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3. Capítulo II As idéias estéticas

3.3. Estruturas épicas: Peter Szondi e interlocutores brasileiros

3.3.1. A crise do drama segundo Szond

Outra linha de idéias, diversa da que procede de Brecht, embora tenha importantes pontos de contato com as teses brechtianas, parte da Teoria do drama moderno (1880-

1950), livro publicado em 1956, na Alemanha, pelo crítico húngaro Peter Szondi (1929-

1971) e editado no Brasil há poucos anos.

Essa corrente, por aqui, envolve Anatol Rosenfeld (que teria “reorganizado” o estudo de Szondi ao redigir O teatro épico, de 1965) e Iná Camargo Costa, autora de A

hora do teatro épico no Brasil e Sinta o drama, ambos livros dos anos 90. Iná estende

as premissas de Szondi ao exame do teatro brasileiro moderno, sobretudo o que se fez de 1958 a 1968, isto é, de Eles não usam black-tie a Roda viva.

Peter Szondi lastreia-se em premissas tomadas ao Hegel da Estética e ao jovem Lukács de livros como A teoria do romance, relativas à interdependência do conteúdo e da forma em literatura. De acordo com Szondi, o pensamento estético progressivamente compreende que as normas legadas por Aristóteles, ou a simples noção de que existam regras definitivas em arte, nem sempre podem responder à fatura ou à análise dos fenômenos literários, que têm matrizes e motivações históricas e que, portanto, se alteram conforme os tempos e lugares. A teoria toma consciência de que forma e conteúdo se correspondem, replicando-se mutuamente; fato que se exprime na sentença segundo a qual forma equivale a “conteúdo precipitado”. Assim, quando os conteúdos mudam, a forma tende a mudar com eles.

Munido dessas premissas, Szondi refaz os caminhos do que chama de drama moderno, definindo-o a partir da “crise do drama” que surge em fins do século XIX e se reconhece em peças de Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Maeterlinck ou Hauptmann. Trata- se de autores distintos uns dos outros, mas ligados pelo fato de trabalharem temas a que a forma dramática – dedicada às relações intersubjetivas, expressas pelo diálogo – já não se consegue adaptar plenamente.

O teórico húngaro opõe dois conceitos, o de forma dramática e o de forma épica, explicando que a primeira irá se estabelecer a partir do Renascimento, quando os textos teatrais depuram-se dos elementos narrativos – o prólogo e as intervenções do coro, entre outros aspectos. Essa forma literária e cênica fixa-se em Shakespeare e, mais caracteristicamente, na obra dos dramaturgos franceses do século XVII – Racine, Corneille, Molière –, confirmando-se nas fases seguintes, até encontrar os seus limites nas últimas décadas do Oitocentos. A essa altura, novos assuntos passam a oferecer resistência ao molde tradicional.

O drama, no sentido que Szondi lhe atribui, ajusta-se à apresentação da trajetória de indivíduos e dos conflitos que entre eles se verificam, modelo que sobreviveu inclusive às oscilações de poder ocorridas em fins do século XVIII, fase a partir da qual se substituem aristocratas por burgueses no comando das sociedades européias. Mas o modelo dramático revela-se insuficiente ou falho quando se trata de iluminar o que se passa no íntimo das personagens, a que o diálogo só terá acesso ao ganhar tonalidades líricas; ou quando é o caso de exibir eventos supra-individuais, coletivos, aos quais as palavras trocadas entre as figuras em cena podem, quando muito, aludir, sem lograr representá-los plenamente.

Os conflitos entre as classes sociais constituem bom exemplo do que se afirma: por definição, eles transcendem a sorte individual e a esfera intersubjetiva, demandando recursos narrativos, épicos, para serem exibidos. Teria sido esse o impasse experimentado pela dramaturgia naturalista, que buscou assunto na vida de grupos sociais desprivilegiados, enquanto se mantinha presa às maneiras dramáticas de composição.

Acossado por conteúdos de tipo lírico, de um lado, como ocorre nas peças de Tchekhov, ou de tipo épico, nas de Hauptmann, o modelo da peça dramática – flexível o bastante para pôr em movimento tanto os aristocratas de Racine quanto os burgueses de Diderot e Dumas Filho – começa a fazer água na passagem do século XIX para o XX. O tema do indivíduo solitário, abordado em As três irmãs, do dramaturgo russo, e o das

comunidades proletárias, emergentes e problemáticas, que aparece em Os tecelões, de Hauptmann, forçam os limites técnicos do drama.

