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O pequeno acesso das crianças de 0 a 3 anos, e em especial de bebês, às vagas em creche no Brasil e a desigualdade em termos de oferta, qualidade e investimento nos leva a questionar:

• quais motivos estariam impedindo/dificultando as crianças pequenas de freqüentarem creche?

• será que algumas mães/pais não querem creche para seus filhos? Será que as mães/pais indicam a creche somente para as outras crianças que não são seus filhos?

A definição de uma demanda quantitativa ou a utilização de um indicador de demanda por creche não parece ser tarefa muito fácil. A Lei nº 14.127, do município de São Paulo, de janeiro de 2006, instituiu a criação de um cadastro único da demanda por vagas no ensino público. Entretanto, os Conselhos Tutelares da cidade, bem como, promotoras de Justiça, vêm questionando os números apresentados pela Secretaria Municipal de Educação.

Em 18 de março de 2009, foi instaurado inquérito civil com o intuito de obter esclarecimentos sobre o processo de recadastramento de crianças que aguardavam vaga em creche e pré-escola no município de São Paulo. Em recadastramento que a Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo realizou no 2º semestre de 2008, a demanda por vagas em creche no município seria de 57.607 e de 14.585 em pré-escolas. Em outro cadastro anteriormente divulgado, a demanda quantitativa por vagas em creche e pré-escola era de 158.000 vagas. A retirada de 86.000 crianças de 0 a 6 anos do novo cadastro foi o que motivou a abertura do inquérito, segundo as promotoras.

Acessando o cadastro eletrônico da Secretaria Municipal de Educação, o que se verifica é que a demanda ali registrada está muito abaixo da que se sabe real. Para constatar a demanda potencial basta comparar o número

97 total de crianças de 0 a 3 anos com o número de crianças matriculadas em creches. (MONTEIRO, 2007, p. 28).

Embora possa se tratar de uma demanda “potencial”, o número total de crianças de 0 a 3 anos que não estão freqüentando creche não corresponde por si só à demanda por vagas. Visto que a creche é um direito da criança, mas não é obrigatória, pode-se supor que nem todas as famílias desejam ou optarão pela creche para seus filhos como modalidade de EI.

Rosemberg (2001) aponta para a diferenciação entre dois tipos de demanda, a explícita e a latente:

A demanda é uma necessidade sentida e expressa. Ela pode ser explícita ou latente: a explícita é avaliada através da procura de um serviço. A demanda latente é aquela que não se expressa espontaneamente, por alguma razão (distância entre domicílio e equipamento, qualidade ou tipo de serviço oferecido etc). A única forma de aferição da demanda latente é a realização de enquetes específicas. No Brasil são raríssimos, quase inexistentes, os estudos sobre demanda: não sabemos quais as modalidades de serviços preferidos pela população e qual a extensão da demanda latente. Não dispomos de instrumentos para avaliar qualquer tipo de demanda, além da extensão da “lista de espera”. (ROSEMBERG, 2001, p. 25).

As listas de espera ou cadastros têm apontado uma elevada demanda explícita por creche, mas pesquisas tipo survey ou qualitativas revelam ambigüidades. Múltiplos discursos sobre a criança pequena, sobre a creche e sobre qual seria a melhor forma de EI podem revelar diferentes demandas.

No Brasil, ainda poucos estudos têm investigado as escolhas por modalidades de EI (ROSEMBERG, 2002). Esses estudos são de dois tipos: macro - através de surveys incluindo perguntas sobre a freqüência ou não à creche e os motivos pela eventual não freqüência - e micro – mais qualitativos e entrevistando um menor número de pessoas.

Como vimos, tanto em um tipo de pesquisa quanto em outro, a crença, de que a criança pequena deve ser cuidada e educada em contexto privado e doméstico, aparece com força no Brasil, especialmente entre as famílias de menor renda (CEDEPLAR/UFMG, 1999; DELGADO, 2005; LIMA, 2004). Esses estudos têm apontado também para a prevalência, nos discursos das famílias, de uma

98 diferenciação entre o que se considera adequado para crianças bem pequenas e para aquelas maiores de 3 anos.

[...] 81,79% dos entrevistados consideram que a melhor forma de criar filhos de até 3 anos de idade é na própria casa, com mãe, pais e irmãos, e, para as crianças entre 4 e 6 anos de idade, a educação na creche/pré- escola em horário parcial é a opção de maior preferência entre os entrevistados (72,32%). (CEDEPLAR/UFMG, 1999, p.17).

