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4. Capítulo III: A dramaturgia musical

4.2. Os textos-colagem

4.2.3. Os materiais de Opinião

Dois propósitos se formulam no prefácio à peça, intitulado “As intenções de

Opinião” e assinado pelos autores. Em linha de idéias semelhante à do texto de

contracapa do disco Opinião de Nara, embora de maneira mais incisiva, os dramaturgos afirmam, referindo-se à primeira dessas intenções, que

a música popular é tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social; quando mantém vivas as tradições de unidade e integração nacionais. A música popular não pode ver o público como simples consumidor de música; ele é fonte e razão de música (Costa, Pontes e Vianna Filho, 1965: 7).

Ressalte-se o aparente paradoxo quando dizem que a música popular torna-se mais expressiva “quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social”. O paradoxo residiria em que o adjetivo “popular” deveria indicar, em linha reta, filiação ao povo, mas este não é o caso; estamos aqui no âmbito das definições propostas no Anteprojeto do Manifesto do CPC, de Carlos Estavam Martins, que distingue entre “arte do povo”, “arte popular” e “arte popular revolucionária”.

Nesses termos, a arte do povo supõe que produtores e consumidores de bens culturais não se diferenciem; ou melhor, tais papéis inexistem no meio rural ou no entorno das cidades quando ainda intocados pela industrialização. A arte do povo acha- se próxima do folclore. Já a arte popular destina-se a público urbano; nela, o artista distingue-se dos demais trabalhadores, especializando-se em obras dirigidas a “receptores improdutivos”.

Por fim, a arte popular revolucionária, sempre segundo o Anteprojeto, seria feita por militantes que, ligados às classes pobres e tomando emprestadas algumas de suas práticas culturais, destinaria a essas classes uma arte de agitação e propaganda, visando despertar a sua consciência política. A maneira de encarar o papel da música no espetáculo (e, mais amplamente, no mercado cultural) guarda algo das noções cepeceanas.

Evidentemente, não se trata de afirmar que a atitude ideológica, em fins de 1964, fosse a mesma que orientara o Centro Popular de Cultura, mas de assinalar que certas idéias do CPC conservam-se em Opinião, superados o utilitarismo e o dirigismo excessivos. O prefácio à peça faz entender que a música popular pode ou não filiar-se ao povo, aliando-se a seus interesses ou deles se alienando, relacionando-se ou não aos “novos sentimentos e valores” assestados na direção de uma sociedade menos desigual. O caráter nacional-popular das canções mobilizadas reitera-se quando os autores falam na necessidade de se manterem “vivas as tradições de unidade e integração nacionais”.

As mesmo tempo, destaca-se a contemporaneidade de tais posturas: “A música de Zé Kéti tem uma nova riqueza de variação que representa o novo sambista que anda por Copacabana, canta em faculdades, participa de filmes, ouve rádio e disco” (Costa, Pontes e Vianna Filho, 1965: 7). João do Vale possui qualidades que também o singularizam, dado que em suas músicas “o lamento antigo permanece, acrescido de uma extraordinária lucidez” (1965: 8).

O espetáculo dispõe-se à pesquisa de fontes populares. Ainda na esfera da primeira das intenções expressas no prefácio, sabe-se que, depois de ouvir os depoimentos de Zé Kéti, João e Nara, nos quais basearam boa parte do texto, os autores procuraram os compositores Cartola e Heitor dos Prazeres e o jornalista Sérgio Cabral, entre outros nomes, que lhes forneceram estrofes de partido alto – estilo tradicional de samba que privilegia o canto coletivo e o improviso, praticado no Rio desde as primeiras décadas do século XX. O mesmo se passou em relação aos versos nordestinos: o erudito Cavalcanti Proença “ajudou a achar os desafios mais célebres do Cego Aderaldo”, famoso cantador cearense do início do século passado.

