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CONCEITO DE VULNERABILIDADE, CÓDIGO DE DEFESA DO

TÍTULO II – A TUTELA LEGAL DO IDOSO

CAPÍTULO 2 CONCEITO DE VULNERABILIDADE, CÓDIGO DE DEFESA DO

A vulnerabilidade é um conceito que aos poucos foi sendo introduzido como medida de reconhecer a desigualdade em certas relações e como pressuposto em algumas situações justamente para garantir igualdade e isonomia.

A etimologia da palavra vulnerabilidade vem de vulnus, vulnerare, e representa a condição daquele que pode ser ferido, atingido ou limitado em suas capacidades.158

Vulnerabilidade é a qualidade de quem é vulnerável. Vulnerável, nos termos do que define Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, é o lado fraco de um assunto ou questão, e do ponto por onde alguém pode ser atacado ou ferido.159

Só há vulnerabilidade quando existe uma relação, uma ação de alguma coisa sobre algo ou sobre alguém.160

Sob o enfoque jurídico,

[...] vulnerabilidade é o princípio pelo qual o sistema jurídico positivado brasileiro reconhece a qualidade ou condição daquele sujeito mais fraco na relação de consumo, tendo em vista a possibilidade de que venham a ser ofendidos ou feridos, na sua

158 FIECHTER-BOULVARS, Frederique. La notion de vulnerabilitée sa consecration par le droit. In:

COHET-CORDEY, Frederique (Org.). Vulnerabilité et droit: le developpement de la vunerabilité e ses enjeux en droit. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2000. p. 14.

159 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 125.

160 Veja-se, por exemplo, a definição trazida pelo Código Penal sobre a vulnerabilidade. Como o Direito

Penal não admite conceitos abstratos em razão da vedação à interpretação extensiva nem o uso da analogia in malam partem, o conceito deve ser muito bem definido.

Para fins de configuração do delito de estupro (artigo 217-A), será vulnerável (i) o menor de 14 anos, (ii) toda pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato sexual ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Já para fins de configuração do delito de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (artigo 218-B do CP), será vulnerável (i) todo menor de 18 anos; (ii) alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone.

incolumidade física ou psíquica, bem como no âmbito econômico, por

parte dos sujeitos mais potentes da mesma relação.161

Vulnerabilidade, portanto, é um conceito relacionado à suscetibilidade, é uma característica que surge imediatamente quando se consagra qualquer relação em que haja um polo forte e um polo fraco, por exemplo, na relação trabalhista e consumerista.

Importa observar que vulnerabilidade é, portanto, um conceito relacional, que existe sempre que houver uma sujeição, uma fraqueza de uma parte perante a outra em determinada situação ou relação interpessoal.

Os requisitos para que se reconheça a vulnerabilidade, portanto, seriam: (i) a existência de relação fática ou jurídica entre duas pessoas; (ii) a desequiparação de uma delas em relação a outra; e (iii) a necessidade de proteção legal e estatal na relação a fim de equilibrá-la.

Por tais motivos, os conceitos de minoria, desequiparação e vulnerabilidade estão intimamente ligados, e o reconhecimento da vulnerabilidade decorre do discrímen conferido a certos grupos.

E aplicar-se-á ainda, conforme bem pontuou Canotilho, o princípio da proporcionalidade para controlar o princípio da igualdade e a forma como a desigualdade será tratada pela lei. Para tanto, Canotilho aponta três premissas:

[...] a legitimidade do fim do tratamento desigualitário, a adequação e necessidade desse tratamento para a prossecução do fim, e a proporcionalidade do tratamento desigual a relativamente aos fins obtidos (ou a obter). É o tratamento desigual, adequado e exigível para alcançar um determinado fim? Este é tão importante que possa

justificar uma desigualdade de tratamento em sentido normativo?162

Segundo o autor, reconhecidas as premissas, o Estado estaria apto tratar desigualmente determinado grupo, compensando desigualdades fáticas por meio de tratamento desigual da situação, como garantia de justiça.

161 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 125.

162 CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra:

Exemplo típico de relação desigual e norma compensatória da desigualdade em nosso ordenamento é a relação de consumo, razão pela qual o tema merece especial atenção.

A Resolução 39/248 da Organização das Nações Unidas, editada e promulgada em 1985 com o título “Guidelines for Consumer Protection”, é o primeiro diploma que reconhece expressamente a condição de vulnerável do consumidor:

1. Taking into account the interests and needs of consumers in all countries, particularly those in developing countries; recognizing that consumers often face imbalances in economic terms, educational levels, and bargaining power; and bearing in mind that consumers should have the right of access to non-hazardous products, as well as the right to promote just, equitable and sustainable economic and social development, these guidelines for consumer protection have the following objectives [...]

Ante as proporções do fenômeno de massificação e o desequilíbrio na relação contratual que se via mundo afora,163 a Constituição Federal elevou a defesa do

163 Desde o início do século XX, com a industrialização e a massificação das relações contratuais,

principalmente em razão dos então novos contratos de adesão, ficou claro que o conceito clássico de contrato não mais se adaptava às relações socioeconômicas da época.