Delgado (2005), Torres e Silva (1998 apud DELGADO, 2005) e Lima (2004) apontam que os setores mais populares com rendimentos baixos e menor escolaridade tendem a apresentar uma procura por uma educação mais familiarista na escolha da modalidade de educação e cuidado, deixando as crianças com uma outra pessoa ou com parentes que cuidem da criança em casa ou em ambiente semelhante ao doméstico, como com uma “mãe crecheira”, em uma creche domiciliar. Mães que optaram por essas modalidades de EI preferem que a “mãe crecheira”, em uma creche domiciliar, atenda um pequeno número de crianças para que elas possam receber maior atenção, como a que receberiam em suas próprias casas. Já, as mães que optaram por deixar seus filhos em casa com um parente consideram que somente essas pessoas da família é que poderiam transmitir segurança, amor, carinho e atenção na relação com a criança. Além disso, com essa opção, essas mães procuravam evitar que valores estranhos ao contexto familiar fossem transmitidos às crianças por outros adultos.

No estudo de Lima (2004), bem como no de Galvão (2008), os adultos entrevistados e que não optaram pela creche como modalidade de EI para seus filhos apresentavam uma concepção bastante negativa sobre a instituição, a considerando como “[...] ‘um lugar ruim e triste’, isto é, um local de abandono e carente de afetividade” (LIMA, 2004, p. 138).

A Consulta sobre qualidade da educação infantil (CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO, 2006), que entrevistou 254 crianças de 5 e 6 anos e 882 adultos (incluindo pais e mães usuários e não-usuários de 53 creches e pré- escolas públicas, particulares e sem fins lucrativos, profissionais e comunidade), a maioria pertencentes às camadas populares, em 4 estados brasileiros (Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), apreendeu que, possivelmente,

99 a não freqüência de crianças à creche ou pré-escola estaria sendo sustentada por uma concepção familiar de que a criança ainda seria muito nova para essa freqüência, de que não haveria necessidade para a criança ingressar na creche, ou, ainda, pela falta de vagas ou de estabelecimentos.

Moro (2002), em sua pesquisa de mestrado intitulada Infância e educação infantil pública: concepções maternas, também procurou investigar motivos para a não freqüência de crianças menores de 6 anos à creche. Nesse estudo descritivo, a autora realizou entrevistas coletivas com 30 mulheres-mães de camadas populares51, residentes no município paranaense de São José dos Pinhais, sendo que 15 entrevistadas haviam optado pela creche pública como modalidade de EI para seus filhos e outras 15 não. As que não haviam matriculado seus filhos na creche apresentavam uma rede de apoio maior dos que as que tinham optado por essa instituição e apontaram como principais motivos para essa decisão “quero acompanhar o crescimento; sempre tive alguém para ajudar; optei por trabalhar em casa; você não sabe como é o tratamento; não estou precisando trabalhar; não consegui vaga” (p. 101). Ao avaliarem as creches municipais, essas mesmas mães criticaram a localização e a inadequação de seu horário de funcionamento às necessidades ou expectativas das famílias. Elas prefeririam horários mais flexíveis para a entrada ou saída das crianças e até mesmo que o atendimento na creche fosse oferecido também em meio-período.

Em sua investigação, Moro (2002) também procurou conhecer os motivos pelos quais algumas mães haviam optado pela creche como modalidade de EI para seus filhos e obteve as seguintes respostas: “para começar a trabalhar; minha mãe não podia ficar; acabaram levando meus filhos para a creche [por uma questão de extrema vulnerabilidade da família].” (p. 101). Segundo essa autora, essas mães apresentavam mais informações sobre aspectos educacionais da creche do que aquelas que não haviam optado por essa modalidade.

As mães entrevistadas por Lima (2004), e que também haviam optado por matricular seus filhos na creche, expressaram conceitos positivos sobre a

51 Apenas quatro mulheres entrevistadas por Moro (2002) declararam renda superior a 5 salários

100 instituição, considerando-a como um ambiente seguro, rico em estimulações e uma “extensão do lar”. Essas concepções ou avaliações positivas também puderam ser apreendidas, de certa forma, quando a grande maioria das famílias de crianças matriculadas em creche ou pré-escola ouvidas na Consulta sobre qualidade da educação infantil (CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO, 2006) revelou que seus filhos gostavam de freqüentar a instituição e, também, na pesquisa de Martinez (1998) com relação à escola52/creche particular.