Se contabilizarmos ainda os sambas modernos de Zé Kéti, os baiões e xotes de João do Vale, a dicção bossanovista de Lyra, Vinicius, Tom Jobim, a música de inspiração nordestina de Sérgio Ricardo, teremos a mencionada antologia de gêneros proposta no espetáculo. O nacionalismo, diga-se, tempera-se com a inclusão de canções do norte-americano Pete Seeger, que viajava por seu país recolhendo protest songs. Dramaturgos e intérpretes, portanto, recusam a xenofobia, abrindo a segunda parte do show a canções estrangeiras – não a quaisquer músicas vindas de fora (algumas, aliás, aparecem parodiadas), mas às que guardem afinidades com as suas buscas.

“A segunda intenção do espetáculo refere-se ao teatro brasileiro”, dizem os autores. Eles procuram saídas para “o problema do repertório” no qual a dramaturgia nacional estaria “entalada”. A revalorização da criatividade do ator, a volta aos

elementos lúdicos do teatro, entre eles o humor e a musicalidade, e a reação aos êxitos comerciais importados mecanicamente da Europa e dos EUA são aspectos deste segundo grupo de intenções.

Armando Costa, Vianinha e Paulo Pontes citam colegas que então perseguem objetivos semelhantes, mencionando os espetáculos de Flávio Rangel e o “excelente repertório do grupo Oficina, do grupo Decisão”; artistas mais velhos, como a atriz Cacilda Becker, procedente do Teatro Brasileiro de Comédia, também comparecem à lista de nomes pela qual os dramaturgos estendem a mão a prováveis aliados estéticos e, sobretudo, políticos: “É preciso restabelecer (...) o espetáculo do homem de teatro brasileiro”, pontificam (1965: 10).

O primeiro verso que se canta em Opinião vem na voz de Nara, que pergunta, ao som do berimbau: “Menino, quem foi seu mestre?”. O verso procede da capoeira, como o toque do berimbau sublinha, e sugere desafio. Iná Camargo Costa diz: “Com isto, está definido o enquadramento geral do espetáculo, pela proposição: música aqui é emblematicamente entendida como resistência à dominação”. A estudiosa registra ainda que, apesar de ser essa a atitude básica, o show “não exclui o humor”; a atmosfera popular e a herança negra trazem “o duplo sentido, a malícia, a auto-ironia” (Costa, 1996: 106).

De fato, o espetáculo ganha o público logo nos primeiros instantes, fazendo-o rir com o xote Peba na pimenta, de João do Vale. O compositor explica: “Peba é um tatu. A gente caça ele pra comer. Com pimenta fica mais gostoso”. Em seguida, canta a música de letra sonsa: um certo Malaquias prepara “cinco pebas na pimenta” e reúne convidados para degustarem os tatus; entre os convivas, acha-se a cândida Maria Benta. “A pimenta era da braba”, e a moça então “chorava, se maldizia” garantindo que, se soubesse, “dessa peba não comia”. Ao longo do show, aparecerão várias canções e cenas cômicas, um pouco à maneira desta. São passagens nas quais se explora, mais que o duplo sentido sexual ou político, o caráter de anti-herói que é o dos três atores- personagens, capazes da referida auto-ironia.

Depois do xote, os protagonistas cantam juntos, numa espécie de medley, trechos de canções associadas a cada um deles. Misturam, por exemplo, o samba Malvadeza

Durão, personagem “valente, mas muito considerado”, com o baião Carcará, em que se

fala da ave de rapina que tem “mais coragem do que homem” e que “pega, mata e come!” (respectivamente de Zé Kéti e João do Vale). Esses motes serão retomados e reforçados ao final do espetáculo, fechando o sentido geral de Opinião.

Os três, acompanhados pelo coro, interpretam o xote Pisa na fulô, de João. Terminada essa música, iniciam-se os depoimentos – vistos por Maria Helena Kühner como procedimento fundamental na confecção do trabalho. A ensaísta ressalta a natureza parcial e provisória dos relatos pessoais, quando tomados isoladamente, e o fato de que, reunidos, apontam para nexos amplos, exemplares do que se vivia à época. Tais relatos embutem caminhos possíveis para a “evolução social” de que os dramaturgos falam no prefácio.

Maria Helena Kühner diz: “O testemunho é, portanto, um processo; nele

dramatiza-se a experiência de um processo para ver ‘como as coisas realmente são’”.

