• Nenhum resultado encontrado

CONCILIAÇÃO ENTRE TRABALHO E EDUCAÇÃO E CUIDADO DAS CRIANÇAS PEQUENAS

Vimos, especialmente a partir das pesquisas brasileiras sobre família que acabamos de apresentar (pesquisas essas que têm, sobretudo, focalizado as relações de gênero), que a necessidade de se conciliar trabalho e educação e cuidado das crianças pequenas vem se acentuando com a maior inserção das mulheres e mães no mercado de trabalho.

Se pensarmos nos efeitos ou impactos que a política de EI poderia ter na articulação entre trabalho e família, a creche surge como uma importante rede de apoio social com forte impacto positivo.

[...] a eficácia deste mecanismo [atendimento em creches em tempo integral] em facilitar a conciliação entre demandas do trabalho e da família é notável com repercussões importantes no aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, na renda e na ampliação da jornada de trabalho. Este impacto positivo ocorre, em geral, em todas as classes sociais. (SORJ, FONTES, MACHADO, 2007, p. 5).

Entretanto, no Brasil, diferentemente do que ocorre em países da Comunidade Européia, a articulação entre família e trabalho parece não ser reconhecida como um problema social relevante, obtendo fraca legitimação social e política, permanecendo, ainda, sobretudo como assunto privado, na medida em que ocorre desenvolvimento insuficiente de políticas públicas que possibilitem uma

84 maior conciliação entre o trabalho e o cuidado com as crianças (SORJ, FONTES, MACHADO, 2007).

A aprovação pelo Parlamento Europeu, em março de 2004, de uma resolução sobre a conciliação entre vida profissional, familiar e privada, pode ser citada como exemplo de como outros países têm buscado promover políticas que favoreçam essa articulação. Nessa resolução (PARLAMENTO EUROPEU, 2004), se solicitou e recomendou, aos Estados-Membros e aos que aderirem à Comunidade Européia, que, por exemplo:

• procurem proporcionar aos pais uma maior liberdade de escolha com relação às modalidades de cuidado/EI, oferecendo benefícios, isenções fiscais, incentivos que auxiliem a família;

• criem, até 2010, serviços de atendimento com qualidade, para no mínimo 33% das crianças com menos de 3 anos;

• procurem encorajar e flexibilizar a diversidade de modalidades de EI proporcionando maior escolha por parte das famílias, bem como, procurando responder às preferências e necessidades das crianças e de seus pais;

• facilitem o acesso às licenças parentais remuneradas, respeitando a autonomia de escolha dos pais;

• busquem assegurar o princípio de igualdade de remuneração entre os trabalhadores masculinos e femininos, para que decisões sobre licença parental e outras licenças para o cuidado das crianças possam ser tomadas com base nessa igualdade.

Para além de propiciar a articulação entre trabalho e família e promover maior igualdade entre homens e mulheres, o que a legislação oferece, ou não, às mães e pais que trabalham, em termos de licença após o nascimento do bebê, diz respeito também a como a sociedade concebe o bebê e suas necessidades.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê licença maternidade, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias e licença paternidade de cinco dias após o nascimento ou adoção do filho, com ônus para o empregador.

85 Em 9 de setembro de 2008, foi sancionado pelo Presidente da República o projeto de autoria da Senadora Patrícia Saboya, que permite que a licença- maternidade seja prorrogada por mais sessenta dias mediante concessão de incentivo fiscal às empresas da iniciativa privada47.

A prorrogação da licença maternidade é facultativa tanto para as mulheres quanto para as empresas.

Inicialmente elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria48, em

parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o projeto de lei aprovado pautou-se pela necessidade de promoção e defesa dos direitos das crianças, mas também, e, com muita ênfase, na necessidade de se garantir o estreitamento do vínculo mãe-bebê e a amamentação até os seis meses de vida do bebê. A concepção que embasa a prorrogação da licença maternidade é a de que o melhor para o bebê é permanecer junto à sua mãe em casa sendo amamentado.

Às mulheres que optem pela prorrogação da licença, será vedado que inscrevam seus bebês em creches ou outras modalidades de EI durante os dois meses adicionais.

A fala do presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, Dioclécio Campos Júnior, intitulada Maternidade - a importância do vínculo afetivo, publicada no Jornal Correio Braziliense em 10/05/2006 e divulgada no site da entidade, apresenta uma concepção de como o bebê deve ser educado/cuidado, na qual a criança é vinculada à mãe e o pai não é sequer citado.

