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3. Capítulo II As idéias estéticas

3.5. Vanguarda nos trópicos: Ferreira Gullar

Dois aspectos interligados ressaltam, no que diz respeito aos musicais, ao considerarmos os anos 60 e 70: o primeiro deles refere-se ao intuito, que então se verifica, de retomar os fios do espetáculo cantado visando-se a comunicação com platéias numerosas e populares. Outro aspecto é o da politização dos musicais, escritos e encenados pela geração de artistas que aparecerá na segunda metade da década de 50.

Vindo da literatura, mais especificamente da poesia, Ferreira Gullar irá reunir-se, nos anos 60, àqueles nomes. Primeiramente no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, para o qual redigiu romances de cordel estilizando processos poéticos tradicionais, e depois no Grupo Opinião, Gullar estaria ligado aos intelectuais preocupados em associar arte e política. O poeta escreveu Se correr o bicho pega, se

ficar o bicho come, em parceria com Oduvaldo Vianna Filho, farsa musical em verso;

mesclando prosa e verso, redigiu o drama musical Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, com Dias Gomes.

Além das duas peças e dos prefácios que as acompanham (falaremos mais tarde dos prefácios a essas e a outras peças), importa a nossos objetivos rever o ensaio

Vanguarda e subdesenvolvimento, do mesmo Gullar, publicado em 1969. Embora não

trate de teatro, mas de arte em geral, com ênfase na literatura, o ensaio em certa medida condensa as conclusões a que Gullar terá chegado a partir de sua prática de poeta e dramaturgo: as idéias defendidas por ele em Vanguarda e subdesenvolvimento ao menos em parte decorreram do fazer artístico. A teoria sucedeu à prática, em lugar de tentar

monitorá-la – ao contrário, portanto, do que freqüentemente aconteceu às vanguardas no século XX.

No ensaio de 1969, o autor procura distinguir os diferentes processos de evolução das artes ocorridos na Europa e no Brasil. Ele pretende mostrar que o conceito de vanguarda nasce e se justifica historicamente nas nações européias e que não faz sentido importá-lo de modo mecânico. Por fim, busca traçar, com apoio em Karl Marx e, sobretudo, em Georg Lukács, o conceito de vanguarda que entende adequado ao país. No “Prefácio à 2ª edição”, admite haver exagerado certas dicotomias, o que se explica pelo intuito de participação imediata no debate cultural. O texto, não obstante, é rico e prossegue convidando à reflexão. Vamos resumi-lo e, sucintamente, comentá-lo.

Gullar empenha-se em caracterizar as condições sociais e políticas que suscitaram movimentos artísticos a partir do romantismo, ou seja, tomando-se a França como referência, a partir dos anos 20 do século XIX. Ele reporta-se ao século XVIII: a luta política que culminou na Revolução Francesa havia sido estimulada pelos intelectuais, e um dos objetivos revolucionários fora a liberdade de pensamento. Gullar cita Jean-Paul Sartre, que diz: “Desde então, reivindicando para si e enquanto escritor a liberdade de pensar e de exprimir seu pensamento, o autor serve necessariamente aos interesses da classe burguesa” (Sartre, em: Gullar, 2002: 178).

A burguesia, contudo, passa de classe revolucionária a detentora do poder; torna- se conservadora. Com isso, resta ao intelectual “o papel de servir à nova classe dirigente ou a ela se opor”. Aderir terá seu preço, dado que “a nova classe não está à altura dos ideais da Revolução”. Os valores burgueses da avareza e da eficácia amesquinham quaisquer utopias. Depois da vitória burguesa, o intelectual perde aquela “função fundamental” que exercera, crítica ou propriamente revolucionária.

Valor surgido em reação ao alegado desleixo formal dos românticos, a arte pela arte acentua o isolamento dos poetas, e “o artista desiste de mudar o mundo”. Nas últimas décadas do século XIX, a obra de Mallarmé amplia a distância entre poesia e vida cotidiana; uma e outra se tornam opostas, senão inimigas. As reivindicações operárias aparecem como enigma para os intelectuais, que se vêem excluídos das lutas políticas.

