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3. Capítulo II As idéias estéticas

3.1. O épico: Bertolt Brecht

3.1.2. Percurso e teoria

No que diz respeito à formação do escritor ou, mais largamente, às fontes para a elaboração da teoria épica, lembre-se a admiração de Brecht pela obra do dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837), precursor da estrutura episódica, sobretudo em

Woyzeck. O teatro oriental foi outra das referências mobilizadas por Brecht. O ator Karl

Valentin, que atuava em espetáculos de variedades, de alguns dos quais o jovem Brecht participou como intérprete, e o teatro de agitação e propaganda do diretor Erwin

Piscator, com quem colaborou, além de Shakespeare e dos clássicos alemães, também constituem referências importantes.

A trajetória de Brecht pode ser repartida em três fases básicas, se adotado ponto de vista, digamos, exterior. A primeira dessas etapas vai do início dos anos 20, ainda sob a febre expressionista que resulta em peças como Baal e Tambores na noite, a 1933, quando é obrigado a fugir da Alemanha encampada por Hitler. Em fins dos anos 20, seus textos haviam-se tornado incisivamente políticos, caso da Ópera dos três vinténs (malgrado a superficialidade dessa obra, dado o tom ligeiro e até certo ponto convencional em que se apóia). As idéias que conformam o teatro épico irão se adensar ainda nesse período, quando Brecht escreve Ascensão e queda da cidade de

Mahagonny, outra parceria com Weill.

Em 1931, formula o quadro famoso, em que opõe as características do teatro dramático às do épico. Vale a pena revê-lo:

Forma dramática – Forma épica; o espetáculo “encarna” a ação – faz do espectador um observador crítico; consome sua atividade – desperta-a; provoca nele sentimentos; obriga- o a decisões. O espectador se imiscui na ação – opõe-se a ela. O teatro age por meio da sugestão – por meio de argumentos. Os sentimentos são conservados – traduzem-se por juízos. Supõe-se o homem conhecido – O homem é objeto de estudo. O homem é universal, imutável – O homem muda e é mutável. Tensão no desfecho – Tensão desde o início. Cada cena está em função de outra – justifica-se por si mesma. Os acontecimentos são lineares – apresentam-se em curvas. Natura non facit saltus – Facit saltus. O mundo tal como é – O mundo se transformando. O homem estático – O homem dinâmico. Seus instintos – Seus motivos. O pensamento condiciona o ser – O ser social condiciona o pensamento (Brecht, em: Magaldi, 1989: 270).

A segunda fase, a do exílio, durante a qual Brecht troca de país “como quem troca de sapatos”, conforme ele próprio, inclui passagem (amarga sob certos aspectos) pelos Estados Unidos, que iriam conhecer a obsessão anticomunista no pós-guerra. Algumas de suas melhores peças foram escritas nesses anos: Mãe Coragem e seus filhos, Vida de

Galileu (ambas de 1939), A alma boa de Setsuan (1940). Sempre em termos gerais,

pode-se dizer que a última fase inicia-se com a volta à Europa em fins dos anos 40, quando o escritor se associa ao esforço de construção do socialismo na recém-criada Alemanha Oriental.

O trajeto do dramaturgo, poeta e pensador parece confirmar a suspeita de que não existem grandes autores sem idéias recorrentes. Seu trabalho teórico, não menos rico que suas peças e poemas, desenvolve-se no sentido de ampliar e detalhar idéias que começa a articular nos anos 20 e que irá defender até a morte em 1956, valendo-se de erudição, argúcia e ironia. Brecht não foi propriamente o inventor, mas o autor, diretor e teórico mais conseqüente do que se convencionou chamar teatro épico – estilo que implica o muito citado “efeito de distanciamento”.