Na esteira desse avanço [o ingresso da mulher no mercado de trabalho], algumas mudanças de costumes revelaram-se inelutáveis. A maior delas se deu na maternidade, alterada pelas novas atribuições que a mulher passou a ter. A função maternal perdeu relevo, dispõe de pouco tempo. O binômio mãe-filho cedeu lugar ao bebê solitário, habitante de creches, cuidado por babás ou pela tia de todos. O aleitamento materno substituiu- se por alternativas artificiais de alimentação. Essa realidade nega direitos à mulher e à criança. Direitos cuja doutrina se fortalece à medida em que a ciência mostra o caráter essencial da relação mãe-filho nos primeiros

47Deve-se salientar que 80 municípios e 8 estados brasileiros já possuíam leis próprias ampliando

a licença-maternidade para 6 meses, mesmo antes da aprovação do projeto.

48 Visando obter assinaturas e pressionar o Senado para que o projeto fosse aprovado, a

Sociedade Brasileira de Pediatria desenvolveu a campanha Licença-maternidade: 6 meses é

86 tempos da existência da criatura. (CAMPOS JÚNIOR, 2006, versão eletrônica).

Mais recentemente, em fevereiro de 2010, a Comissão da Câmara dos Deputados, que analisa a Proposta de Emenda à Constituição 30/07, aprovou, por unanimidade, o aumento da licença maternidade de 120 dias para 180 dias, em caráter obrigatório, devendo ser a proposta ainda encaminhada para votação no plenário da Câmara e, posteriormente, enviada ao Senado.

Com relação à licença-paternidade, o projeto de lei que prevê sua ampliação de cinco para quinze dias, de autoria também da senadora Patrícia Saboya, ainda aguarda aprovação no Congresso Nacional. Apesar de ainda não aprovado, tem sido adotado por algumas instituições, como a Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, e a Caixa Econômica Federal, e governos como os de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Amapá que vêm concedendo a ampliação aos funcionários públicos.

Os cinco (ou 15) dias de licença-paternidade e os seis meses de licença- maternidade revelam a enorme desigualdade de gênero em nosso país. Consolida-se, com esse abismo, o monopólio feminino dos prazeres, encargos e sacrifícios com os filhos. Reforça-se, também, a falta de respeito e de reconhecimento da importância do exercício da função paterna. (GOLDENBERG, 2007, p. A3).

Destacamos que na pesquisa de Galvão (2008), os homens-pais entrevistados criticaram a insuficiência ou adequação do período de cinco dias previstos em lei, embora não tenham se mobilizado para que este direito fosse revisto. Para alguns, a licença deveria variar de 10 a 15 dias, para outros ela deveria ser equivalente ou superior ao período de 1 mês. Apenas um pai entrevistado considerou que a licença paternidade deveria ser equivalente à da mulher.

88 3.1.3 CONSENSOS E DISSENSOS ENVOLVENDO AS POLÍTICAS E PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL

A educação e o cuidado da criança pequena compreendidos como responsabilidade que deve ser compartilhada por toda a sociedade constituem ainda um consenso relativo e novo na sociedade brasileira.

Segundo Haddad (2006), para que a El se efetive enquanto um sistema integrado de educação e cuidado de qualidade, onde a educação e cuidado da criança pequena deixe de ser uma atribuição somente familiar e do âmbito do privado, é necessária uma mudança de paradigma que requer:

• uma redefinição dos papéis e da relação entre o Estado e a família no que diz respeito à infância;

• o reconhecimento de que a criança tem o direito de ser cuidada e socializada em ambiente social mais amplo que a família;

• o reconhecimento de que a família tem o direito de dividir com a sociedade a educação e o cuidado das crianças;

• o reconhecimento de que cuidar e educar crianças pequenas em contexto institucional são atividades profissionais que devem promover o desenvolvimento global das crianças.

Como aponta Rosemberg (2007b), a mobilização social pela expansão da oferta de vagas em creches de qualidade, para crianças de 0 a 3 anos, integrando educação e cuidado e respondendo, ao mesmo tempo, ao direito das crianças à educação e ao direito dos pais, principalmente ao das mães, de exercer uma atividade profissional, é um consenso que vem sendo construído a partir da década de 1970 e que, apesar de ter sido legitimado por textos legais (BRASIL, 1988, 1996, 2007), não se encontra, ainda, totalmente implementado.