Já no século XX, “futuristas e dadaístas abandonam a herança metafísica de Mallarmé e voltam a disputar com a burguesia no plano social” (2002: 181). Mas eles identificam a arte à classe dominante, como se quisessem negar a ambas; assim, o que os levaria a se aproximarem do mundo concreto e moderno, representado pelo

crescimento das cidades, os automóveis, o cinema, transforma-se em novo motivo de afastamento: “O problema da liberdade – que no século XVIII era um problema concreto da sociedade – se recoloca então em termos abstratos”. A aspiração a “um êxtase semelhante ao dos místicos”, vivida por Breton, mentor do surrealismo, é dada como sintomática nesse sentido (2002: 182).

Gullar lembra que Schelling, filósofo idealista alemão, “descobrira a dialética – a história – mas a escamoteara. Hegel dera um passo adiante, mas recuara. Marx olhou o problema de frente, reintegrou o pensamento na história: trata-se de transformar o mundo. Mas isso significa tomar o partido da classe operária” – a nova classe que, como a burguesia no passado, somava motivos para alterar a ordem (2002: 182-3).

No entanto, alguns autores percebiam a vertigem histórica de outro modo: “Joyce, Eliot, Pound redescobrem Vico”; segundo esse autor, “a história caminha, mas caminha em círculo”. O romance Finnegans wake, de James Joyce, indica a tendência a ver, nos acontecimentos, um pesadelo recorrente a que não se pode fugir. A literatura cifrada, hermética, resultaria dessa visão que compreende o mundo como opaco ou mesmo ininteligível. Os embates públicos, que Mallarmé já desdenhara, são outra vez trocados pelos abismos de linguagem. Esse é, simplificadamente, o quadro da evolução das vanguardas européias até os anos 40 do século passado, conforme Gullar.

O ensaísta faz a seguir o resumo dos processos ocorridos no Brasil desde o Oitocentos, processos muito ligados à assimilação fora de contexto, às vezes acrítica, do que se pensou na Europa. Mas ressalta, no entanto, as tentativas que, dadas as nossas condições, foram importantes: o indianismo de José de Alencar, por exemplo, malgrado as ressalvas que se podem fazer a ele. Tratava-se, como também seria para os modernistas, de construir um país que não estava dado de antemão, como estavam, em certa medida, os contextos culturais europeus.

Um dos tópicos essenciais nas últimas seções do texto refere-se ao debate em torno do conceito de “obra aberta” (sendo essa abertura, essa ambigüidade, característica das obras de vanguarda). O mergulho na linguagem empreendido por Mallarmé e Joyce terá correspondido, como se disse, a um virar as costas à realidade social – eles acreditaram numa história circular, inapta para a mudança substantiva. Gullar não reduz esses autores, note-se, a meros cúmplices do estado de coisas político, mas procura mostrar de que modo a própria situação de classe dos artistas, a de

burgueses destituídos de efetivo poder econômico ou normativo, lhes impunha a atitude socialmente demissionária ou solipsista.

Cabe pensar alternativas a essa atitude, e o diálogo agora se trava com Umberto Eco, prestigioso teórico da obra aberta, com Marx e com o Lukács de Introdução a uma

estética marxista. Neste, Gullar encontra as categorias da singularidade, da

particularidade e da universalidade, vistas como instâncias constituintes do próprio real. De posse dessas noções, formula as possíveis saídas para aqueles impasses.

As citadas noções têm larga trajetória em filosofia. Hegel fez avançar a discussão, dando a elas um conteúdo histórico-social. Mas terminou por conceber os movimentos da realidade como simples aparência, dissolvendo “no universal as singularidades e particularidades que definem o mundo real”. Hegel, assim, retornava à metafísica. Marx repôs o problema sobre os pés notando, diz Gullar, que “a dialética do singular, do particular e do universal não é um produto da imaginação humana, mas o reflexo das conexões objetivas do mundo” (2002: 218). Os termos são dialeticamente interdependentes, pois “o universal só existe no singular, através do singular”, assim como o singular participa do universal, afirmaria Lenin (2002: 219). Essência e fenômeno, necessidade e contingência, universalidade e singularidade implicam-se mutuamente.

