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Em seu livro Ideologia e Cultura Moderna (2002), John B. Thompson descreve a proposta metodológica da hermenêutica de profundidade (HP) que atua como referencial metodológico, nesta investigação, não somente para análise das entrevistas, mas também para a estruturação do texto da tese.

Embora pesquisadores do NEGRI venham utilizando o interessante referencial teórico de Thompson (2002), baseado em uma concepção crítica do conceito de ideologia, em estudos especialmente relacionados com a análise da produção de discursos pela mídia (ANDRADE, 2001; FREITAS, 2004; BIZZO, 2008, entre outros), não me pareceu ser essa proposta teórica a mais adequada para utilização como referencial nesta tese. Assim, optei por utilizar somente a proposta metodológica de Thompson, já que ela pode ser integrada e se articular com outras teorias.

Segundo a hermenêutica43, os sujeitos se inserem ativamente em um mundo social e histórico tecendo redes de significados que são transmitidos a outros sujeitos e que os constituem enquanto humanos. Assim, para Thompson (2002), as formas simbólicas (falas, entrevistas, textos, imagens, ações) podem ser compreendidas e interpretadas por serem construções significativas e contextualizadas. No caso específico desta investigação, considerei as

43 Para desenvolver o referencial metodológico da HP, Thompson apoiou-se no referencial da

hermenêutica, uma tradição clássica grega de pensamento que foi bastante transformada e desenvolvida por filósofos dos séculos XIX e XX – especialmente Dilthey, Heidegger, Gadamer e Ricoeur.

71 transcrições das entrevistas realizadas com as mães de bebês como formas simbólicas que foram descritas e interpretadas.

Quando interpretamos formas simbólicas, nos propomos a interpretar campos pré-interpretados. Daí a hermenêutica como método. Porém, a pré- interpretação efetuada pelos sujeitos (pesquisador e entrevistados) não ocorre em vazio social.

Para esse autor, “[...] o objeto-domínio da pesquisa sócio-histórica é um campo pré-interpretado em que os processos de compreensão e interpretação se dão como uma parte rotineira da vida cotidiana das pessoas que, em parte, constituem esse domínio.” (THOMPSON, 2002, p. 32-33; grifo do autor).

Na pesquisa sócio-histórica, trabalhamos com um campo que não se trata de um campo objetivo, um campo-objeto, mas sim com um campo-sujeito-objeto em que os próprios sujeitos significam, procuram compreender, expressar-se e reagir frente aos outros. O campo é rotineiramente alterado pelos sujeitos que o constituem. Procuramos re-interpretar um campo já pré-interpretado pelas pessoas que fazem parte do mundo sócio-histórico. Trata-se de uma realidade já interpretada pelos sujeitos que produzem, transmitem ou recebem as formas simbólicas que analisamos (no caso desta tese, as entrevistas das mães).

Na perspectiva da HP, as interpretações que as mães entrevistadas produziram sobre campos pré-interpretados (em especial, sobre o bebê, sua educação e cuidados) foram descritas e re-interpretadas pela pesquisadora, ela própria, um sujeito que também atribui significado à vida social e que também produziu pré-interpretações sobre o tema desta pesquisa antes mesmo de entrevistar as mulheres-mães.

O modo como os sujeitos do campo sócio-histórico interpretam as formas simbólicas deve ser considerado pela HP. A “hermenêutica da vida quotidiana” segundo Thompson, é uma base importante para se iniciar a análise.

Através de entrevistas, observação participante e outros tipos de pesquisa etnográfica, podemos reconstruir as maneiras como as formas simbólicas são interpretadas e compreendidas nos vários contextos da vida social. É evidente que essa reconstrução é, ela própria, um processo interpretativo; é uma interpretação do entendimento quotidiano – ou, como o denominarei, uma interpretação da doxa, uma interpretação das opiniões,

72 crenças e compreensões que são sustentadas e partilhadas pelas pessoas que constituem o mundo social. (THOMPSON, 2002, p. 363-364, grifo do autor).

A interpretação da doxa, apesar de imprescindível, não é o ponto final. Devemos avançar para além dessa interpretação ou re-interpretação, considerando na análise outras características das formas simbólicas, como sua estrutura e sua contextualização sócio-histórica.