A partir dos anos 1970, grandes transformações sócio-econômicas, culturais e demográficas, como vimos, começaram a questionar o que era consensual até então: o cuidado e a educação da criança pequena constituíam uma atribuição exclusiva da família, especialmente das mães. O Estado e a sociedade identificavam que somente algumas crianças (abandonadas, órfãs,

89 necessitadas) deveriam receber cuidado e educação em instituições coletivas (ROSEMBERG, 2007b).

A crescente inserção profissional das mulheres, a possibilidade de planejamento familiar com conseqüente queda de fecundidade, a urbanização intensa, a queda da mortalidade infantil, novas concepções de criança e a organização dos movimentos de mulheres e de luta por creches contribuíram para que a creche passasse a ser reconhecida enquanto reivindicação social e direito da mulher trabalhadora.

Ainda em pleno regime militar, o Estado implementou uma política de expansão intensa da oferta de vagas, com forte caráter assistencialista e baseado em uma concepção de educação compensatória voltada para o atendimento da população pobre.

Como Haddad (2006) destaca, embora as reivindicações sociais tenham sido, de certa forma, acolhidas naquele período, elas foram incorporadas principalmente às políticas sociais e não às políticas educacionais, sobretudo no que diz respeito ao atendimento das crianças de 0 a 3 anos.

Segundo Rosemberg (1999, 2002), essas políticas implementadas, tanto no Brasil quanto em outros países subdesenvolvidos, sofreram os efeitos perversos de modelos dito não-formais, com baixos investimentos por parte do poder público, defendidos e divulgados por organismos multilaterais como UNICEF, UNESCO e Banco Mundial.

A opção por expandir a educação infantil através de um modelo não-formal apoiado nos baixos salários de professoras leigas, prioritariamente para as regiões Norte e Nordeste, diferenciou o padrão de oferta do atendimento não só quanto ao desenvolvimento regional, mas, também, aos segmentos raciais. Esses programas atingiram principalmente as crianças negras, principais usuárias de creches públicas e conveniadas. (ROSEMBERG, 2006c, p. 9).

Com o término do regime militar e a abertura política no Brasil, a mobilização social, através da atuação do movimento de mulheres e do movimento pelos direitos das crianças e dos adolescentes, foi fundamental para que a Constituição de 1988 reconhecesse a creche como um direito à educação da criança pequena (ROSEMBERG, 1999).

90 Com a formulação de novas propostas de políticas nacionais de EI, orientadas por pesquisadores que já se interessavam pelo tema, o perfil assistencialista de atendimento em creches foi sendo questionado. Apesar disso, somente com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, é que a creche e a pré-escola foram reconhecidas como primeira etapa da educação básica.

Apesar dos avanços da Constituição Brasileira de 1988, da LDB de 1996, dos documentos, de 1993 e de 2003, de Política Nacional de Educação Infantil do MEC que visavam garantir um atendimento de qualidade com a equivalência entre creches e pré-escolas, ambas reconhecidas como instituições de educação e cuidado, as políticas são tensas, contraditórias. Isto é, apesar de suas conquistas em termos de legislação, a EI vem sofrendo, há anos, os impactos de investimentos insuficientes e mesmo pertencendo à mesma etapa educacional, creche e pré-escola vêm recebendo tratamento bastante diferenciado.

Com a instituição, em 1996, do FUNDEF – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Fundamental e de Valorização do Magistério -, ficou evidente a priorização do ensino fundamental pelos municípios, estados e governo federal, em detrimento do investimento em creches e pré-escolas.

Mesmo com pesquisadores da área e economistas (CARVALHO, KAPPEL, KRAMER, 2001; IPEA, 1999, 2007a; NERI, 2005) apontando o alto índice de retorno social (por exemplo, impacto na escolaridade futura e no mercado de trabalho) e financeiro quando se investe em EI, segundo análises do IPEA (1999, 2007a, 2007b), o financiamento da educação no Brasil nos últimos anos, vem apresentando instabilidade com elevações e recuos nos gastos educacionais. Os gastos do MEC em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) variaram de 1,44% em 1995, 1,22% em 2000 para somente 1,03% em 2005. O baixo investimento em educação49 foi ainda mais acentuado na primeira etapa da educação básica, com

49 Pereira (2007) chama, também, nossa atenção para a comparação entre o montante gasto no

Brasil em publicidade dirigida ao público infantil – R$ 210 milhões segundo o IBOPE - e o investimento no Programa Federal de Desenvolvimento da Educação Infantil (FNDE) – aproximadamente 28 milhões. A criança pequena, pouco atendida em suas necessidades educacionais, parece, entretanto, ser considerada e valorizada como consumidora.