Em sua pesquisa, Martinez (1998) acompanhou o ingresso de cinco crianças com idades variando de 1 ano e 3 meses a 3 anos de idade em uma creche particular no município paulista de São Carlos, a partir de observações dos momentos em que essas crianças chegavam e eram recebidas pela escola nas quatro primeiras semanas de ingresso escolar.

Além das observações e de entrevistas com a diretora, professoras e outras profissionais da creche, Martinez (1998) realizou também entrevista semi-dirigida com quatro mães e dois pais das crianças. Todos os pais e mães entrevistados apresentavam escolaridade superior e pertenciam às camadas médias.

Essa pesquisadora identificou diferentes motivos que levaram os pais entrevistados a optarem pela creche/escola particular como modalidade de EI para seus filhos. Os pais esperam que essa instituição promova uma aceleração no desenvolvimento de seus filhos em diferentes áreas (social, afetiva, cognitiva e da comunicação) e, além disso, “[...] é valorizada pela possibilidade de proporcionar à criança pequena independência, sociabilidade e espaço físico ainda que a disciplina e organização sejam também esperadas.” (MARTINEZ, 1998, p. 71). A opção pela modalidade coletiva, em detrimento de outras possibilidades, como por exemplo, deixar a criança com uma empregada ou babá, foi influenciada pela valorização da qualidade da interação adulto-criança na creche.

Segundo Martinez (1998), os pais entrevistados esperam que o ensino particular ofereça um ambiente repleto de atenção e afeto, um pouco como se fosse a extensão da casa da criança. Alguns pais, entretanto, apesar de terem optado pela creche para seus filhos, apresentavam uma avaliação negativa,

101 considerando que a criança ainda era muito nova e que deveria ter ingressado na creche somente quando já estivesse falando.

Vale frisar que a pesquisa de Martinez (1998) não questionou esses pais sobre suas impressões a respeito da creche pública e nem sobre os possíveis motivos de sua não escolha como local de educação para seus filhos.

Com relação a representações sobre creche, a Consulta sobre qualidade da educação infantil (CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO, 2006) apreendeu que ela é caracterizada como um local de atendimento para crianças cujas mães precisam trabalhar, onde são realizadas tarefas ligadas aos cuidados infantis - guarda, alimentação, higiene -, cuidados esses habitualmente atribuídos às mulheres. A socialização da criança a partir de sua convivência com outras crianças e adultos e o aprendizado de regras foram citados nessa pesquisa como papéis relacionados à EI.

Uma boa creche/pré-escola foi considerada, pela maioria dos respondentes dessa mesma pesquisa, como aquela que “cuida bem da criança”, que “funciona em prédio limpo e bem cuidado” e que “trata bem as crianças, não importando suas diferenças” (CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO, 2006, p. 46-47). A maior parte dos entrevistados enfatizou, portanto, aspectos relacionados aos cuidados.

[...] pais/mães mais pobres almejam da instituição [creche ou pré-escola] que ela seja capaz de suprir aquelas necessidades básicas das crianças que eles não se julgam em condições de proporcionar: alimentação, cuidados com a saúde. Pais/mães, assim como outros segmentos, também se preocupam com o tratamento que as crianças recebem na instituição, desejando que sejam cuidadas com carinho, por pessoas que gostem de crianças, de acordo com suas próprias palavras. Uma boa creche ou pré- escola seria aquela em que os educadores demonstrassem essas qualidades. (CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO, 2006, p. 63).

Alguns estudos como os de Cruz (2001), França (2001) e Monção (1999) que se propuseram a estudar as representações de famílias sobre creche entrevistaram, em geral, somente mães e pais de camadas populares e que já tinham atribuído a educação de seus filhos a essa instituição. Poucas famílias entrevistadas, usuárias dos serviços prestados por essas creches, conseguiram,

102 de forma geral, expor suas críticas em relação ao serviço oferecido. Reconhecendo a creche pública (e a vaga finalmente conseguida) como um milagre, uma dádiva ou um favor, muitas famílias entrevistadas não a identificavam como um direito da criança.

Múltiplos discursos sobre o bebê e sobre a creche podem traduzir ou concretizar, portanto, expectativas de diferentes naturezas em relação à EI.

Pudemos apreender que os pais tendem a procurar modalidades de EI que assegurem à criança um contato muito próximo ao que recebem em suas casas. A expressão “como se fosse uma extensão da casa” aparece com freqüência nas pesquisas. Mesmo pais que optam por modalidades coletivas de cuidado como a creche parecem desejar que o ambiente que acolha as crianças seja semelhante ao da casa.

