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3. Capítulo II As idéias estéticas

3.1. O épico: Bertolt Brecht

3.1.1. Conexões brasileiras

A recepção à obra do dramaturgo e ensaísta alemão Bertolt Brecht no Brasil inicia-se, ou ganha força, nos anos 50. Montagem pioneira de texto do autor no país foi feita por elenco de amadores: em 1951, os alunos da Escola de Arte Dramática (EAD), de São Paulo, dirigida por Alfredo Mesquita, representaram A exceção e a regra, uma das chamadas peças didáticas de Brecht, escrita em 1930.13

O dramaturgo, naquele momento, era desconhecido do público – não só no Brasil –, mas os especialistas em teatro tinham notícia de sua obra, como se verifica ao ler crítica publicada por Décio de Almeida Prado na imprensa paulistana, na qual comenta o espetáculo da EAD. É provável que se tratasse de contato recente; se a reedição do artigo em livro tiver sido fiel até a pequenos equívocos do original, a grafia “Bertold”, em lugar da usual “Bertolt”, será sinal de intimidade ainda incipiente com o autor alemão (Prado, 2001: 140-2).

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Em “Brecht no Brasil, um projeto vivo”, apresentação da coletânea Brecht no Brasil –

experiências e influências, o organizador do livro, Wolfgang Bader, afirma que a primeira peça do

dramaturgo encenada no país foi Terror e miséria do Terceiro Reich, montagem realizada “por alemães exilados” em 1945, em São Paulo. O trecho do artigo de Bader onde aparece a informação é o seguinte: “Brecht entra no Brasil por três diferentes caminhos: primeiro, pelas traduções francesas de que se valem os escritores modernistas, a partir dos anos 40, para apresentar o autor, através de poemas e teses teóricas; segundo, por alemães exilados, que nos anos 40 começam diversas atividades teatrais, sobretudo em São Paulo, cidade onde é feita a primeira encenação de uma peça de Brecht aqui: Terror e miséria do Terceiro

Reich (1945); terceiro, pelo contato direto que vários profissionais de teatro e críticos brasileiros tiveram

nas suas viagens à Europa com peças de Brecht quando assistiram a montagens francesas ou a encenações do ‘Berliner Ensemble’ na França. Como frágeis raízes, esses encontros brasileiros com Brecht se robustecem e crescem ao longo dos anos 50 para acelerarem-se no ano da morte do autor, em 1956, e

De fato, o dramaturgo tornara-se conhecido fora da Alemanha já a partir de 1928, com o sucesso em Berlim da Ópera dos três vinténs, composta em parceria com o músico Kurt Weill, sucesso multiplicado por montagens realizadas noutros países. Mas os anos de exílio, que se estenderam de 1933 a 1948, certamente limitaram a divulgação de suas peças e ensaios, estes sempre muito ligados à prática de palco, segundo nota Gerd Bornheim em Brecht – a estética do teatro (Bornheim, 1992).

De todo modo, desde seu retorno à Europa (primeiro à Suíça, depois à Áustria e finalmente à Alemanha, em outubro de 1948), os textos brechtianos voltariam a espalhar-se para além do solo e do idioma alemães. Considere-se que as montagens norte-americanas haviam tido alcance limitado, como diz o biógrafo Frederic Ewen: “Quanto ao seu impacto sobre a América [onde Brecht viveu por alguns anos] e o público americano, não se podia dizer que fosse amplo ou profundo” (Ewen, 1991: 395).

Mas o biógrafo registra que, já em 1951, o teatro de Brecht “ganhava fama no exterior”. Na França, produziu-se naquele ano “uma versão bastante comovente de Mãe

Coragem”. No ano seguinte, o Berliner Ensemble – a companhia que Brecht e sua

mulher, a atriz e diretora Helene Weigel, criaram em novembro de 1949, em Berlim Oriental –, viajou, impressionando os vizinhos: “Em Varsóvia seu impacto foi enorme, levando um crítico polonês a afirmar que a companhia e seus espetáculos e repertório revolucionavam e liberalizavam inteiramente a vida teatral da Polônia”.

Ewen informa ainda que “as peças de Brecht tornaram-se parte do repertório- padrão também na Alemanha Ocidental, ocupando lugar de destaque depois de Shakespeare, Goethe e Schiller. A República Democrática Alemã [fundada em outubro de 1949] conferiu-lhe o Prêmio Nacional de Primeira Classe em outubro de 1951” (Ewen, 1991: 423). O passaporte para o reconhecimento internacional era, então, freqüentemente conferido pelos franceses, e o Berliner Ensemble iria consolidá-lo em 1954, quando a companhia venceu o Festival de Paris com Mãe Coragem.