Adiante, acrescenta: “As testemunhas não trazem relatos acabados, completos, capazes de permitir de pronto um julgamento ou conclusão. Seu testemunho, seu depoimento, seu ponto de partida é ainda difuso, impreciso”. A soma das falas, contudo, arma-se de modo a delinear descobertas e, com elas, certezas menos frágeis (2001: 44).

O primeiro a depor é João do Vale: “Pobre, no Maranhão, ou é Batista ou é Ribamar. Eu saí Batista”, diz. Ele nasceu na cidade de Pedreiras, mais precisamente na rua da Golada – que, depois de o compositor se tornar conhecido, passou a se chamar rua João do Vale. O músico brinca: “Quer dizer, eu, assim com essa cara, já sou rua”. Os heróis riem de si mesmos, sinal de saúde em tempos autoritários.

Destaquem-se dois pontos na fala de João. O primeiro, factual, dá conta de o compositor ter 230 músicas gravadas, grande parte delas tendo circulado, sobretudo, no Nordeste. Outro aspecto a notar refere-se especificamente a questões de mercado (questões que o espetáculo retomará mais tarde), quando diz que “as que são mais conhecidas do povo são as músicas mais assim só pra divertir. Elas interessam mais aos cantores e às gravadoras. É só tocar, já sair cantando”. Bom exemplo desse tipo de canções certamente será Peba na pimenta.

Mas ele tem “outras músicas que são menos conhecidas, umas que nem foram gravadas”. João completa o testemunho realizando uma das mudanças de tom que acontecerão por várias vezes ao longo do espetáculo: “Minha terra tem muita coisa engraçada, mas o que tem mais é muita dificuldade pra viver” (na gravação, “dificuldade” é trocada pelo sinônimo “sacrifício”).

Zé Kéti apresenta-se de maneira auto-irônica, à semelhança de João: o carioca trabalha em órgão público, o Iapetec, como escriturário de nível oito – a inflexão com que diz “nível oito” resulta cômica. Relata as dificuldades da vida de sambista, lembrando os vários anos que gastou insistindo para que gravassem as suas canções.

Afinal, A voz do morro desencantou e obteve mais de 30 registros: “O dinheiro que ganhei deu para comprar uns móveis de quarto estilo francês e comi três meses carne”, conta, entre objetivo e bem-humorado.

O testemunho de Nara reafirma que ela nasceu em Vitória, mas sempre viveu em Copacabana – então bairro da alta classe média no Rio de Janeiro, principalmente nos endereços da avenida Atlântica, onde morou com a família no famoso apartamento em que teria sido criada a bossa nova. A fala da cantora complementa as anteriores, embora tenha tom mais explícito de manifesto – sem esquecer a comicidade: “Não acho que porque vivo em Copacabana só posso cantar determinado estilo de música. Se cada um só pudesse cantar o lugar onde vive que seria do Baden Powell que nasceu numa cidade chamada Varre e Sai?”.

A intérprete encerra a sua fala-manifesto dizendo pretender cantar todas as músicas “que façam todo mundo querer ser mais livre, que ensinem a aceitar tudo, menos o que pode ser mudado”. Depois dessas palavras, João e Zé Kéti ironizam Nara, brincando com versos de Maria-Moita: “Mulher que fala muito/Perde logo o seu amor” (1965: 19-20).

A passagem que acabamos de comentar, na qual os depoimentos que percorrem o espetáculo aparecem pela primeira vez, exemplifica procedimentos recorrentes no show. A referência à origem pobre dos compositores e à disposição da cantora de aliar-se a eles; as mudanças de tom, do alegre para o triste e vice-versa, e o humor com que se temperam as convicções são traços importantes do espetáculo – ainda que a atitude de resistência, com o que tem excessivo otimismo, prepondere ao final.

Os testemunhos serão retomados após cantarem bem-humoradas estrofes de partido alto. Entre os depoimentos ouvidos ainda nesta primeira parte do espetáculo, destacaremos o momento em que João do Vale fala sobre o aralém, remédio destinado a curar “a sezão, febre de impaludismo” e que deveria ser distribuído gratuitamente pelo governo entre a população, mas acabava negociado por arroz.