O curioso, na trajetória do poeta e ensaísta, é que seus adversários foram igualmente obsessivos nas objeções às suas idéias e espetáculos. Já em 1927, num texto curto, intitulado “Considerações sobre as dificuldades do teatro épico”, Brecht admite que os princípios do modelo inovador – que ele, enfático, define como “o estilo teatral de nosso tempo” – ainda se encontram “em estado embrionário”. Afirma, nesse texto, que a característica essencial do novo gênero residiria “talvez em que não apela tanto ao sentimento quanto à razão dos espectadores”. Como os inimigos já o acusavam de cerebralismo e frieza, é obrigado a tocar na tecla a que teria de voltar, exaustivamente, durante toda a vida: “Mas seria totalmente falso negar o valor afetivo do teatro épico” (Brecht, 1970: 36, 37).

A expressão “dramaturgia épica” ou “não-aristotélica” envolve, de saída, uma contradição em termos. Aristóteles, na Poética, texto que inaugura a teoria literária e, em particular, a teoria teatral no Ocidente, define a tragédia, por oposição à epopéia, como sendo o gênero em que a história se comunica ao público “por atores agindo, não narrando”. A ação trágica destina-se, afinal, a produzir nos espectadores um efeito de catarse, de purificação emocional. Brecht entende que “essa depuração se cumpre por obra de um ato psíquico muito particular: a identificação emotiva do espectador com as personagens do drama” (1970: 121).

A revolução brechtiana começa aqui: ele se recusa a estimular a projeção emocional dos espectadores nas personagens; recusa-se a promover a empatia entre público e intérpretes. Relacionando empatia a alienação e imobilismo, entende não dever incentivar a atitude passiva das platéias em tempos que exigiam, justamente, debate e participação política (lembre-se que a Alemanha do final dos anos 20 irá assistir à ascensão nazista, apoiada em recursos de propaganda fortemente empáticos e passionais).

Para alcançar o efeito pretendido, autores, atores, cenógrafos e músicos do teatro épico irão mobilizar os seus recursos no sentido de distanciar a ação representada no

palco de seu público, tornando estranho o que parecia rotineiro, abrindo assim espaço para reflexão e crítica. A peça composta nesses termos incorpora elementos narrativos; os intérpretes trabalham como se opinassem sobre as personagens; a música interrompe e comenta a ação; os cenários sugerem mais do que definem lugar e tempo.

Uma das grandes questões implicadas na tradição de tipo aristotélico – que fará germinar, na França, a dramaturgia de um Racine e as reflexões de um Voltaire, por exemplo – era a da finalidade maior do teatro: instruir ou deleitar? Fornecer lições morais ou simplesmente divertir o público? Os dramaturgos ocidentais, através dos séculos, inclinaram-se freqüentemente a pensar o teatro como instituição moral. Nisso, eles e Brecht estariam de acordo. O problema, segundo o autor da Ópera dos três

vinténs, é que as lições ministradas chegavam prontas para a platéia, sem que esta fosse

convidada a tomar decisões.

Em artigo de 1936, intitulado justamente “O teatro épico”, Brecht responde “aos ataques de muitos inimigos” que consideravam seu trabalho “demasiado moralizador”. Atento ao espírito do que chama de “época científica”, ele afirma que seu objetivo “não era tanto a moral quanto o estudo”. E lembra: “A fome, o frio e a opressão não somente são difíceis de suportar por motivos de índole moral”. Não era o caso, portanto, de falar em nome da ética, propriamente, “mas em nome das vítimas”. Seu teatro queria fazê-las acordar e ver que, como diz noutro texto, “os oprimidos são os responsáveis pela subsistência da opressão, e nada detém aquele que tenha reconhecido a sua circunstância” (1970).