Voltando à recepção brasileira a Brecht, outro exemplo encontra-se em três artigos de Sábato Magaldi publicados na imprensa entre outubro de 1956 e fevereiro de 1957, mais tarde reproduzidos em livro sob o título de “A concepção épica de Brecht” (o dramaturgo morrera em agosto de 1956). A simpatia pelas teses e peças brechtianas, embora sem adesão irrestrita, evidencia-se nas palavras com que o crítico abre a série de artigos. O fato de que a sua ressonância mundial apenas principiava também foi registrado por Magaldi:

Há poucos anos o teatro de Bertolt Brecht (1898-1956) começa a alcançar cidadania universal e, já hoje, ao menos para um círculo de críticos e espectadores, situa-se como o mais representativo do nosso tempo. À insatisfação generalizada contra uma dramaturgia que se confinava entre quatro paredes, que se consumia em psicologismo deliqüescente ou em verbalismo estéril – o autor de O círculo de giz caucasiano respondeu com uma obra larga, aberta, generosa, épica. Os problemas de suas peças transcendem o deleite de um público restrito e instauram o verdadeiro teatro popular (Magaldi, 1989: 269).

O crítico, a seguir, qualifica o que entende por “teatro popular”: “Essa verificação pode prestar-se a equívocos, porque o conceito de teatro popular ora se vincula a ideologias políticas, ora é utilizado pejorativamente, para sugerir abdicações estéticas. No caso de Brecht, porém, o popular deve ser entendido na mesma dimensão em que são populares Ésquilo, Shakespeare, Lope de Vega e a Commedia dell’Arte”. Segundo o ensaísta, “a genialidade do criador supera deficiências da paixão polêmica do teórico” (1989: 269). Magaldi analisa a obra do dramaturgo e ensaísta fazendo alguns reparos às idéias enunciadas por Brecht, críticas às quais vamos nos referir mais tarde.

A primeira montagem profissional de uma peça de Brecht no Brasil deu-se em 1958, quando a Cia. Maria Della Costa encenou A alma boa de Setsuan, espetáculo que seria comentado por Sábato Magaldi em agosto daquele ano. Referência à montagem, dirigida por Flaminio Bollini, acha-se ainda em texto de Vianinha, intitulado “Momento do teatro brasileiro” (o escrito provavelmente se conservou inédito até a sua edição em livro), datado de outubro de 1958. Membro do Teatro de Arena, Vianinha, aos 22 anos, arrolava o espetáculo entre os fatos auspiciosos da temporada:

Esse ano, neste sentido, é de importância enorme. Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, é o símbolo de todo um movimento de afirmação do teatro brasileiro. Além disso? Jovens diretores: Antunes Filho, Flávio Rangel, Augusto Boal, Fernando Torres, José Renato, o elenco do Teatro Brasileiro de Comédia, que estuda e amadurece de espetáculo para espetáculo, Ariano Suassuna, Jorge Andrade e a próxima montagem de Pedreira das almas, o desenvolvimento dos cursos da Escola de Arte Dramática, o excepcional trabalho de ajuda e estímulo ao teatro pela Comissão Estadual do Teatro, dirigida por elementos da própria classe teatral, a pelo menos estabilização do preço do ingresso, o aumento de público, a realização de espetáculos populares, a montagem de Brecht pela Cia. Maria Della Costa, a fundação de um Seminário de Dramaturgia de São Paulo, um Laboratório de Interpretação, pesquisando uma forma nacional da arte de representar, tudo o mais (Vianna Filho, 1983: 24).

Prudente ou dialético, Vianinha acrescentava: “De acordo. Ainda é um início. Mas início para chegar ao mais alto dos objetivos: teatro brasileiro”. O mesmo Vianna Filho utilizaria versos do Canto da grande capitulação, de Mãe Coragem, como epígrafe para a peça Os Azeredo mais os Benevides, de 1964. Em outros ensaios reunidos em

Vianinha – teatro, televisão, política (onde se encontra “Momento do teatro brasileiro”)

também aparecem menções a Brecht.

Para fechar estas referências à chegada de Brecht ao Brasil, podem ser citadas ainda as menções ao dramaturgo que se lêem no prefácio a Se correr o bicho pega, se

ficar o bicho come, peça de Vianna Filho e Ferreira Gullar, encenada pelo Grupo

Opinião e publicada em 1966. Em Brecht, segundo o prefácio assinado pelo grupo, a forma literária “não é mais tirada da natureza”, isto é, já não precisa corresponder ao realismo e ao estilo dramático a ele identificado (o realismo foi programaticamente questionado desde 1960 por autores como Vianinha). Tratava-se de trocar as práticas realistas e dramáticas pelas formas alusivas e épicas, mais adequadas, conforme se imaginava, à expressão dos conflitos políticos, de índole coletiva – mais amplos, portanto, do que os conflitos centrados no indivíduo que a moldura realista costuma implicar.

A presença das idéias de Brecht no Brasil, assim, faz-se perceptível especialmente a partir de meados dos anos 50. Resumimos a seguir aspectos básicos da trajetória e das teses do autor alemão, recordando depois os comentários que receberam no país. Abordaremos mais tarde o Sistema do Coringa, teoria devida a Augusto Boal, que incorpora lições brechtianas ao mesmo tempo em que a elas acrescenta idéias novas. Este e outros autores brasileiros buscaram assimilar a influência de Brecht, desdobrando-a em soluções originais.