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TÍTULO II – HIPERVULNERABILIDADE

CAPÍTULO 2 O IDOSO COMO HIPERVULNERÁVEL

Demonstrados a existência e o reconhecimento da hipervulnerabilidade pela Doutrina e pelos precedentes do Superior Tribunal de Justiça, cumpre expor o tema e a correlação especificamente com os idosos.

Além do tratamento diferenciado que a Constituição Federal concedeu ao idoso, o Estatuto do Idoso reconhece a sua vulnerabilidade em diversos dispositivos. O idoso é vulnerável, pois assim quis o legislador pátrio.

A hipervulnerabilidade será constatada quando, somada à vulnerabilidade prevista na Constituição Federal e no Estatuto, existir previsão de outra vulnerabilidade, determinada por uma condicionante diversa da característica de idoso. Por isso, o idoso será hipervulnerável na relação de consumo e na relação trabalhista.

O Tribunal do Rio Grande do Sul vem sedimentando entendimento quanto à hipervulnerabilidade do idoso nas relações de consumo:

Recurso inominado. Responsabilidade civil. Consumidor. Complexidade inexistente. Revelia corretamente decretada. Contratação de empréstimo consignado em 36 parcelas. Réu que consolida o contrato em 60 parcelas. Vulnerabilidade técnico-jurídica do consumidor. Prática abusiva. Hipervulnerabilidade [idoso]. Danos morais in re ipsa. Valor mantido. Recurso improvido (Recurso Cível 71003485463, 3.ª Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Rel. Fabio Vieira Heerdt, j. 26.04.2012).

Recurso inominado. Processual civil. Consumidor. Turismo. Pacote de viagem. Cancelamento por motivo de doença. Possibilidade de detecção da condição de hipervulnerabilidade. Pleito de devolução integral das parcelas. Cerceamento de prova evidenciado. Sentença de improcedência desconstituída. A regra legal, nos JECs, é a de realização de audiência de instrução e julgamento, quando então serão apresentadas as provas, máxime quando a parte autora postula pela dilação probatória, face ao exíguo prazo concedido para que fossem acostados documentos (48 h). Em se tratando de contrato submetido ao manto do CDC, embora presumida jure et jure a vulnerabilidade do consumidor, deve-se permitir a prova em concreto da chamada

hipervulnerabilidade, quando se trate de consumidor idoso, criança

ou adolescente, ou doente mental, caso invocado pela autora. Mesmo

que não pudesse o fornecedor detectar a hipervulnerabilidade da consumidora quando da contratação, por se tratar de pessoa sedizente bipolar, depois de arguida essa condição na esfera

administrativa, é preciso averiguar se a normal condição de

vulnerabilidade não foi exacerbada, em ofensa à boa-fé objetiva.

Recurso provido (Recurso Cível 71003151529, 3.ª Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Rel. Fabio Vieira Heerdt, j. 27.09.2011). Contrato bancário. Nulidade do contrato de crédito consignado. Idoso:

hipervulnerabilidade agravada pela surdez e o analfabetismo.

Impressão digital e assinatura a rogo como causas concorrentes da nulidade. Imprescindibilidade de instrumento público. Dano moral: a prática de um ato por parte do banco, que o CDC qualifica como “abusivo”, qual o de aproveitar-se da fragilidade do idoso, implica, por inferência lógica, que houve lesão também ao Estatuto do Idoso. Aproveitar-se das suas visíveis fragilidades materializa violação ao CDC e à regra do respeito à senectude. Devolução corrigida das parcelas descontadas. Provido o recurso (TJRS, 23.ª Câmara Cível, Apelação Cível 70059723601, Rel. Ana Paula Dalbosco, j. 16.12.2014).

O Tribunal de Justiça do Paraná também já se manifestou em ação consumerista reconhecendo os idosos como hipervulneráveis:202

Na interpretação dos contratos, destacadamente os de natureza adesiva, tem-se pacificada a diretriz hermenêutica no sentido de interpretar cláusula genérica, dúbia ou de pouca clareza em desfavor de quem as ditou (artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor). Isso porque se infere, ainda mais em contrato de seguro de saúde, que a parte contratante possui conhecimento limitado do teor e o alcance das estipulações inalteráveis e uniformes.

Merece uma análise aprofundada este aspecto, ainda mais aliado ao fato de se tratar de relação de consumo, onde a parte contratante pode ser considerada hipervulnerável, segundo doutrina de Adolfo

Mamoru Nishiyama e Roberta Densa, por ser consumidora idosa,

demonstrada a peculiaridade em questão a partir de duas perspectivas básicas:

a) a diminuição ou perda de determinadas aptidões físicas ou intelectuais que o torna mais suscetível e débil em relação à atuação negocial dos fornecedores; b) a necessidade e catividade em relação a determinados produtos ou serviços no mercado de consumo, que o coloca numa relação de dependência em relação aos seus fornecedores. (A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes.

