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Por meio da tese de doutorado de Lima (2004), entrei em contato com os estudos das autoras francesas Bloch e Buisson (1998, 1999) que, a partir do conceito sobre o dom/dádiva de Mauss (1950), desenvolvem uma teoria para a análise da demanda por modalidades de cuidado e EI na França.

Antes de apresentar a teoria de Bloch e Buisson (1998, 1999), proponho que conheçamos um pouco da obra de Mauss27, base para o trabalho das

francesas.

27 Visando me aproximar e melhor conhecer a obra de Mauss, já que era ela que norteava as

autoras francesas, tive a oportunidade, no segundo semestre de 2005, de cursar a disciplina

Marcel Mauss: sobre o Dom e o Sacrifício, ministrada pela Profª. Drª. Josildeth Gomes Consorte,

50 Para escrever, em 1920, o que se tornaria sua obra mais importante e reconhecida, Essai sur le don, Marcel Mauss se baseou em relatos de outros antropólogos sobre as sociedades na Polinésia, na Melanésia e no noroeste norte- americano. Segundo o autor, nessas sociedades ocorriam trocas não somente de bens ou recursos. O que se podia perceber é que os clãs ou famílias trocavam, por intermédio de, ou representadas por, um chefe, toda sorte de bens, não só os econômicos, mas também serviços, festas, ritos, mulheres e crianças, além de presentes. As trocas, aparentemente voluntárias, eram, na realidade, obrigatórias e a retribuição era quase sempre esperada. A esse sistema, Mauss (1950) denominou sistema das prestações totais.

A troca estava ligada à produção de bens de toda a natureza e não só aos bens de consumo. Todos os aspectos da vida, todas as transações, todos os contratos, todas as relações eram e podiam ser permeadas pela troca. Parecia que tudo que circulava (através dessas trocas) estava reforçando e atualizando, constantemente, as relações entre famílias ou clãs.

Dentre os temas e instituições complexas que compõem a vida em sociedade, Mauss (1950) definiu seu problema de estudo procurando formular perguntas específicas sobre esse tipo de prestação, que envolvia muito mais do que uma simples troca comercial ou econômica, e que ocorria, segundo ele, em quase todas as sociedades.

Qual é a regra de direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa que se dá que faz com que o donatário a retribua? (MAUSS, 1950, p. 52).

Estudando a forma de relacionamento e de prestação entre os Tlingit e os Haïda, do noroeste norte-americano, Mauss assinalou a ocorrência do potlatch que “[...] quer dizer essencialmente ‘alimentar’, ‘consumir’ [...] uma forma, típica sem dúvida, mas evoluída e relativamente rara, dessas prestações totais.” (MAUSS, 1950, p. 56). Os Tlingit e os Haïda, com suas estruturas hierárquicas bem demarcadas, apresentavam todo tipo de prestações com festas, ritos, negociações jurídicas e econômicas, mas tudo permeado por grande rivalidade

51 visando preservar o poder e a hierarquia, podendo mesmo levar à destruição de recursos. A esse sistema Mauss chamou de prestações totais de tipo agonístico.

“A obrigação de dar é a essência do potlatch.” (MAUSS, 1950, p. 115, grifo nosso). Para mostrar-se soberano, o chefe de uma família ou clã deve dar, mostrando tanto que tem para dar, quanto preservando sua imagem, seu poder e sua honra. “A obrigação de receber não é menos constrangedora. Não se tem o direito de recusar uma dádiva, de recusar o potlatch.” (MAUSS, 1950, p.121, grifo nosso). Recusar uma dádiva é demonstrar medo ao ter de retribuir, é sentir-se inferior, humilhado pela dádiva e pelo poder do outro, ou inversamente, demonstrar suposta superioridade.

O autor acredita que a obrigação de retribuir está mesmo ligada ao espírito - hau - da coisa dada, algo que transcenderia a materialidade, tendo uma

dimensão subjetiva e mágica que acompanharia o objeto dado e que implicaria na obrigação de retribuí-lo. Mauss (1950) parte do vínculo, da força da coisa dada, que não é inerte, mas tem um espírito28. “Tudo se passa como se houvesse troca

constante de uma matéria espiritual, compreendendo coisas e homens, entre os clãs e os indivíduos, repartidos entre as classes, os sexos e as gerações.” (MAUSS, 1950, p. 69).