O referencial metodológico da HP compreende três fases - análise do contexto sócio-histórico de produção, transmissão e recepção das formas simbólicas, análise discursiva e interpretação/re-interpretação - que serão descritas a seguir.

• Análise sócio-histórica: nessa fase, o pesquisador procura identificar e descrever as condições sociais e históricas de produção, circulação e recepção das formas simbólicas analisadas, já que elas são fenômenos sociais contextualizados, produzidos, veiculados e recebidos sob condições específicas. A contextualização sócio-histórica é necessária e devemos, ao realizá-la, estar atentos às características típicas dos contextos sociais, isto é, a:

• situações espaços-temporais - as formas simbólicas são produzidas e transmitidas por sujeitos situados em uma dada época, em um dado local, e recebidas por outros também situados em locais e épocas específicos;

• campos de interação - podemos analisar as posições e trajetórias que determinam as relações entre as pessoas e a quantidade e qualidade de recursos e “capital” disponíveis e acessíveis, bem como regras e convenções. Campos de interação são “estruturados”, pois são caracterizados por assimetrias de recursos e de poder44. Não só

a subordinação de classe deve ser considerada na análise, mas

44 Segundo Bourdieu (apud THOMPSON, 2002, p. 195), um campo de interação pode ser

conceituado, sincronicamente, como um espaço de posições e, diacronicamente, como um conjunto de trajetórias. Indivíduos particulares estão situados em determinadas posições dentro de um espaço social e seguem, no curso de suas vidas, determinadas trajetórias. Essas posições e trajetórias são determinadas, em certa medida, pelo volume e distribuição de variados tipos de recursos ou “capital”.

73 também as assimetrias de gênero, raça, entre nações e também, entre idades e gerações. De acordo com a posição que uma pessoa ocupa em um campo de interação, ela pode empregar certo tipo de estratégia de valorização simbólica. Se o sujeito ocupa uma posição que pode ser considerada como dominante - com amplo acesso a recursos e capital - ele tende a adotar estratégias como distinção, menosprezo e condescendência ao produzir ou “avaliar” formas simbólicas; já os sujeitos ocupando uma posição considerada intermediária - com acesso a somente certos tipos de recursos ou capital ou em quantidades limitadas - podem agir com moderação, pretensão ou desvalorização frente às formas simbólicas que produzem ou recebem, e, aqueles com uma posição considerada como subordinada - com acesso restrito a recursos e capital ou com acesso a quantidades mínimas de recursos - podem adotar uma estratégia de praticidade, resignação respeitosa ou rejeição em relação às formas simbólicas produzidas ou recebidas;

• instituições sociais - devemos reconstruir as regras, recursos e relações que podem permear ou regular os relacionamentos entre as pessoas nas instituições; analisá-las no tempo e em suas práticas através das pessoas que as representam. As instituições sociais estão situadas dentro de campos de interação, mas também os criam, por estabelecerem novas posições e trajetórias. Mesmo ações e interações que ocorrem fora de instituições específicas podem ser também influenciadas por regras e recursos;

• estrutura social - sua análise nos permite voltar o olhar para as divisões e assimetrias de poder ou recursos que podem ocorrer nas interações entre as pessoas. As assimetrias estáveis e sistemáticas, diferenças coletivas e não só individuais devem ser consideradas, especialmente as que se mantém no tempo e que impedem o acesso de alguns aos recursos ou ao poder. Essas assimetrias podem caracterizar tanto os campos de interação quanto as instituições

74 sociais. A análise aqui é mais teórica e deve considerar assimetrias de classe social, raça, gênero, nações, idade;

• meios técnicos de construção de mensagens e transmissão - para que as formas simbólicas possam ser “trocadas” entre as pessoas é necessário algum meio de transmissão. Os meios de transmissão implicam em diferentes características - possibilidade dos sujeitos participarem, grau de fixidez, grau de reprodutibilidade - para as formas simbólicas. Assim como as formas simbólicas, os próprios meios de transmissão também estão inseridos em contextos sócio- históricos específicos no tempo e no espaço, também são submetidos a tipos e quantidades de recursos e capital diversos, a regras e convenções e são desenvolvidos, muitas vezes, em instituições e em certos campos de interação.