Na “Breve descrição de uma nova técnica de arte dramática que produz um efeito de distanciamento”, de 1940, o autor busca detalhar quais seriam os procedimentos que o ator épico deve adotar em seu trabalho. De saída, ainda nos ensaios, o ator “deve tratar de compreender as particularidades” de sua personagem “e não aceitar nenhuma delas como inevitável, como algo ‘que não poderia ter sido de outra maneira’, como algo que ‘era de se esperar dado o caráter dessa personagem’”. Em vez de figuras prontas para todo o sempre, guiadas por destino inexorável, o que se tem de ressaltar é o caráter transitório, mutável, histórico de seres ligados a determinadas circunstâncias – transformáveis pela vontade do homem, visto agora como dono de seu destino.

Já diante do público, o intérprete “não permitirá que em cena se opere a

transformação total de sua pessoa em personagem. Ele não é Lear, Harpagão, Schweyk,

ele mostra essa gente”. O ator já não apresenta seu texto como se o estivesse improvisando, “mas como se o citasse” – por exemplo, à maneira do homem que, tendo

testemunhado um acidente, reproduz os gestos do acidentado. Ou à maneira do gozador que imita o modo de caminhar de um amigo, provocando o riso geral (1970: 170, 171).

O texto em que Brecht enumera e desenvolve mais extensamente as suas idéias chama-se Pequeno órganon para o teatro, ensaio de 1948. Na abertura, uma surpresa: o autor defende o prazer como a finalidade mais alta do teatro, acima, até, das considerações morais. Era, de novo, uma resposta aos detratores e aos críticos apressados. Para ele, somos “filhos de uma era científica”, época em que a atitude crítica, isto é, transformadora, foi posta a funcionar diante da natureza: as cidades, os transportes, as comunicações renovaram-se imensamente. Essa atitude crítica, no entanto, não chegou à sociedade que, como há séculos, continua dividida entre dominadores e dominados. O teatro, divertindo mas fazendo pensar, renunciando a consolar um público ávido por compensações efêmeras, deve contribuir – essa é a perspectiva do autor – para mudar o mundo.

Ao contrário do que se pode supor, a obra de Bertolt Brecht é pouco assertiva e dogmática. Naturalmente, estamos certos quando associamos seu trabalho a ideais utópicos, que ele produtivamente celebrou. Mas esses ideais conviveram com tendências niilistas, céticas em relação à problemática natureza humana. E, para além do ceticismo, o empenho político em Brecht esteve todo o tempo sob o crivo do que se pode chamar de método dialético, aplicado ao texto e à cena.

Em O método Brecht, livro publicado no Brasil em 1999, o crítico norte- americano Fredric Jameson estuda as idéias e os processos utilizados pelo dramaturgo e pensador alemão nas várias fases de sua vida criativa, a partir dos anos 20. Descontadas as muitas idas e vindas, que trazem ao leitor dificuldades talvez desnecessárias – Jameson pula de uma para outra peça e despreza a cronologia –, o ensaio apresenta percepções úteis ao exame da obra brechtiana.

Jameson fala em “mônadas” ou “camadas” que corresponderiam às várias circunstâncias históricas vividas pelo dramaturgo. Lembra que linguagem, enredo e pensamento compõem, nas peças de Brecht, um triângulo, relacionando o autor alemão a seus colegas modernos, entre os quais T.S. Eliot. Poetas como Eliot estiveram muito preocupados com a forma literária, considerada autônoma, e teriam sido inapetentes quanto às idéias propriamente ditas, vistas como impuras – inapetência que Brecht, naturalmente, não compartilhava.

As primeiras pistas do que pode ser o “método Brecht” referem-se ao recorte das cenas. Estas, diz Jameson, passam por um processo de autonomização, ou seja, a história pode ser cortada em fatias “como lingüiça”. Trata-se de um dos meios para se promover o efeito de estranhamento ou de distanciamento, pelo qual o enredo e a realidade exterior se revelam em seu caráter transitório, mutável, e não natural, eterno; o encadeamento das cenas e a conformação das histórias podem e devem ser reelaborados por intérpretes e público.