Mauss (1950) reconhece que coisas trocadas são trocadas em momentos diferentes e têm pesos e valores diversos. A troca é um genérico. A especificidade como ela ocorre diz respeito aos valores, podendo haver um estatuto para cada troca.

Apesar de o autor ter identificado poucos exemplos de sociedades onde prevalecia a prestação total permeada por rivalidade entre famílias, ele apontou a ocorrência de uma forma intermediária, entre um número considerável de sociedades, onde a rivalidade não era tão declarada, mas onde, mesmo assim, a retribuição era aguardada e necessária e os indivíduos rivalizavam moderadamente, mas rivalizavam por meio de festas, presentes e convites.

28 Mauss foi criticado por Lévi-Strauss, que ofereceu outra interpretação para o que

52 Para Mauss (1950), o comportamento ou gesto de dar, que pode ser por obrigação ou por generosidade, gera, para o outro, a obrigação de receber e retribuir o dom. Para o autor, o fato é social. Cria-se um vínculo social, um relacionamento entre quem dá e aquele que recebe e retribui, vínculo esse que supera o próprio contrato real que possa existir entre as partes. Uma relação de pertença ao grupo, de compromisso, é construída.

Todo tipo de troca pressupõe um tempo de espera, já que muitas vezes, a retribuição não é imediata. É, então, no momento da retribuição que os vínculos sociais se fortificam e que a troca se completa. A dádiva não retribuída, ou a retribuída de forma desigual ou não equivalente, inferioriza aquele que a recebeu, ainda mais quando recebeu sem a intenção de retribuir. Segundo a análise de Mauss (1950), a capacidade de retribuir preservaria a honra e o poder.

Ora, em todas essas numerosas sociedades, em todos os tipos de graus de civilização, [...] essas trocas e esses dons de coisas que ligam as pessoas se efetuam a partir de um fundo comum de idéias: a coisa recebida como dom, a coisa recebida, em geral, compromete, liga mágica, religiosa, moral e juridicamente o doador e o donatário. Vindo de uma pessoa, fabricada ou apropriada por ela, e sendo dela, confere-lhe poder sobre o outro que a aceita. (MAUSS, 2001, p. 365).

Como a vida social se baseia em múltiplos e complexos aspectos morais, jurídicos, religiosos, econômicos e subjetivos que se articulam, não haveria para o autor um só fator determinante do fato social. O fato social total abrangeria essa cadeia de aspectos em relação.

Nesse sistema [Mauss refere-se ao sistema social das prestações totais] não somente jurídico e político, mas também econômico e religioso, os clãs, as famílias e os indivíduos ligam-se por meio de prestações e de contraprestações perpétuas e de todos os tipos, comumente empenhadas sob forma de dons e de serviços, religiosos ou outros. (MAUSS, 2001, p. 364).

Segundo Mauss (1950), as trocas também ocorrem em uma mesma família. Ocorrem trocas que podem não seguir o potlatch, mas que também podem gerar conflitos. Ao refletir sobre a dádiva, Mauss (1950) pensava sobre o sentido de dar e também sobre o paradoxo da retribuição que, para ele, está na raiz das relações

53 humanas. Para o autor, estudar o significado social do ato, do gesto de dar, é estudar o que caracterizaria os humanos.

A troca é, para Mauss (1950), um componente essencial da vida social e, através de seus estudos, ele procurou compreender melhor o que nos une e nos conecta enquanto seres humanos. As trocas, segundo ele, vinculam coisas às pessoas e pessoas às coisas. Mais do que isso, talvez, as trocas vinculem pessoas a pessoas através de suas coisas, emoções, sentimentos e experiências trocadas, pois, como apontam Bloch e Buisson (1998, 1999), já nascemos devedores da vida e dos cuidados que recebemos de nossos pais.

Ao relacionarem o dar, o receber e o retribuir com as escolhas de casais por modalidades de educação e cuidado para seus filhos, as pesquisadoras francesas29 apresentam uma leitura contemporânea30 da obra de Marcel Mauss e

recuperam seus conceitos para a análise de temas que deveriam obter maior destaque e visibilidade na área social, como a EI, já que a cada dia mais mulheres ingressam no mercado de trabalho e encontram-se diante da necessidade de conciliar carreira profissional e família.