202 Ação cominatória cumulada com pedido liminar de antecipação de tutela e danos morais. Recusa de

cobertura de tratamento oncológico sob o argumento de que seria experimental. Cláusula contratual expressa que garante tratamento quimioterápico. Prescrição médica que atenta às peculiaridades do histórico de saúde da paciente. Interpretação de cláusula geral de exclusão de cobertura pautada pelos princípios da boa-fé e justiça contratual. Contrato de saúde de natureza adesiva sujeito aos princípios maiores da dignidade da pessoa humana, da função social do contrato e da vulnerabilidade do segurado. Recurso conhecido e desprovido (Apelação Cível 2011.026971-8, Blumenau, Rel. Des. Ronei Danielli).

Revista do Consumidor, São Paulo: RT, ano 19, n. 76, p. 27, out.-dez. 2010) (grifos nossos).

E também o Tribunal de Justiça de São Paulo:

Ação declaratória de inexistência de débitos c/c indenização por danos morais e anulação de ato jurídico. Contratação fraudada e desconto da parcela do benefício previdenciário recebido pelo autor. Responsabilidade da instituição bancária reconhecida. Aplicação da Súmula 479 do STJ. Dano moral. Configuração. Autor idoso e

dependente de parcos rendimentos previdenciários.

Hipervulnerabilidade. Desassossego anormal vivenciado. Valor da indenização. Reparação arbitrada em R$8.000,00. Verba honorária fixada em 15% do valor da condenação. Aplicação do disposto no art. 20, § 3.º, do CPC. Recurso provido (Rel. Miguel Brandi, São Paulo, 7.ª Câmara de Direito Privado, j. 15.04.2015, registro: 27/05/2015). Apelação cível. Ação anulatória de negócio jurídico c.c. pedido de suspensão de desconto de valores em folha de proventos. Tese. Compra de colchão. Autor que teria sido abordado em sua residência por vendedores oferecendo colchão magnético. Consumidor hipervulnerável. Analfabeto e idade avançada. Valor da parcela mensal descontada que se concilia a outro negócio. Empréstimo consignado. Sentença de improcedência. Insurgência. Conjunto probatório que não favorece a versão narrada na inicial. Hipossuficiência à qual não se conjuga verossimilhança por falta de elementos mínimos à natureza do negócio jurídico que afirmou o autor haver operado. Inviabilidade da inversão do ônus da prova. Requeridas em contrato de empréstimo consignado. Parcela de prestação em base aproximada de 30% da aposentadoria. Negócio jurídico que prepondera e que vincula as partes. Prova no sentido de que pessoa da confiança (familiar) assistiu o autor no empréstimo e existência de documento indicando o depósito do crédito em sua conta. Recurso não provido (Rel. Hélio Nogueira, Araraquara, 22.ª Câmara de Direito Privado, j. 03.07.2014, registro: 03.07.2014).

É fácil a visualização do idoso como ser que precisa de maior proteção, seja pela fragilidade que lhe assola psicologicamente por estar no final da vida, seja pela nítida fraqueza física e motora que o tempo causa.

Além disso, “a inserção do idoso no cenário jurídico-social brasileiro representa a justiça social aos que, portadores ou não de deficiência, de enfermidades,

debilidades, representaram e representam valor cultural e humano importante para a continuidade da vida”.203

Para Cristiano Heineck Schmitt, será especialmente na seara contratual em que veremos exposta uma intensa vulnerabilidade do consumidor idoso perante o fornecedor, daí falarmos em hipervulnerabilidade como um paradigma a ser adotado na proteção do indivíduo mais fragilizado.204

Os planos de saúde ao consumidor idoso muitas vezes não cobrem o tratamento de que o consumidor precisa e o coloca nas filas intermináveis do Sistema Único de Saúde, mesmo tendo pagado honestamente seu plano de saúde durante a vida toda. É fácil visualizar a condição do idoso de hipervulnerabilidade quando se fala em planos de saúde e seus aumentos abusivos e contínuos em contrapartida à fragilidade do consumidor já no fim de sua vida.

Além disso, é comumente constatada a falta de informação clara ao consumidor idoso nos contratos de empréstimos consignados com elevadíssimas taxas de juros e propagandas enganosas.

Cristiano Heineck Schmitt demonstrou “ser necessária uma fiscalização mais aprofundada sobre a justiça negocial em contratos de consumo celebrados com pessoas idosas”.205

Claudia Lima Marques sustenta, no que se refere ao idoso, que:

Tratando-se de consumidor idoso (assim considerado indistintamente aquele cuja idade está acima de 60 anos) é, porém, um consumidor de vulnerabilidade potencializada. Potencializada pela vulnerabilidade fática e técnica, pois é um leigo frente a um especialista organizado em cadeia de fornecimento de serviços, um leigo que necessita de forma premente dos serviços, frente à doença ou à morte iminente, um leigo que não entende a complexa técnica atual dos contratos cativos

203 CAMARANO, Ana Amélia; PASIANTO, Maria Teresa. Introdução. In: CAMARANO, Ana Amélia

(Org.). Os novos idosos brasileiros: muito além dos 60?. Rio de Janeiro: IPEA, 2004. p. 2-3.