91 as creches recebendo o menor investimento dentre todos os níveis de ensino e, mesmo internamente à EI, também recebendo menos investimento que as pré- escolas.

Além de ter sido o nível educacional que menos cresceu na década de 90 (ROSEMBERG, 2006d), a EI é o que apresenta o mais baixo custo médio anual por aluno do sistema educacional brasileiro: US$ 820,00, sendo que o do ensino superior era de US$ 10.000,00 em 2000 (segundo dados da OCDE apud ROSEMBERG, 2006d).

Apesar de ter como objetivo a elevação e distribuição de forma mais racional dos recursos em educação, a lei do FUNDEB - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – que foi, finalmente, promulgada em dezembro de 2006, substituindo o FUNDEF, modifica os critérios de financiamento, proporcionando investimentos também em educação básica, inclusive em creches, mas mantém, ainda, diferenças quanto aos níveis de investimento.

Através da Emenda Constitucional nº 53, o FUNDEB insere-se na Constituição Federal, estimando beneficiar cerca de 48,1 milhões de estudantes após sua total implementação. A Emenda Constitucional nº 53 adéqua também a redação do artigo 7º, parágrafo XXV, e do artigo 208, entre outros, da Constituição Brasileira, com a garantia de “[...] assistência gratuita [como dever do Estado] aos filhos e dependentes [de trabalhadores urbanos e rurais] desde o nascimento até cinco [e não mais seis] anos de idade em creches e pré-escolas” (BRASIL, 2007, versão eletrônica).

O FUNDEB prevê, também, a fixação de um valor mínimo nacional por aluno para cada etapa e tipo de modalidade e estabelecimento de ensino, bem como a definição de um piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público, visando promover a melhoria da qualidade de ensino, assegurando um padrão mínimo definido nacionalmente.

Em abril de 2007, algumas alterações foram aprovadas e as instituições de EI conveniadas com o poder público foram também inseridas no FUNDEB com vistas ao recebimento de recursos.

92 É importante ressaltar que as creches, e posteriormente, as instituições conveniadas, só foram incluídas no FUNDEB após importante mobilização e pressão de vários atores sociais (pesquisadores da área, políticos, mídia, movimentos sociais), para que essas decisões, em benefício da criança pequena, fossem assumidas. Sem esse movimento, as creches teriam sido excluídas do FUNDEB e não receberiam parte desses recursos.

O debate envolvendo a aprovação do FUNDEB escancarou as tensões e dissensos na negociação de políticas públicas educacionais. Segundo Rosemberg (2007a), com a aprovação desse novo fundo, a sociedade brasileira reafirmou “em parte” seu compromisso com a causa da EI, visto que, ao mesmo tempo em que as creches, inclusive as conveniadas, foram incluídas no FUNDEB, o montante de recursos a elas destinado se manterá ainda em um patamar inferior ao que será repassado ao ensino fundamental.

Com base nos baixos investimentos e na insuficiente oferta de creches de qualidade, Rosemberg (2006b, 2007b) apreende um descaso histórico e pouca mobilização política da sociedade brasileira para com as necessidades e direitos das crianças pequenas.

Do ponto de vista da oferta de vagas e da qualidade, observam-se iniqüidades sócio-econômicas, regionais e etárias:

• como já citamos, quanto maior a renda familiar e o nível de escolaridade dos pais, maior a chance de uma criança pequena freqüentar creche - em 2008, a taxa de freqüência à creche mostrava-se bastante superior entre as crianças de 0 a 3 anos pertencentes às famílias com rendimento superior a 3 salários mínimos per capita (46,2%) quando comparada à taxa de freqüência entre crianças de mesma idade pertencentes às famílias com renda de até ½ salário mínimo per capita (18,5%) - (IBGE, 2009);

• crianças residentes na região Sudeste do País têm mais chance de freqüentar creche que aquelas que moram na região Norte - segundo dados da PNAD de 2006, enquanto na região Sudeste 19,2% das crianças entre 0 a 3 anos freqüentavam creche, na região Norte apenas 8% das crianças tinham acesso a esse serviço (IBGE, 2007);

93 • apesar de encontrarmos crianças pequenas freqüentando mais creches públicas que particulares - segundo dados da PNAD de 2006 (IBGE, 2007), das crianças brasileiras de 0 a 3 anos de idade freqüentando creche, 57,7% freqüentavam a rede pública, enquanto 42,3% tinham acesso à rede particular -, algumas cidades apresentam histórico de atendimento educacional público praticamente inexistente para essa população. Mota e Albuquerque (2002), em pesquisa sobre demanda por EI no município de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, constataram que, em 1998, não havia sequer uma creche pública no município e que somente em 2002, o município passou a contar com a sua primeira creche pública.