A teoria de Bloch e Buisson (1998, 1999) compreende que a escolha por uma determinada modalidade de educação e cuidado infantil baseia-se em crenças construídas a partir da interação entre o indivíduo e seu grupo social e cultural e são influenciadas, também, pela história pessoal de cuidados e educação recebidos pela mãe e pelo pai do bebê e por uma dinâmica intergeracional.

As pesquisadoras focalizam o processo de escolha de mães e pais por modalidades de educação e cuidado para seus filhos31, no contexto francês32,

29 O trabalho de Bloch e Buisson é fruto de pesquisas, durante ao menos uma década, sobre a

dádiva, a dívida e a filiação, constituintes da construção do vínculo familiar e da rede de interdependência entre gerações.

30 Sirota (2005) também apresenta uma leitura contemporânea da teoria da dádiva proposta por

Marcel Mauss (1950), ao analisar a troca de presentes e contrapresentes em festas de aniversário infantis. A autora chega, inclusive, a utilizar o termo potlatch da infância para esse evento que envolve socialização, mas também produção de cultura infantil e, ao mesmo tempo, exercício de parentalidade.

31 Como já comentamos, Rosemberg (2007) vem chamando a atenção sobre os sentidos

vinculados ao termo criança em idiomas que possuem palavras específicas para puer e filius, como em português, criança e filho, ou que não possuem, como em francês enfant e em inglês children (ROSEMBERG, ANDRADE, 2007). Sendo a questão da linguagem tão importante, procurei realizar

54 enquanto eu procuro descrever e interpretar discursos maternos sobre o bebê, não somente filho, sua educação e cuidado, no contexto brasileiro. Acreditamos que as mulheres-mães que escolhemos entrevistar, representantes das camadas médias da população, urbanas, com formação universitária e residentes em um município que apresenta bons indicadores de qualidade de vida e é vizinho da maior cidade brasileira, se aproximam, em parte, da população francesa estudada por Bloch e Buisson (1998, 1999).

As autoras francesas mostram, em seus estudos, que mais do que uma livre escolha ou uma escolha racional - baseada somente em uma análise custo- benefício de cada modalidade -, optar por um tipo de atendimento para crianças pequenas envolve sempre uma reflexão sobre a história de muitas vidas: a dos pais (e o que eles já viveram enquanto experiências até aquele momento – incluindo como se relacionaram com os modelos materno e paterno) e de seus filhos (ou o que os pais planejam, desejam ou fantasiam para a vida deles).

A primeira experiência social que a criança tem é a de estar inscrita, socializada em uma configuração familiar específica. Este primeiro vínculo tem a particularidade de inscrever o indivíduo em uma genealogia, em uma história, em uma cadeia de interdependências na qual seu nascimento modifica o lugar ocupado por cada um; seu pai, sua mãe deixam suas posições de filhos para ocuparem, por sua vez, a de pais. (BLOCH, BUISSON, 1998, p. 19, tradução nossa).

Para Bloch e Buisson (1998), “[...] o cimento do vínculo familiar que une cada geração às precedentes é a dádiva e seu princípio dinâmico: a dívida.” (p. 20, tradução nossa). Passar a fazer parte de uma genealogia familiar, sem uma leitura e tradução cuidadosas para que pudéssemos, de forma mais fidedigna, nos aproximar dos sentidos que estavam sendo atribuídos pelas autoras francesas à expressão enfant, se elas estariam se referindo à criança, enquanto fase da vida ou enquanto filho.

32Segundo dados franceses referentes ao ano de 2002 (FRANCE, 2008), dois terços das crianças francesas entre 4 meses e 3 anos de idade ficavam, durante a semana, principalmente com um de seus pais. Outros 18% ficavam com assistentes maternais ou em creches domiciliares, enquanto 8% freqüentavam principalmente creches coletivas, o que significava dizer que as modalidades coletivas de EI representavam cerca de um terço dos modos de educação e cuidado infantis que vinham sendo utilizados por essa população. É importante destacar, também, que, na França, convivem várias modalidades coletivas de EI (FRANCE, 2009), dentre elas: as creches coletivas que atendem, de forma regular, crianças com menos de 3 anos; as creches domiciliares que se baseiam no atendimento fornecido por uma assistente maternal conveniada que acolhe as crianças em seu próprio domicílio; e as “haltes-garderies” que oferecem atendimento eventual às crianças de menos de 6 anos. Além disso, a escola maternal (sistema nacional de educação) acolhe crianças a partir de 2 anos de idade.