A sociedade de consumo proporcionou muitos benefícios para os contratantes, mas trouxe também o fim do poder de barganha e do equilíbrio na relação contratual. Era o fornecedor (fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, inegavelmente, assumia a posição de força na relação de consumo e que, por isso mesmo, “ditava as regras”. O fim do voluntarismo nos contratos do Direito Privado tornava necessária a mudança das relações para procurar a realização da justiça e do equilíbrio contratual. E o mercado, por si só, não possuía mecanismos suficientes para alcançar esse equilíbrio e colocar os contraentes em relação de paridade.

Apesar da tendência mundial à “socialização do Direito Civil”, a crise da concepção clássica dos contratos e da autonomia da vontade não era tratada expressamente no Brasil. Até então, reinava a filosofia do Estado Liberal, consequentemente, não era permitido ao juiz nada além de um controle formal da ausência ou presença de vontade e de um consenso sem vícios ou defeitos. O juiz de direito não podia analisar a justiça e o equilíbrio da relação.

O vício redibitório era a forma mais acessível para anulação judicial de contratos abusivos e desproporcionais. O Código Civil previa a redibição, anulação judicial do contrato ou o abatimento no seu preço quando um bem adquirido tem seu uso comprometido por um defeito oculto, de tal forma que, se fosse conhecido anteriormente por quem o adquiriu, o negócio não teria sido realizado. O Código Civil de 1916 e o Código Comercial de 1850 não mais atendiam os anseios da sociedade, até porque várias tecnologias e práticas de mercado sequer imaginadas quando da promulgação dos Códigos Civil e Comercial já estavam em prática por todo o País sem uma legislação que fosse pertinente e acima de tudo, justa.

Por isso, era gritante a necessidade de que o Estado interviesse nas relações desequilibradas, impondo a ordem e a justiça. Era necessária a criação de uma lei capaz de satisfazer as relações jurídicas materiais sem um suporte legal que lhes explicitasse o conteúdo e que impedisse os abusos que vinham sendo praticados.

consumidor à esfera constitucional, justamente pela inegável necessidade de remediação econômica e jurídica pelo Estado.

A Constituição Federal de 1988 dispõe no artigo 5.º, inciso XXXII, que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Ainda, no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o legislador determinou que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará Código de Defesa do Consumidor”. Já no artigo 170, inciso V, determinou a Constituição que a defesa do consumidor é “princípio geral da atividade econômica”, equipando-a com princípios como a soberania nacional, propriedade privada etc.164

Nas palavras do Professor Eros Grau:

[...] a defesa do consumidor pode ser considerada como um princípio constitucional impositivo (Canotilho), a cumprir dupla função, como instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna e objetivo particular a ser alcançado. No último sentido, assume a função de diretriz, dotada de caráter constitucional conformador, justificando a reivindicação pela realização de políticas públicas.165 O consumidor é reconhecido como sujeito de direitos fundamentais e deve, portanto, ser protegido. O Código de Defesa do Consumidor se propõe a restringir e regular, por meio de normas imperativas, o espaço antes reservado para a autonomia da vontade,166 instituindo como valor máximo a equidade contratual, impondo uma nova valorização de princípios, dos valores de justiça e de equidade.

O Código de Defesa do Consumidor trata especificamente da vulnerabilidade no artigo 4.º, inciso I, ao reconhecer que todo consumidor é vulnerável. Trata-se de

164 ALVIM, Arruda et al. Código do Consumidor comentado. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 13.

165 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica da Constituição de 1988. São Paulo: RT, 1991. p. 252-

253.

166 O modelo de intervencionismo estatal já estava presente em sociedades de capitalismo avançado,

como Estados Unidos, França, Bélgica, já que nenhum país do mundo protege seus consumidores apenas com o modelo privado. Todos, de uma forma ou de outra, possuem leis que, em menor ou maior grau, traduzem-se em um regramento pelo Estado daquilo que, conforme preconizado pelos economistas liberais, deveria permanecer na esfera exclusiva de decisão dos sujeitos envolvidos. O intervencionismo estatal surge no Brasil, na prática, por meio da fiscalização e controle de certos negócios jurídicos e pela fixação de cotas e preços mínimos. No entanto, aos poucos, o intervencionismo estatal evolui de modo a fomentar a edição de leis limitadoras do poder de autorregular determinadas cláusulas (p. ex.: cláusulas de juros) e ditar o conteúdo daqueles contratos em atividades imprescindíveis (transporte, fornecimento de água, luz).

característica implícita a todo consumidor, é um estado de sujeição. “É uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal.”167

A vulnerabilidade é o eixo central de onde partem todas as relações de consumo. Trata-se de fator estruturante do Código de Defesa do Consumidor para proteger o elo mais fraco da relação. Para Bruno Miragem, a vulnerabilidade é o princípio básico que fundamenta a existência e aplicação do direito do consumidor.168

Ninguém menos do que Henry Ford, pai da produção em série, é autor da frase que melhor explica a razão pela qual se deve equilibrar a relação de consumo: “o consumidor é o elo mais fraco da economia; e nenhuma corrente pode ser mais forte do que seu elo mais fraco”.