• a região Nordeste é a que apresenta os piores indicadores de qualidade, com maior índice de professoras leigas recebendo piores salários e trabalhando em creches com piores condições de infra-estrutura (ROSEMBERG, 2006d);

• de forma geral, muitas creches brasileiras ainda não apresentam condições mínimas de infra-estrutura para atender às necessidades dos bebês e crianças pequenas. Somente 55,8% dessas instituições contam com parque infantil e apenas 23,5% apresentam espaço diferenciado para troca de fraldas. A oferta de material didático também é insuficiente: somente 84,1% das creches contam com brinquedos, 58,1% utilizam livros de literatura e 61,7% possuem material para expressão artística (BRASIL, 2000).

• a freqüência à creche por parte de crianças de 0 a 3 anos de idade é ainda muito baixa (18,1%), como já destacamos, quando comparada à taxa de freqüência das crianças maiores que freqüentam a pré-escola (79,8%) (IBGE, 2009).

A pré-escola tem se aproximado, cada vez mais, da formalização do ensino fundamental50 com elevada taxa de cobertura, enquanto a creche pública, que procura se integrar ao sistema educacional, ainda caminha lado a lado com

50 Rosemberg (2009c) tem debatido os impactos da Emenda Constitucional 59/09, que instituiu a

obrigatoriedade da matrícula/freqüência da educação pré-escolar para crianças de 4 e 5 anos e do ensino médio para jovens de até 17 anos. Para a autora, tal emenda, não só, provocaria uma cisão e distanciamento ainda maiores entre a pré-escola e a creche, tanto em termos de políticas quanto de investimentos, mas também alteraria a “...concepção consagrada pela Constituição de 1988 da EI como uma opção da família...” (p.1).

94 políticas de tipo familiaristas (creches domiciliares e programas de educação de pais, especialmente voltados para as mães) que parecem ressurgir financiadas, agora, por recursos da EI e no âmbito das políticas educacionais (ROSEMBERG, 2006b, 2006c).

Para Rosemberg (2002), os modelos alternativos propagados pelos organismos multilaterais continuam a exercer influência e a ameaçar a EI no Brasil. Podemos citar, como exemplo, o programa Primeira Infância Melhor (PIM) que vem sendo implementado pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul com grande divulgação.

O PIM se baseia no programa “Educa a tu hijo”, que tem servido de referência para a América Latina como um programa de política familiarista e de atendimento domiciliar. No PIM, visitadores (em grande maioria mulheres) percorrem os domicílios explicando aos pais, especialmente às mães ou outros cuidadores, como estimular a criança desde o nascimento, além de esclarecerem dúvidas sobre saúde, alimentação e higiene.

Alguns dos responsáveis pela implementação do PIM se vangloriam do fato do programa “ser mais barato” do que a implementação de creches, mas se esquecem que além de não liberar as mulheres para o exercício de atividades extrafamiliares, o que implica na manutenção de desigualdades de gênero, o programa acaba por reforçar a idéia de que o bebê deve e pode ser cuidado em casa pela mãe ou por outra mulher que a substitua, além de também não assegurar às crianças o direito à educação de qualidade em ambientes coletivos com a interação entre pares.

O descaso social em relação às crianças pequenas não é revelado apenas por dados referentes ao atendimento em creches. Outros indicadores, como por exemplo, mortalidade vinculada à falta de saneamento básico e índices de desnutrição (NERI, 2007b; ROSEMBERG, 2005b), também nos fornecem pistas de como a infância brasileira vem sendo “maltratada” pelas políticas públicas e de como não estamos, de forma geral, nos mobilizando adequadamente para defender e assegurar os direitos das crianças pequenas. “A análise de um amplo

95 espectro de indicadores sociais consolida a imagem das crianças como o grupo