O pensamento dialético de tipo marxista, desse modo, propõe conciliar termos que, para a tradição metafísica, haviam permanecido inconciliáveis. E as questões referentes à obra aberta devem ser revistas nesse âmbito. Este é o empenho teórico de Gullar: o de encontrar solo histórico que embase as flutuações e indeterminações da obra aberta, ambígua ou polissêmica – modelo das vanguardas.

O ensaio e seu contexto, o Brasil de 1969, nos autorizam a entender o conceito de singular como equivalente ao de nacional ou de regional. Considera-se aqui o particular como termo mediador entre a singularidade, nacional ou local, e a universalidade, enxergando-se essa mediação como especialmente necessária às artes. Os trabalhos artísticos aspiram ao particular ou típico – fórmula que condensa aspectos singulares e universais, superando-os em nova síntese.

O fio dos argumentos torna-se claro quando Gullar procede à aplicação dos conceitos ao exame de textos literários, analisando dois poemas de João Cabral de Melo Neto. O primeiro, Fábula de Anfion, reincide nos impasses abstratos – vida versus linguagem – elaborados por Mallarmé, que servem de mote ao poema. Já o segundo texto, O cão sem plumas, abre-se para a realidade nordestina, afirmando-a como parte

da realidade brasileira e universal. Segundo lembra o ensaísta, “o específico da obra de arte é o particular e, portanto, a experiência determinada, concreta, do mundo” (Gullar, 2002: 228).

A opção desse modo recai sobre esta última obra, exemplo de texto a um só tempo local e universal, moderno e “aberto” sem deixar de estar voltado à exposição de problemas humanos e nacionais urgentes. De fato, as imagens em O cão sem plumas deixam larga margem à fantasia produtiva do leitor, enquanto, no mesmo passo, o levam a ver de modo mais rico e nítido como vive o homem que habita o mangue pernambucano, homem que constitui tema e personagem do texto de Cabral.

Nas peças Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come e Dr. Getúlio, sua vida e

sua glória, Gullar e companheiros exercitaram a pesquisa de formas populares – a farsa,

o cordel, o samba, o enredo carnavalesco –, pesquisa então correspondente à busca de uma realidade nacional, ligada a essas formas. O popular, nas circunstâncias atuais, deve implicar um conceito de povo mais complexo do que o formulado nos anos 60; essa noção terá de abrigar, hoje, as mudanças operadas pelos meios de massa na comunidade brasileira e mundial – mudanças que, no país, o autor terá sido um dos primeiros a estudar, conforme se lê no artigo “Problemas estéticos na sociedade de massa”, divulgado já em 1965. Feita a ressalva, diga-se que continua emergente para o artista oriundo das elites tentar entender, hoje, o que seja o popular, reaprendendo os possíveis caminhos de sua elaboração estética.

Se o ensaio, enfim, sugere o retorno à vida real, complexa mas inteligível e, portanto, transformável, a equação proposta se afigura clara: a alternativa à sedutora mas estéril embriaguez da linguagem reside na atenção que se deve dedicar aos acontecimentos coletivos e à aventura das classes em conflito. Para o autor de

Vanguarda e subdesenvolvimento, trata-se de reunir as conquistas expressivas, segundo

o repertório renovável das pesquisas formais, ao engajamento na causa de um país menos desigual.

3.6. Em síntese

O presente capítulo pretende fornecer instrumentos para a análise das peças que se fará na próxima seção. Mas entendemos também ser o caso de considerá-lo em si mesmo: as idéias estéticas que circularam há 30 ou há 40 anos têm seus próprios direitos de cidadania e guardam, ao menos em parte, interesse ainda agora, somadas às

que delas decorrem ou com elas dialogam. As noções extraídas dos textos teóricos de Brecht, Boal, Szondi, Lukács ou Gullar mantêm-se capazes de iluminar a produção artística dos anos 60 e 70, como também podem fazê-lo quanto ao que se elabora hoje em teatro e literatura.