55 imaginar que nós próprios estaríamos na origem de nossa existência e sem nos confundirmos com nossos ascendentes, é reconhecer que a vida nos foi dada.

Que se trate do dom inicial - este da vida - ou mais amplamente da herança material e simbólica recebida, reconhecer esses dons, é se sentir devedor para com nossos pais como foram eles mesmos devedores para com seus ascendentes. Nessa cadeia de interdependência que são a família e a transmissão intergeracional, os “dons” aos filhos revestem, em um mesmo movimento, o sentido de contra-dom destinados aos ascendentes: perpetuar a vida, retomar a herança material e simbólica, é, então, reconhecer uma dívida para com seus pais, e mais amplamente para com seus ascendentes, e com sorte, introduzir seus filhos no mesmo tipo de relação. [...] A dinâmica dessa ligação reside, então, no ponto de vista daquele que recebe: esse que se sente devedor e convocado a ocupar por sua vez a posição de doador, tentando como sublinhou Mauss (1968) dar mais do que recebeu, transformando dessa forma a herança e as práticas sociais; ou então, sentindo uma incapacidade de reduzir a dívida tanto que o dom recebido foi excessivo e o aniquilou? Ou ainda considerando esse dom como não tendo satisfeito sua expectativa? (BLOCH, BUISSON, 1998, p. 20, tradução nossa).

Segundo as pesquisadoras, para conquistar, então, um lugar na genealogia familiar, o indivíduo deve assumir um papel ou uma posição frente aos seus ancestrais, bem como frente ao social. Ele vai assim ou retomar certos elementos de sua história familiar ou transformar outros visando se distanciar. Dentre os aspectos que podem possibilitar a transformação e o distanciamento em relação às práticas das gerações anteriores estão: a união, isto é, a presença do cônjuge com seu posicionamento em relação à sua própria herança e história; o filho ou algum outro membro da família e as instâncias de socialização exteriores à

família. É aqui que as modalidades e as políticas públicas de educação e cuidado destinadas às crianças pequenas ganham importância.

O filho, depositário dessa herança e da transformação que seus pais desejam aportar, se encontra no centro dessa dinâmica do dom e da dívida. Essa famosa “disponibilidade” para com a criança, constantemente atribuída às mulheres [...] é o objeto de uma re-interpretação recorrente que responde como em eco às concepções sócio-historicamente construídas sobre a infância e o ideal normativo da boa mãe. Esse ideal está, ele mesmo, em constante metamorfose ao longo das mudanças sócio-históricas, mas também segundo a maneira como cada um re- interpreta sua história familiar e social. (BLOCH, BUISSON, 1998, p. 21, tradução nossa).

56 Para as francesas, a compreensão de como a norma social da boa mãe se torna perene ou se transforma constitui um dos eixos importantes para se refletir sobre a opção por determinados modos de educação e cuidado infantil. Segundo Bloch e Buisson, com o nascimento do primeiro filho, o casal terá de decidir com quem e onde deixar o bebê e essa decisão se situa entre contradições sociais reveladoras das relações sociais de gênero: a atividade profissional da mulher em oposição à norma da boa mãe (essa que estaria o tempo todo disponível para os filhos). Diante dessas contradições, os pais podem “externalizar”33 a educação de seu filho, optando por um tipo de atendimento realizado por pessoas estranhas à rede familiar (babás, educadoras ou professoras, por exemplo) em sua própria residência ou em um ambiente coletivo (como creche ou escola/berçário), ou então “internalizá-la”34, confiando o cuidado de seu filho a uma pessoa de sua

própria família como a avó da criança, por exemplo, ou com a própria mãe do bebê assegurando seu cuidado e educação no domicílio familiar.

A norma social da boa mãe, aliada ao sentimento de dívida em relação aos próprios ascendentes, poderia levar os pais, e em especial as mães, a procurarem retribuir as dádivas recebidas - a vida e cuidados recebidos - ao cuidarem, de forma semelhante ou não, de seus filhos.