Nas peças em que se configura a crise da forma dramática, as cenas associadas segundo relações de causa e efeito nem sempre atendem ao propósito de traçar amplos painéis; o diálogo já não sustenta o que se quer expressar, sob circunstâncias que apartam os indivíduos, isolando-os ou dificultando a sua comunicação; a convenção realista da quarta parede (pela qual o público jamais é visado diretamente pelos atores) comprime o conteúdo, restringindo-o a espaços mais estreitos do que os que ele exige para manifestar-se. Confrontados a tais dilemas estéticos e técnicos, diz Szondi, os dramaturgos tentam resolvê-los buscando “salvar” a forma tradicional – ou procurando superá-la pela via épica.

Entre as “tentativas de salvamento” da forma dramática, Peter Szondi identifica os textos naturalistas de Hauptmann; a “peça de conversação”; a “peça de um só ato” e os dramas de “confinamento e existencialismo”. Para o ensaísta, há problemas, ou sintomas da crise, nas tentativas de manter a forma tradicional mesmo sob a pressão dos novos temas. Vale nos determos um pouco nas objeções feitas por ele às peças naturalistas.

Szondi parece especialmente severo ou cético com relação ao drama naturalista. Dois aspectos interligados devem ser ressaltados aqui, o histórico e o dramatúrgico. Quanto ao primeiro deles, constata-se que “o drama naturalista escolhia seus heróis entre as camadas baixas da sociedade”. Szondi afirma que nessas camadas “se encontravam homens cuja força de vontade era inquebrantável; que podiam se engajar com todo o seu ser por um fim, impelidos pela paixão; que não eram separados uns dos outros por nada de fundamental: nem a referencialidade ao eu nem a reflexão. Homens capazes de suster um drama, com sua limitação ao fato presente e intersubjetivo”. Apontando alguma ingenuidade ideológica nesse teatro, o ensaísta acrescenta: “Assim, à diferença entre as camadas baixas e altas da sociedade correspondia a diferença dramatúrgica: a capacidade e a incapacidade para suster o drama” (Szondi, 2001: 101).

A suposta insuficiência social ou estética do drama naturalista indigita-se, de saída, por motivos históricos; de acordo com Szondi, inelutáveis. Ele diz: “O lema naturalista, que de boa fé preconizava que o drama não era uma posse exclusiva da burguesia, ocultava a amarga constatação de que a burguesia há muito já não possuía mais o drama” (2001: 101-102). Os autores naturalistas buscaram personagens nas

classes desprivilegiadas porque esse era o modo que tinham de fugir da própria circunstância histórica, evadindo-se não para o passado, mas, descendo os degraus sociais, “para o presente estranho”. O ensaísta vê a questão desta maneira:

À medida que se desciam os degraus sociais, descobria-se o elemento arcaico no presente: girava-se para trás o ponteiro no relógio do espírito objetivo – e o naturalista tornava-se assim um “moderno”. No século XVIII, a transição do drama da aristocracia para a burguesia correspondia ao processo histórico; por sua vez, a inclusão naturalista do proletariado no drama por volta de 1900 pretendeu justamente desviar-se desse processo (2001: 102).

O segundo aspecto, decorrente do primeiro, prende-se à fatura literária. O tema, se nos for legítimo ampliá-lo para que envolva outras situações culturais, faz perguntar sobre a possibilidade ou a impossibilidade de uma classe endossar e representar as aspirações de outra classe (no caso estudado por Szondi, respectivamente a dos burgueses, entre os quais se inscreviam os escritores naturalistas, e a dos proletários). O assunto, sobretudo quando transposto para o teatro brasileiro dos anos 60 e 70, certamente interessa a este trabalho.

Nos termos de Peter Szondi, “a distância social, o primeiro fator a possibilitar o drama do naturalismo, torna-se-lhe fatal enquanto distância dramatúrgica”. Nas peças dramáticas genuínas, o autor como que desaparece para que a ação possa desenvolver- se, autônoma, no palco. O autor ou se situa entre as personagens “ou não está em absoluto incluso na obra”. A peça escrita nesses moldes “é o espelho de sua época; em suas personagens se espelha a camada social que forma como que a vanguarda do espírito objetivo” (2001: 102).

Szondi parece descrer que as classes trabalhadoras, naquele momento, pudessem representar a vanguarda desse hegeliano “espírito objetivo” (ou, por outra, o problema estaria na aludida “distância social”: os pobres eram o objeto, não o sujeito do drama naturalista). De passagem, observe-se que, se a burguesia o encarnava, temos de admitir que foi a classe responsável pelos desastres de proporções mundiais das duas grandes guerras, eventos cuja brutal importância, diga-se, o pensador provavelmente não depreciaria (ele foi uma de suas vítimas).

