incentivo fiscal propiciaram a retomada com maior vitalidade das cooperativas teatrais. [...] Essa tendência frequente na década de 1970 voltou não de forma nostálgica, mas revigorada e com expressiva interferência no contexto sociocultural brasileiro. O Teatro de grupo tornou-se um fenômeno da cena a partir dos anos 1990, difundindo-se por toda a extensão do território nacional, como alternativa não apenas de resistir às dificuldades econômicas, mas como perspectiva de artistas, coletivamente, empreender suas atividades, preservando a continuidade de suas pesquisas. (FISCHER, 2010, p. 50).

Com a consolidação do Minc, ocorrida na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), novas ferramentas de apoio à criação artística são institucionalizadas. Editais, prêmios, reivindicações de leis de fomento municipais e estaduais

começam a fazer parte do cotidiano dos operários da cultura que agora se veem obrigados a se aproximar da máquina pública e conhecer os seus procedimentos burocráticos.

Essas alterações na dinâmica cultural criam espaço para que novos coletivos sejam criados, aflorando novamente essa prática que parecia ter perdido a razão de ser nos anos 80, considerado por muitos a década dos encenadores. Ao contrário desse senso estabelecido, Luis Fernando Ramos (2011) afirma que esse

[...] lugar-comum, repetido por duas décadas, de que assim teria sido, é compreensível se o olhar que lançarmos sobre esse período focar apenas a superfície da produção teatral. De fato, a década em questão criou as bases de todo o teatro de grupo que se afirmou posteriormente, assistindo inclusive ao desenvolvimento, de forma pioneira, de experiências de processos colaborativos de longo prazo e com resultados estéticos importantes. (p.83) Esse ponto de vista baseia-se no fato de que ainda nos anos 80, ao lado dos já citados Grupo Galpão, Imbuaça, Giramundo, Mambembe, Oi Nóis Aqui Traveis e Lume, começa a se destacar na cena teatral brasileira o trabalho de novos grupos como, por exemplo, o Boi Voador (São Paulo-SP, 1985), o Teatro de Anônimo (Rio de Janeiro-RJ, 1986), a Armazém Companhia de Teatro (Londrina-PR, 1987/Rio de Janeiro-RJ, 1999), Intrépida Trupe (Rio de Janeiro, 1988), e Os Satyros (São Paulo-SP, 1989) que liderados ou não pela figura de um encenador, se detêm no estudo de poéticas e estéticas diversificadas.

Nos anos 90, o movimento teatro de grupo então se espalha por todo país, causando uma grande efervescência cultural, proporcionando um amadurecimento técnico e estético, e cunhando uma linguagem cênica com traços indentitários marcadamente nacionais. Nesse momento, surgem outros grupos que pela qualidade de suas pesquisas cênicas logo se destacam. É o caso de nomes como a Cia dos Atores (Rio de Janeiro-RJ, 1990), Bando de Teatro Olodum (Salvador-BA, 1990), os Parlapatões, Patifes e Paspalhões (São Paulo-SP, 1991), o Teatro da Vertigem (São Paulo-SP, 1992), o Pia Fraus Teatro (São Paulo-SP, 1992), os Clowns de Shakespeare (Natal-RN, 1993), a Sutil Companhia de Teatro (Curitiba-PR, 1993), Teatro Popular de Ilhéus (1995, Ilhéus-BA), a Companhia do Latão (São Paulo-SP, 1996), Folias D’arte (São Paulo-SP, 1996), dentre inúmeros outros.

As conquistas transbordam para o início do Século XXI demarcando um momento de reafirmação do teatro de grupo, que passa a contribuir decisivamente para a organização e o desenvolvimento estético das artes cênicas brasileiras, através da promoção de encontros, seminários, festivais, fundação de cooperativas regionais e mobilização política:

A articulação dos coletivos em nível nacional se dá por meio do Redemoinho – Movimento Brasileiro de Espaço e Criação,

Compartilhamento e Pesquisa Teatral, iniciativa do Galpão Cine Horto, de Belo Horizonte, a partir de 2004. O Redemoinho logo se assume enquanto movimento político e os cerca de 70 grupos de 11 Estados, a ele ligados, reivindicam a aprovação de uma lei federal de fomento. (GUINSBURG; FARIA; LIMA; 2009, p.311).

O movimento Redemoinho, surgido na sede de um dos mais bem sucedidos grupos, foi uma grande conquista para o quadro artístico-cultural do nosso país, especialmente para os adeptos do trabalho em coletivo. Depois de algumas tentativas descontínuas de organização, finalmente os artistas grupais conseguiam se articular em rede, o que não é um trabalho nada fácil em uma nação de proporções continentais.

A fundação do Redemoinho é antecedida por outro momento particularmente importante no quadro político-cultural dos grandes centros. Em 1999, coletivos e artistas independentes paulistanos organizam o Manifesto Arte Contra Barbárie, movimento que reafirma as especificidades da arte teatral e luta contra procedimentos adotados pela Lei Rouanet, que no seu formato privilegiava uma mercantilização da Cultura:

[...] por meio de incentivo fiscal, o Estado liberava recursos não mais para os prováveis empreendedores/produtores teatrais/culturais, mas para os bancos, indústrias e grandes empresas investirem no seu marketing cultural, acreditando que eles tomariam gosto pela coisa, descobririam como isso é um bom negócio e passariam, eles próprios, a investir na cultura. Ninguém notou que ‘marketing’ é o substantivo e ‘cultural’ o adjetivo. [...] Enfim, o que é mesmo que estava se incentivando? (MOREIRA, L., 2012, p. 18-19) Depois de intensas mobilizações, os artistas conseguem encaminhar a deliberação que resultou na lei paulistana de fomento ao teatro, atualmente um dos principais mecanismos de manutenção dos Grupos sediados na cidade de São Paulo, ainda que não tenha sido este o intuito inicial.

Com resultados menos expressivos, mas de grande relevância para o desenvolvimento das microrregiões, o engajamento dos coletivos nas questões concernentes às politicas públicas para cultura é reproduzido em outros recantos do país:

No cosmos dos núcleos urbanos menores, as estruturas de trabalho coletivo dos grupos de teatro propiciam interferências na vida destes núcleos provocando uma permanente discussão de modelos culturais. Os grupos funcionam como elemento dinamizador e provocador, pois para manterem sua prática artística vêm sendo obrigados a uma permanente ação reivindicatória junto às instituições de caráter público e privado. (CARREIRA, 2002, p. 31)

A partir dessas mobilizações em escala micro e macrorregional, promovidas por artistas independentes e coletivos teatrais, conquistas no âmbito das políticas públicas foram

realizadas, proporcionando o estreitamento das relações entre artistas e poder público, bem como o desenvolvimento e a valorização do trabalho dos grupos localizados nas regiões periféricas do país, menos privilegiadas no que se refere à infraestrutura de mercado.