Nesta pesquisa, as formas simbólicas que analisei foram as entrevistas produzidas em um dado contexto sócio-histórico, a partir da interação entre a pesquisadora e as mães de bebês, durante encontros realizados no município de São Caetano do Sul, em 2009 e início de 2010, com base em práticas e políticas públicas sobre EI e concepções sobre infância e bebê no Brasil contemporâneo. Todos esses temas, pré-interpretados por diversos atores sociais (mães de bebês entrevistadas, pesquisadora, academia, mídia, governo, movimentos sociais e organizações internacionais) participaram também do contexto de produção das entrevistas.

- Análise formal ou discursiva: estudo da estrutura, dos padrões, da articulação e das relações das formas simbólicas compreendidas enquanto construções significativas estruturadas que dizem alguma coisa sobre algo. O pesquisador, durante a análise formal ou discursiva, se preocupa com a organização e com a estrutura interna da forma simbólica, com seus padrões, relações e características estruturais. Ele não deve tomar isoladamente os dados provenientes dessa fase de análise, mas deve relacioná-los com os dados da fase anterior, para não perder a contextualização das formas simbólicas, e também, com os da fase posterior, para através da re-interpretação, poder identificar o que

75 as formas simbólicas estruturadas e contextualizadas expressam em termos de sentido e significado.

Como cabe a cada pesquisador identificar quais procedimentos mostram-se mais adequados para o objetivo de sua pesquisa, utilizei, para a análise formal das entrevistas, o conjunto de técnicas propostas pela análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (1977) e Rosemberg (1981) e o apresentarei no quarto capítulo deste trabalho.

- Interpretação/re-interpretação: nesta fase da HP, o analista procura explicitar o que a forma simbólica “diz” ou “representa”, ou seja, interpretá-la. A interpretação se constrói a partir das fases anteriores de análise, mas também avança, procurando interpretar uma forma simbólica com base nas suas condições sociais de produção, circulação e recepção e também em suas características estruturais.

Nesta investigação, a re-interpretação se construiu a partir dos debates sobre infância e da proposta teórica de Bloch e Buisson (1998, 1999) articulados com a análise sócio-histórica e com os resultados da análise formal das entrevistas.

Ao oferecer uma interpretação das formas simbólicas, estamos re- interpretando um campo pré-interpretado e, assim, engajando-nos num processo que, por sua própria natureza, faz surgir um conflito de interpretações. (THOMPSON, 2002, p. 34-35).

A possível ocorrência de um conflito de interpretações (entre a pré- interpretação dos sujeitos e a re-interpretação do analista) é o que abre a possibilidade para o que Thompson (2002) descreve como “potencial crítico da interpretação”.

Na investigação social, quando o analista propõe uma interpretação, essa interpretação pode ser apropriada pelos sujeitos que constituem o campo-sujeito- objeto e provocar alterações no campo no processo de apropriação. Para Thompson, pode ocorrer uma “relação de apropriação potencial”, de retro- alimentação potencial. Os resultados de uma análise social podem ser

76 apropriados pelos sujeitos, mesmo que, em muitos casos, isso não ocorra ou não produza transformações efetivas nesse campo-sujeito-objeto estudado.

A interpretação [...] pode possibilitar que as pessoas vejam as formas simbólicas diferentemente, sob uma nova luz e, por isso, que se vejam a si mesmas de modo diferente. Pode capacitá-las a re-interpretar uma forma simbólica em relação às condições de sua produção e recepção, em relação às suas características estruturais e organização. Pode capacitá- las a questionar ou revisar sua compreensão anterior da forma simbólica e, com isso, alterar os horizontes da compreensão de si mesmas e dos outros. (THOMPSON, 2002, p. 38).

Thompson (2002) descreve essa possibilidade de transformação interpretativa das crenças, comportamentos e atitudes cotidianas dos sujeitos que constituem o mundo social, como a transformação interpretativa da doxa.

Para esse autor, a preocupação deve estar na interpretação (na apresentação de mais uma interpretação ou re-interpretação possível) e não na explicação, pois não estamos atrás de relações de causa e efeito.

Analisando as formas simbólicas podemos chegar à re-interpretações plausíveis e aceitáveis, nunca incontestáveis. Por isso, faz-se necessária uma boa argumentação que justifique e dê sustentação à re-interpretação do analista.