204 SCHMITT, Cristiano Heineck. A hipervulnerabilidade do consumidor idoso. Revista de Direito do

Consumidor, ano 18, n. 70, p. 142, abr.-jun. 2009, p. 45.

205 SCHMITT, Cristiano Heineck. A hipervulnerabilidade do consumidor idoso. Revista de Direito do

de longa duração, denominados de planos de serviços de assistência à saúde ou assistência funerária.206

Isso sem contar os consumidores idosos que têm como fornecedor de saúde o Estado: mortes nas filas dos hospitais, falta de medicação, tratamentos precários e dor nos momentos finais de vida. Como negar que esse consumidor precisa de proteção especial?

A Doutrina reconhece a hipervulnerabilidade do idoso no mercado de consumo a partir de dois aspectos principais: (i) diminuição ou perda de aptidões físicas e intelectuais que o torna mais suscetível e débil em relação à atividade negocial (que nada mais é do que uma hipervulnerabilidade fática); e (ii) a dependência de determinados produtos e serviços, bem como a catividade, tornando-o consumidor idoso ainda mais suscetível e submisso ao fornecedor.207

Demonstrou-se, ao longo da primeira parte deste trabalho, que os idosos muitas vezes foram tratados como inferiores pela sociedade e que não tiveram o tratamento digno e compatível com sua condição. A elevação da expectativa de vida e consequentemente o aumento do número de idosos no Brasil e no mundo fizeram com que os holofotes se voltassem para eles, e a preocupação sobre o tema crescesse consideravelmente.208

Ficou nítida a especial e diferenciada proteção concedida aos idosos em todos os ramos do Direito pátrio, os quais, de certa forma, garantem tutela especial ao idoso, seja no tocante aos seus deveres como cidadão e contribuinte, já atenuados por conta da idade, ou quanto aos seus direitos, estendidos por conta da redução das aptidões motoras, laborais e psicológicas.

O idoso não pode ser considerado mero vulnerável, assim como o é todo consumidor. Ademais, essa vulnerabilidade, que pode ser chamada de agravada ou

206 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais. 4. ed. rev. e ampl. Incluindo mais de 1.000 decisões jurisprudenciais. São Paulo: RT, 2002. p. 44.

207 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais. 4. ed. rev. e ampl. Incluindo mais de 1.000 decisões jurisprudenciais. São Paulo: RT, 2002. p. 44.

potencializada, não se restringe ao âmbito do direito do consumidor. A hipervulnerabilidade do idoso, assim como ocorre com a vulnerabilidade do consumidor, deve ser encarada como algo intrínseco à sua condição, para todos os atos da vida em sociedade, em juízo ou fora dele, enquanto demandante ou demandado. Os idosos são vulneráveis porque assim determinou o legislador constitucional e infraconstitucional.

Em situações específicas, quando, além da vulnerabilidade determinada pela Constituição Federal e pelo Estatuto, existir outra determinação de vulnerabilidade (como ocorre com os consumidores), haverá uma dupla vulnerabilidade: a hipervulnerabilidade. E reconhecer a hipervulnerabilidade do idoso, assim como da criança e do adolescente, do índio e do portador de necessidades especiais nessas situações é garantia de igualdade.

Os termos vulnerabilidade agravada, vulnerabilidade potencializada e hipervulnerabilidade são mais comumente vistos na seara consumerista, em que existe expressa previsão de vulnerabilidade do polo mais fraco da relação. Entretanto, algumas decisões proferidas pelos Tribunais pátrios e Superior Tribunal de Justiça já reconhecem a hipervulnerabilidade em outros casos que não consumeristas, conforme decisões trazidas nos capítulos anteriores sobre os índios e portadores de necessidades especiais.

A hipervulnerabilidade pode existir em todos os ramos da vida do idoso, do índio, do deficiente e da criança e do adolescente, desde que haja dupla condição de vulnerabilidade apurada pela lei e pelo caso concreto.

Reconhecida a condição de idoso, automaticamente se estará em face de um vulnerável, pois trata-se de um cidadão que não mais possui as aptidões de um não idoso, e que precisa de proteção por toda a sociedade, pela família, pelo Estado. Prioridade de tramitação processual, prioridade em filas, tratamento diferenciado ao realizar compras e vendas, ao contrair matrimônio, ao ser preso etc.

Em matéria judicial, caberá ao magistrado, no caso concreto, auferir a existência dessa dupla vulnerabilidade, o que dará azo ao reconhecimento da hipervulnerabilidade e tratamento ainda mais diferenciado e protetivo àquele litigante.

O fato é que a hipervulnerabilidade não é retórica, é realidade. O desafio não circunda a temática hipervulnerabilidade do idoso, que é reconhecida e tende a estar cada vez mais presente em todos os ramos da vida em sociedade como garantia de tratamento desigual aos desiguais. O desafio é delimitar quem são os idosos e a partir de qual momento serão hipervulneráveis, sem que o tratamento diferenciado comece antes do necessário ou depois do devido, conforme abordado na Parte I deste trabalho.