As pesquisadoras francesas propõem, portanto, investigar como se mantém ou se alteram as práticas sociais e a norma relacionada aos cuidados infantis, bem como o que está em jogo, na educação do filho. Elas procuram compreender como e porque, por exemplo, certas famílias preferem não externalizar a educação e o cuidado de seus filhos, optando pela interrupção da atividade profissional da mãe ou mesmo delegando esse cuidado à avó da criança.

Bloch e Buisson (1998) acreditam que muitos componentes sociais estão presentes na escolha de um determinado tipo de modalidade de educação e

33 O termo “externalizar” significa a delegação da educação e cuidado da criança a uma pessoa

exterior à família, ou seja, que não possui vínculo com a família e que é remunerada por esse serviço. A modalidade de educação e cuidado infantil que poderia, portanto, ser considerada a mais externa seria a creche.

34 O termo “internalizar”, por sua vez, significa que a educação e o cuidado da criança são

assegurados por alguém da própria família, na maior parte dos casos, pela mãe ou pela avó. A educação e os cuidados oferecidos pela própria mãe do bebê em sua casa constituiriam, assim, a modalidade considerada mais interna.

57 cuidado infantis. Elas escolheram analisar três desses componentes: a família; o dinheiro; e o Estado (através das políticas sociais que implementa). Para as autoras, essas três dimensões se articulam no momento da reflexão sobre onde e com quem deixar seu bebê e nessa articulação podem surgir vários conflitos.

A configuração familiar

Ao nascer, a criança se inscreve em uma configuração familiar, alterando os papéis de todos. Homem e mulher deixam de ser apenas filhos e tornam-se pais. Além disso, o bebê se inscreve em uma dada genealogia e história, onde além de ter recebido o dom da vida, estará recebendo uma herança material e simbólica (que incluirá não só os cuidados que receberá, mas também práticas culturais e sociais).

Nessa nova configuração familiar, o filho inscreve-se, também, na dinâmica da dádiva e da sua contrapartida, a dívida. Ao identificar ter recebido um dom, gera-se o contra-dom, ou um posicionamento de devedor, de quem possui uma dívida para com seus ascendentes. Para Bloch e Buisson (1998), que abordam, sobretudo, a questão geracional familiar, o “[...] peso das heranças e das transmissões se exprime no jogo das ‘dívídas’ contraídas por uma geração em relação àquela que a precedeu ou entre os membros da rede familiar [...].” (p. 6, tradução nossa).

Ao possibilitar a vida e o cuidado de seus filhos, os pais estariam, além de inserí-los na dinâmica, retribuindo, de certa forma, o que receberam, por sua vez, de seus próprios ascendentes. Assim, dar significaria devolver, retribuir; e retribuir significaria dar. Esse modo de funcionamento entre as gerações foi nomeado pelas autoras francesas como “funcionamento por meio de dívida”.

O funcionamento por meio de dívida é, segundo Bloch e Buisson (1998), o princípio dinâmico do dom, no qual retribuir não significa nunca abolir a relação social concreta na qual nos encontramos; é o princípio pelo qual retribuir se confunde com dar, já que é, ao mesmo tempo, um movimento de tentar se desfazer da posição de devedor e inserir o outro, por sua vez, nessa posição.

58 Para as autoras, existe um laço de união entre a disponibilidade frente ao filho e o dom. O dar a vida, os cuidados e as tarefas para com o filho estão no centro dessa relação. Bloch e Buisson (1999) afirmam que uma dimensão de oblação35 pode permear a dinâmica do dom/da dádiva, com aquele que dá - nesse caso, a mãe - se preocupando, prioritariamente, com as necessidades daquele que recebe - nesse caso, o filho -, muitas vezes em detrimento de suas próprias necessidades.

[...] A dinâmica do dom/da dádiva apresenta essa característica de tornar inseparáveis sujeitos – aqui a mãe e os filhos – e objetos – os cuidados e prestações domésticas: dissociá-los implicaria o risco de esvaziar de seu sentido a relação que lhe serve de suporte. O dom/a dádiva, constitutiva da ligação social familiar, está a serviço dessa ligação, assim como a qualidade da ligação depende da relação que se estabelece entre doadores e aqueles que recebem a doação. A dimensão oblativa da disponibilidade permanente frente ao filho, no centro do que está em jogo