O compositor recorda o fato de maneira pungente: “Ficou marcado isso em mim, ver um saco de arroz que custou dois meses de trabalho capinando, brocando, ser trocado por um pacotinho com duas pílulas que era pra ser dado de graça”. Nara aproveita o tema da seca e das relações sociais impiedosas para cantar Borandá, de Edu Lobo: “Já fiz mais de mil promessas/Rezei tanta oração/Deve ser que eu rezo baixo/Pois meu Deus não ouve, não” (1965: 28-9).

Terminada a canção triste, e sem transição, a intérprete falará de temas bem mais leves, relativos à sua vivência de menina burguesa. O espetáculo prosseguirá ligando atmosferas afins ou alternando climas distintos, passando pela contenda cômica entre Cego Aderaldo e Zé Pretinho (registrada em 1916), pelo baião Carcará e por uma

incelença, “música que se canta em velório”. A primeira das duas seções traz ainda

canção em que se louvam as coisas boas do Nordeste (“São segredos que o sertanejo sabe/E não teve o prazer de aprender [a] ler”), seguida de uma sátira à influência musical norte-americana no interior do país:

Lá pras tantas Bené se enfezou E tocou um tal de roque a roll Os matutos caíram no salão Não queriam mais xote nem baião E que briga se eu falasse em xaxado Foi aí que eu vi que no sertão

Também tem os matuto transviado [sic] (1965: 49).

Os brios brasileiros lavam-se com samba, mais especificamente com A voz do

morro: “Eu sou o samba/A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor/Quero mostrar ao

mundo que tenho valor/Eu sou o rei dos terreiros...”. O tema do nacionalismo será retomado, de outro ângulo, na segunda parte do espetáculo.

Há quem afirme que as referências ao regime militar são escassas em Opinião. De fato, as falas que visam a ditadura de maneira direta não são muitas, mas existem e respondem por alguns dos momentos engraçados do espetáculo. Três réplicas, ditas por Zé Kéti na primeira parte do show, o exemplificam.

A primeira delas se dá quando o compositor explica a origem de seu apelido (Zé Quietinho, em criança) e diz que resolveu grafá-lo com a inicial “k” porque “k” “estava dando sorte – Kubitschek, Kruschev, Kennedy. Mas agora, meus camaradinhas, acho que a sorte michou” (1965: 30).

Na cena repleta de gírias em que Nara e ele representam malandros, a moça quer saber se a personagem de Zé Kéti havia fumado maconha e, para isso, examina seus olhos para verificar se estão vermelhos. O homem então adverte, fazendo o público rir: “Ô, meu camaradinha, não fica falando em vermelho, não, que vermelho tá fora de moda”. Uma terceira referência desse tipo ocorre nessa mesma cena: Nara pede que ele

lhe empreste algum dinheiro, e Zé Kéti responde: “Tô duro. Durão. Agora sou da linha dura!” (1965: 43, 44).

A reação dos espectadores a essas piadas é de adesão imediata, de cumplicidade evidente, como se constata ouvindo o CD com trechos do show. Confirma-se a idéia de que o espetáculo responde em linha reta a seu contexto – o que nem sempre acontecerá de modo tão literal com os musicais do período; no caso de Opinião, obra e circunstância efetivamente não se separam. Ao percebê-lo, deve-se lembrar também que muito do que se realizou no show tornou-se importante para o que viria depois, impulsionando outras peças e tendências, sobretudo nos limites das décadas de 60 e 70.

Opinião deflagra o desejo e reforça o propósito de se falar das questões sociais

sob a forma de teatro musical, ainda que seu modelo singular não tenha sido o único, nem o mais utilizado pelas obras que dela descendem. Essa filiação, de que Opinião é matriz, se faz menos a partir de seus achados formais específicos do que a partir de seu espírito: a pesquisa das fontes populares e a busca por conhecer social e politicamente o país promovem conteúdos que, por sua vez, sugerem ou implicam meios expressivos, ou seja, procedimentos formais (o conteúdo “precipita-se” produzindo forma, como diz Szondi); de maneira geral, opera-se aqui a reelaboração consciente de padrões populares. Os dados de conteúdo e os processos técnico-artísticos arregimentam-se na tentativa de resistência ao regime e na crítica do modelo econômico patrocinado pela ditadura.