Até onde isso acontece era justamente o que cumpria indagar no caso desses autores, a começar por Brecht. Para compreendê-lo, mobilizamos três dos comentaristas que se dedicaram à obra do dramaturgo e teórico: Sábato Magaldi, Gerd Bornheim e Roberto Schwarz. Filiado a Brecht, encontra-se o “Sistema do Coringa” de Augusto Boal, que simultaneamente conserva e, em certa medida, contradiz premissas brechtianas, sobretudo a que diz respeito à recusa da empatia entre ator, personagem e público.

Já Anatol Rosenfeld, ao reler o Peter Szondi de Teoria do drama moderno, apóia- se no teórico húngaro, mas ao mesmo tempo nele se inspira para compor nova síntese (mais abrangente do ponto de vista histórico) em O teatro épico. Ressaltamos, por fim, o território comum a Introdução a uma estética marxista, de Georg Lukács, e

Vanguarda e subdesenvolvimento, de Ferreira Gullar, buscando entender a

especificidade brasileira desse último ensaio.

Das idéias de Brecht, cabe fixar a mencionada recusa da empatia, com o efeito de

distanciamento que transfere para o espectador parte da responsabilidade pelo que a

peça teatral diz – o objetivo afinal é o de produzir conhecimento. Brecht imaginava que a “atitude crítica” seria capaz de transformar as relações sociais, se viesse a incidir sobre elas. Sua expectativa não se cumpriu, mostrando-se inviável, segundo Schwarz. Em contrapartida, o crítico propõe que se notem, nas peças mesmas, representações que dão conta de problemas políticos urgentemente atuais. Veja-se, por exemplo, o retrato de um capitalismo brutal e sem contrastes, feito com ironia em Santa Joana dos Matadouros.

A outra linha teórica destinada a descrever o teatro épico procede de Szondi, com sua noção de forma como conteúdo precipitado, conceito por sua vez aparentado às idéias de Lukács. Este insiste na idéia de que toda forma é “forma de um conteúdo determinado”, com o que procura ancorar as representações artísticas na realidade objetiva, correspondente às relações sociais e econômicas.

A emergente necessidade, no Brasil de fins dos anos 60, de responder à situação política, assim como de pavimentar de maneira menos circunstancial o caminho para a arte participante, levou Ferreira Gullar a escrever Vanguarda e subdesenvolvimento. O

ensaio sublinha, como norte para as artes, “a experiência concreta do mundo” que se traduz na categoria do particular, tomada a Lukács.

As idéias expostas neste capítulo, devidas a autores distintos, relacionam-se, portanto, umas às outras. A dramaturgia crítica formulada por Brecht viria a inspirar os musicais brasileiros do período, e a forma do musical foi freqüentemente a configuração predileta na tentativa de se estabelecer um teatro popular e político.

Esses espetáculos logo tiveram de se restringir às platéias de classe média, perdendo a possibilidade de contato com as camadas pobres. O povo deixou de ser – ou não chegou a ser – o destinatário das peças, ainda que comparecesse a elas no plano dos temas e das personagens, conforme apontam Schwarz e Iná Camargo Costa. Aliás, o próprio Augusto Boal já percebia tais limites em 1967.

O realismo lukacsiano, embora tenha pontos bastante discutíveis, entre eles a predisposição pouco favorável ao experimentalismo das vanguardas, de todo modo influiu sobre a produção brasileira. As teses de Lukács ainda hoje oferecem referências – que se podem aceitar em parte ou adaptar às nossas circunstâncias – aos que fazem ou pensam uma arte atenta às desigualdades sociais e aos movimentos históricos que aspiram a superá-las.

Os prefácios que acompanham a edição das peças mencionam Brecht e Lukács ou implicitamente aludem a eles, reprocessando as suas idéias, como acontece em “O teatro: que bicho deve dar?”, introdução a Se correr o bicho pega, se ficar o bicho

come. Os artistas brasileiros, reitere-se, pensaram as suas tarefas e circunstâncias para

além do mero aproveitamento das idéias alheias. Tais prefácios condensam os conceitos que autores e diretores formularam na hora mesma em que as peças eram encenadas; é o caso da noção de encantamento que surge na apresentação do Bicho, uma das teses ou intuições de fatura e feição locais de que falaremos adiante.