De acordo com Jean Calais-Auloy:

A existência do direito do consumidos baseia, na minha opinião, sobre uma tripla constatação: a) os consumidores estão naturalmente em posição mais fraca em relação aos fornecedores; b) a lei tem a função de proteger o fraco conta o forte; c) o direito civil clássico é impotente

para assegurar a proteção dos consumidores.169

Assim, a vulnerabilidade, no âmbito consumerista, nada mais é do que o fruto do equilíbrio existente entre o conhecimento profissional de posse dos fornecedores e a ausência desse conhecimento por parte dos consumidores. Nas palavras de Marcelo Gomes Sodré:

Com o desenvolvimento tecnológico e a produção em massa de produtos, a posição do consumidor se mostrou extremamente sujeita a todo tipo de riscos. Desde problemas de saúde e segurança, já que os consumidores não são informados a respeito dos mesmos, até prejuízos econômicos com a existência de práticas ou cláusulas abusivas e inteligíveis.170

167 NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 65.

168 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2014.

p. 121.

169 SODRÉ, Marcelo Gomes. A construção do direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2009. p. 30. 170 Idem, ibidem, p. 34.

A vulnerabilidade é a forma como o consumidor pode ser “atacado” dentro da sociedade de consumo, o que pode ocorrer de diversas maneiras, sofrendo pressões que invadem a sua privacidade, na maioria das vezes sendo o alvo de maciças publicidades que criam necessidades de consumo antes inexistentes.171 Daí a conclusão de que o consumidor é naturalmente vulnerável, tendo em vista que está diariamente sofrendo influências da sociedade, mais precisamente dos fornecedores.

Diante dessa conjuntura percebeu-se que o consumidor estava desassistido, e, por isso, necessitava de uma proteção legal, pois é utópica a possibilidade de autocomposição entre os integrantes das relações de consumo sem a intervenção estatal. Baseado nessa vulnerabilidade do consumidor, foi iniciado um movimento no âmbito internacional com o intuito de reequilibrar as relações entre consumidores e produtores. No ano de 1985 a ONU pela resolução 39/248 “baixou norma sobre a proteção do consumidor [...] reconhecendo expressamente ‘que os consumidores se deparam com desequilíbrios em termos econômicos, níveis educacionais e poder aquisitivo’ (Almeida, 2002, p. 5)”.172

Assim, a Lei se torna verdadeira limitadora e legitimadora da autonomia da vontade, evitando privilégios aos mais fortes e opressão e exclusão dos mais fracos da sociedade de consumo. É verdadeiramente um Código de Proteção e Defesa do Consumidor (conforme artigo 1.º da Lei 8.078/1990).

A autonomia da vontade permanece como princípio norteador, mas a função social do contrato e a boa-fé objetiva passarão a ocupar condição de elemento nuclear nas relações contratuais consumeristas.173

De acordo com Rizzato Nunes, “não será possível interpretar adequadamente a legislação consumerista se não se tiver em mente esse fato de que ela comporta um subsistema no ordenamento jurídico, que prevalece sobre os demais [...]”.174

171 BESSA, Leonardo Roscoe. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor: análise crítica da relação

de consumo. 2. ed. São Paulo: RT, 2009.

172 Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8648/o-principio-da-vulnerabilidade-e-a-defesa-do-

consumidor-no-direito-brasileiro#ixzz2Puk4mhFz>.

173 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT,

2002. v. 1, p. 160-176.

O Código de Defesa do Consumidor é lei principiológica, que confirma para as relações de consumo todos os princípios constitucionais, a começar pelo princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da igualdade.

Feitas essas observações sobre a vulnerabilidade no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que se conclui ser reconhecida expressamente no microssistema ali existente, fica nítida a justificação do tratamento desigual que o Código conferiu às partes na relação de consumo, que nada mais é do que garantir que as partes estejam, ao menos formalmente, diante de um contrato paritário.

A questão que resta aberta, e não se restringe apenas à seara consumerista é: se reconhecida que determinada classe ou grupo de pessoas é vulnerável, não se estariam colocando todos os vulneráveis na mesma vala? Como diferenciar o grau de vulnerabilidade dentre os vulneráveis?

Explica-se por meio de um exemplo: se o CDC não se presta a tutelar de maneira especial nenhum dos consumidores, ao contrário, coloca todos os consumidores em patamar de isonomia, como garantir igualdade àqueles consumidores que são desiguais?

O tema, que será trazido em capítulo próprio, abordará a necessidade/pertinência de reconhecer a vulnerabilidade dentre os vulneráveis, a chamada hipervulnerabilidade.