O ensaísta também não acredita na efetividade da aliança entre classes sociais que então se esboçava, pelo simples motivo de que a atitude estética dos naturalistas teria tido caráter anacrônico, formalmente regressivo: “no drama naturalista (...) não se

espelha a burguesia da virada do século, tampouco a classe que lhe proporciona as personagens. Ao contrário, uma classe observa a outra: o poeta burguês e o público constituído pela burguesia observam o campesinato e o proletariado”. Assim, a forma mantém-se como que separada de seu assunto, e a peça teatral tende a resultar inconsistente (2001: 103). Imaginamos que, caso a composição das platéias se modificasse, o problema estético de fundo permaneceria inalterado.

Mas o ceticismo de Szondi, que à primeira leitura pode parecer má vontade em relação aos textos que buscaram seus temas na vida dos mais pobres, não nos obriga a pensar em conservadorismo político. Nas páginas seguintes, ele estuda as “tentativas de solução” da crise do drama, abordando o trabalho de autores como Bertolt Brecht, Luigi Pirandello ou Arthur Miller e a trajetória de um encenador, Erwin Piscator. Aqui, Szondi aplaude as formulações épicas de Piscator justamente na montagem de uma peça naturalista, Nachtasyl, de Máximo Gorki (1868-1936).

Uma das providências tomadas por Piscator, ao produzir a peça de Gorki, foi a de lançar, acima do palco que mostraria aposentos precários, as “dimensões de um bairro miserável da metrópole moderna”, como registra o próprio diretor. Recursos épicos, a exemplo dos que deram a ver os espaços largos da cidade, promoviam enquadramentos pelos quais a aventura individual vinha se inserir na história ampla dos aglomerados urbanos. Falando do espetáculo, Piscator recorda:

O conceito de proletariado lúmpen estava em discussão. Eu tinha de ampliar os limites da peça para abranger esse conceito. (...) Então dois momentos em que a peça experimentou uma mudança em sua direção se revelaram os mais eficazes do ponto de vista teatral: o começo, o ronco e o estertor de uma massa a tomar todo o espaço do palco, o despertar de uma cidade grande, o barulho dos bondes, até o teto abaixar e estreitar o ambiente formando um aposento, e o tumulto, não apenas no pátio, uma pequena briga de caráter privado, mas a rebelião de um quarteirão inteiro contra a polícia, o levante de uma massa. Assim, no todo da peça a minha tendência era, sempre que possível, elevar a dor psíquica do indivíduo até chegar ao geral, ao que há de típico na atualidade, dilatando o espaço estreito (através do levantamento do teto) para alcançar o mundo (Piscator, em: Szondi, 2001: 128).

Conforme lembra José Antonio Pasta Júnior na Apresentação de Teoria do drama

moderno, Szondi dá escasso relevo a Brecht, destinando poucas páginas ao exame de

idéias brechtianas de maneira empática e precisa, mas sumária, e a não analisar as suas principais peças (Szondi menciona somente o drama A mãe, original de Gorki adaptado por Brecht). Teriam pesado a hostilidade do ambiente acadêmico alemão nos anos 50, avesso a engajamentos; a antipatia política do próprio Szondi com relação a Brecht (no que tacitamente teria tomado o partido de Adorno em polêmicas então recentes); ou, até, as eventuais dificuldades teóricas no enfrentamento do épico na chave programática, sistêmica, proposta pelo dramaturgo alemão.

Apesar de seu relativo laconismo, Szondi valoriza o teatro e as idéias estéticas de Brecht, sublinhando a “cientifização” da cena operada pelo dramaturgo. Este teria ultrapassado os naturalistas ao converter aquela “atitude científica” em recursos e estruturas formais, capazes de representar eficientemente os mecanismos de alienação das personagens em relação a si mesmas e a seu entorno.

Anatol Rosenfeld, menos de uma década depois do lançamento do livro de Peter Szondi, sem deixar de reconhecer a sua dívida para com o pensador húngaro, “reorganizou [no livro O teatro épico] de outra maneira o trabalho de Szondi, partindo declaradamente da obra de Brecht, para executar o mergulho nas formas anteriores do teatro épico e, finalmente, desembocar de novo em Brecht, a quem dedica todo o capítulo final” (Pasta Júnior, em: Szondi, 2001: 19).