A creche aparece nas concepções das famílias, quase sempre, relacionada aos cuidados e, ainda, muito pouco à educação.

Devemos, entretanto, antes de finalizar esse tópico, atentar para o fato de que algumas pesquisas brasileiras, que vêm investigando os motivos pelos quais crianças na faixa etária de 0 a 6 anos estavam ou não estavam freqüentando creche ou pré-escola, muitas vezes, não apresentam resultados desagregados por idade da criança ou subdivididos pelas faixas etárias de 0 a 3 e de 4 a 6 anos. Assim, muitos resultados acabam se referindo, de forma geral, às crianças de 0 a 6 anos, abrangendo ou avaliando tanto a demanda por creche quanto por pré- escola. Em conseqüência, como ressalta Rosemberg (2009c), notamos uma maior fragilidade e insuficiência nas informações relativas aos motivos pelos quais crianças pequenas não estão freqüentando creche, ao atendimento em creche e às especificidades ou distinções internas entre as crianças de 0 a 3 anos.

A desagregação dos dados por idades tem se mostrado fundamental para expor a intensidade das diferenças de freqüência à creche entre bebês menores de 1 ano e crianças já maiores, a partir de 2 e 3 anos de idade, como podemos observar nas informações apresentadas no quadro 1 e provenientes de dados coletados na PNAD (2008).

103 Quadro 1. Freqüência à creche/pré-escola/escola, segundo a idade da criança Idade das crianças (em anos) População

por idade Freqüência à creche/pré-escola/escola Idade das crianças (em anos)

Porcentagens de freqüência à creche/pré-escola/ escola

Educação

Infantil Fundamental Ensino Educação Infantil Fundamental Ensino

0 2.553.221 59.527 0 2,33% 1 2.618.009 236.579 1 9,04% 2 2.706.386 518.946 2 19,17% 3 2.849.041 1.127.309 3 39,57% 4 2.895.074 1.849.531 4 63,89% 5 2.870.331 1.584.009 715 5 55,19% 0,02% 6 2.959.157 676.411 1.330.597 6 22,86% 44,97% 7 3.081.044 89.975 2.694.733 7 2,92% 87,46% 8 3.396.581 23.916 3.246.875 8 0,70% 95,59% 9 3.463.140 9.472 3.390.352 9 0,27% 97,90% Fonte: (PNAD, 2008, micro dados processados por Sergei Soares, apud ROSEMBERG, no prelo).

Em uma breve análise do quadro apresentado, apreendemos que menos de 3% dos bebês menores de 1 ano de idade estão freqüentando creches no Brasil, enquanto que essa taxa se eleva para quase 10% entre crianças com 1 ano de idade e mostra-se, ainda, muito maior - quase 20% para crianças de 2 anos e aproximadamente 40% entre as de 3 anos -, quanto maior é a idade da criança, como já havíamos apontado no início desta tese. Essas informações nos levam a supor que as pesquisas que objetivam investigar demanda ou a não freqüência à creche devem procurar obter informações específicas sobre as diferenciações internas à faixa etária de 0 a 3 anos.

Com taxas de freqüência tão diferentes, também, entre as crianças que estão matriculadas nas creches e àquelas que freqüentam a pré-escola, pode-se imaginar que as famílias apresentem motivos ou demandas específicas de acordo com a idade das crianças. Não seria recomendável, portanto, que as pesquisas continuassem considerando a EI como se fosse um bloco homogêneo. Sem que ocorra a separação dos dados por idades sempre teremos muito menos informação, ou informações frágeis, sobre as especificidades da freqüência, ou não freqüência, à creche por parte de bebês.

104 Daí, nosso interesse de nos debruçarmos sobre os discursos de mães sobre os bebês menores de 1 ano e suas especificidades em termos de educação e cuidados.

105 CAPÍTULO 4 – ENTREVISTANDO MÃES

Este capítulo aborda a segunda fase prevista pelo método da hermenêutica de profundidade (THOMPSON, 2002), ou seja, descreve as formas simbólicas, no caso, as entrevistas, seu contexto de produção e também seu conteúdo. Em um primeiro momento, explicitarei os procedimentos que nortearam a coleta de dados e, na seqüência, apresentarei a análise do conteúdo apreendido.

4.1 AS ENTREVISTADAS E O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DAS