Outra técnica destinada a promover estranhamento é a citação ou a representação em terceira pessoa, a que já se aludiu. A técnica de dar a ver a situação falando dela em terceira pessoa poderá ratificar “a natureza ‘imaginária’ do eu, mantendo-o à distância no palco e permitindo que seu ventriloquismo se autodesigne” (Jameson, 1999: 85).

Em lugar de conferir relevo à subjetividade, à consciência crivada de impulsos inconscientes que tendem à confusão, o dramaturgo nos leva a enxergar a identidade das personagens como construída historicamente – algo, portanto, passível de ser revisto e modificado. A alternativa à ordem autoritária não é, para Brecht, o caos, mas uma nova ordem, que deve superar os impasses da anterior. Fica a sugestão de que essa nova ordem seja coletivamente trabalhada.

Jameson imagina que os conselhos dados por Brecht ao ator – usar a terceira pessoa, recorrer à narrativa no passado, proferir as rubricas em voz alta, conselhos relativos sobretudo à fase dos ensaios – configurem, afinal de contas, uma espécie de “treinamento moral”. Outros recursos caminham na mesma direção: a estética brechtiana recomenda que texto, cenário e música não se reúnam de maneira harmoniosa (como a “obra de arte total” que Wagner pretenderia), mas que sejam elementos em tensão constante, em permanente contradição entre si. O texto comentado ironicamente pelas canções corresponde a um dos processos típicos dessa estética. Autor, diretor e atores devem aprofundar as contradições – as do tema, bem como as da forma em que é apresentado – metódica ou programaticamente, em lugar de tentar apaziguá-las, conforme também nota Gerd Borheim em seu livro sobre o dramaturgo.

Jameson admite que o método praticado por Brecht não constitui ou sequer implica doutrina fechada. Trata-se, antes, de um grupo de técnicas alimentadas pelo debate, pela atitude dialética, técnicas destinadas a compreender o mundo à volta e a interferir nele. Diz o ensaísta que o estranhamento “não é exatamente um conceito filosófico e muito menos um sistema”. Serve antes a desmistificar as diversas instâncias de poder e suas estratégias (Jameson, 1999: 126).

O projeto de Brecht não foi, portanto, o de ensinar doutrina previamente estruturada, mas o de convocar à reflexão, discutindo e praticando os instrumentos necessários a ela. O próprio dramaturgo, citado por Jameson, afirma: “O Grande Método [a dialética] torna possível reconhecer os processos nas coisas e utilizá-los. Ele nos ensina a fazer perguntas que tornam possível a ação” (Brecht, em: Jameson, 1990: 162).

Assim, na Ópera dos três vinténs, a ironia é mobilizada de modo a se ter uma espécie de retrato das práticas amorosas, perpassadas por necessidades físicas que transformam o amor em algo muito mais concreto e prosaico do que a lírica tradicional gostaria de admitir. Em Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, a ironia e a sátira são conduzidas às fronteiras do niilismo: a mítica Mahagonny não passa de engodo, com o que são criticadas as ilusões de consumo que o capitalismo costuma alimentar. Em Vida de Galileu, a ciência exibe pelo menos dois lados, sugeridos na aventura intelectual do astrônomo renascentista – um deles, irresponsável, conduziria no século XX à trágica bomba atômica; o outro reafirma nossa capacidade de mudar prazerosamente o mundo de acordo com interesses menos mesquinhos. O jogo de contrários responde pela efetividade dessas peças.

Jameson deduz, das obras teatrais e dos textos teóricos brechtianos, noções como as de distância, oposição, contradição, alegoria – esta identificada à capacidade que determinado texto tem de fazer proliferarem os seus significados. O método Brecht não pretende sistematizar as idéias do poeta, mas pôr em relevo aspectos fundamentais da estética que ele pensou e exercitou. Vale destacar ainda o conceito de produtividade – o trabalho sobre as coisas que define o humano –, central no Pequeno órganon para o

teatro, espécie de testamento teórico que comentamos a seguir.