Para se garantir a dialogicidade, devemos buscar interpretações justificadas que possam passar pelo escrutínio do outro. É fundamental a argumentação e a explicitação do caminho percorrido durante a análise, para que os leitores possam acompanhar como foi possível a construção daquela dada re-interpretação.

No processo de interpretação/re-interpretação, deve-se evitar o que Thompson (2002) chama de “falácia do reducionismo”, ou seja, o erro de se considerar que as formas simbólicas possam ser interpretadas somente em função de seu contexto sócio-histórico. Deve-se evitar também a “falácia do internalismo” – ao se tomar os métodos da análise formal ou discursiva isoladamente, supondo-se que as formas simbólicas possam ser interpretadas somente a partir da sua estrutura interna, sem se considerar o contexto sócio- histórico onde elas se inserem e as próprias interpretações e compreensões quotidianas que os sujeitos do campo sócio-histórico apresentam. Todas as fases devem se relacionar e não podem ser analisadas em si mesmas.

77 A proposta metodológica da HP de Thompson (2002) permitiu, não só, que eu adotasse um método de trabalho para a análise das formas simbólicas (as entrevistas das mães), mas também me auxiliou a estruturar a apresentação da pesquisa. Tanto as teorias quanto o método, apresentados neste segundo capítulo, quanto o contexto sócio-histórico (educação e cuidado da criança pequena no Brasil contemporâneo), que será desenvolvido no terceiro capítulo, constituíram o contexto de produção das entrevistas, no que diz respeito não só às perguntas da pesquisadora, mas também, às respostas das entrevistadas.

78 CAPÍTULO 3 - CONTEXTO SÓCIO- HISTÓRICO

Para a elaboração da síntese sobre o contexto sócio-histórico, que apresento a seguir, parti da bibliografia encontrada por Lima (2004) para começar a desenvolver meu trabalho.

Outros estudos que também serviram de referência para a redação desta tese foram, em sua maioria, localizados a partir de pesquisa bibliográfica realizada nas Bibliotecas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Fundação Carlos Chagas e também através de consulta às seguintes bases de dados: Dedalus, Scielo, Lilacs, Google, Google Acadêmico, Unibibliweb (acervos da Universidade de São Paulo e da Universidade de Campinas), resumos no banco de dissertações e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), teses e dissertações na biblioteca digital do Instituto Brasileiro de Ciência e Tecnologia (IBICT), artigos publicados na Revista Brasileira de Educação e disponíveis no site da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.

As bases de dados foram consultadas inicialmente no mês de julho de 2004 e atualizações no levantamento bibliográfico foram realizadas em agosto de 2006, em março de 2007, no primeiro semestre de 2008 e, mais recentemente, nos meses de agosto e setembro de 2009.

A busca se deu a partir do cruzamento dos seguintes descritores: demanda, escolha, mãe, criança pequena, bebê, mulher trabalhadora, creche, educação infantil e Sociologia da Infância.

Muitos dos textos utilizados, como base para o debate sobre infância e políticas públicas, vêm norteando as discussões no NEGRI. Sobre educação infantil consultei também a Bibliografia selecionada sobre educação infantil brasileira: 1988-2006 (ROSEMBERG, 2006e). Foi possível também localizar bibliografia pertinente ao estudo através da verificação de referências citadas por outros pesquisadores no material consultado.

79 3.1 EDUCAÇÃO E CUIDADO DA CRIANÇA PEQUENA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

A literatura aponta (CHAMBOREDON, PRÉVOT, 1986; ROSEMBERG, 2007b) que as novas concepções sobre EI são tributárias de mudanças sociais importantes na família, especialmente em decorrência dos movimentos de mulheres, e mudanças nas concepções de criança, tema tratado no capítulo 2. As modificações nas relações de gênero e na concepção de criança pequena (como apontadas, entre outros autores, por NEYRAND, 1999, 2000), foram fundamentais para que a educação e o cuidado da criança pequena passassem a ser realizados também em instituições coletivas.

Neste capítulo, vamos analisar o contexto sócio-histórico da ótica das políticas e práticas de EI no Brasil, abordando: as principais transformações que ocorreram nas famílias brasileiras tanto em termos de composição quanto de valores; a necessidade de conciliação entre trabalho e educação e cuidado das crianças pequenas; os consensos e dissensos envolvendo as políticas e práticas de EI; os estudos sobre demanda por modalidades de EI.