A legitimidade do uso de formas estrangeiras foi problema apaixonadamente discutido desde fins dos anos 50: o caso dos elementos jazzísticos presentes na bossa nova mostra-se exemplar nesse sentido. Anote-se, reiterando o que já se apontou, que

Opinião absorve canções norte-americanas e latino-americanas como Guantanamera,

com letra de José Marti, “revolucionário cubano do século passado”, com o que os autores fazem referência, é claro, à Revolução Cubana realizada em 1959. À mesma altura, abordam questões mercadológicas, denunciando a tendência à uniformização cultural contra a qual o show também se posiciona: “É mais barato para as companhias gravadoras vender um só tipo de música no mundo todo”, dizem, tomando emprestadas palavras do crítico Nelson Lins e Barros (1965: 55-6).

Encerramos estes comentários acerca de Opinião destacando dois tópicos. Um deles envolve a forma de desfile ou de revista carnavalescos com que se ordena parte da segunda seção, conforme notou Iná Camargo Costa. Arma-se ali uma espécie de

balanço da produção cultural de esquerda anterior ou contemporânea ao Golpe. O mote se dá com o hino feito por Zé Kéti “de brincadeira para a equipe do filme Rio 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos. Iná observa:

Como no carnaval, ou no teatro de revista, inicia-se então o desfile alegórico, em blocos entremeados pelos outros fios da narrativa, do conjunto da produção musical ligada ao cinema e ao teatro no período, cada obra representada por sua música-emblema. Assim, A voz do morro é Rio 40 graus, Malvadeza Durão é Rio Zona Norte [outro filme de Nelson Pereira], Feio não é bonito é Gimba, Tristeza não tem fim é Orfeu da Conceição” [peça de Vinicius de Moraes] (Costa, 1996: 109).

Todo um movimento épico parece descrever-se aqui, tingindo-se da tonalidade heróica a que aludiu Maria Sílvia Betti ao falar de como os ideais cepeceanos, menos imaturos e confrontados a outras e desfavoráveis circunstâncias, viriam a sobreviver (ou a reviver) nesse novo momento, “sobrevivência que o espetáculo celebra e ritualiza” (Betti, 1997: 157).

Importa assinalar ainda, em contraponto, a ironia com que a Voz vinda dos alto- falantes, em play-back, interpela Nara Leão quando a moça procura aprender o baião

Sina de caboclo, de João do Vale, em aula ministrada pelo próprio compositor. A Voz,

que poderia ser a de um dos críticos hostis ao alegado “populismo” do show e dos produtos culturais que lhe eram afins, pergunta: “Você vai fazer um disco cantando baião, Nara?”. A cantora responde afirmativamente, e a Voz insiste, incrédula e provocativa: “Baião, Nara?”.

Questiona-se o quanto seria legítimo uma artista que “tem voz de Copacabana, jeito de Copacabana” cantar estilos diversos dos que socialmente lhe estariam reservados. A Voz tem argumentos ácidos: “O dinheiro do disco você vai distribuir entre os pobres, é?”; ou “Você pensa que música é Cruz Vermelha, é?”. Afinal, “não vai dar certo, Nara. Você vai perder o público de Copacabana, lavrador não vai te ouvir que não tem rádio, o morro não vai entender” (1965: 73-8).

Se descartarmos o tom caricato, exagerado, que se adota nessas falas, veremos que tais objeções se assemelham às encontradas no debate “Confronto: música popular brasileira – entrevistas concedidas a Henrique Coutinho por Edu Lobo, Luís Carlos Vinhas e José Ramos Tinhorão”, publicado na Revista Civilização Brasileira, nº 3, de julho de 1965. A Voz em Opinião resume argumentos que, no debate, caberiam ao articulado e combativo Tinhorão (argumentos desse tipo vinham sendo expressos havia

algum tempo). O espetáculo, diga-se, embora incorpore por alguns instantes as ponderações de seus críticos, termina por dar razão a Nara, que abandona o diálogo com a Voz para interpretar a Marcha da quarta-feira de cinzas, de Lyra e Vinicius, segundo a qual “mais que nunca é preciso cantar”.

O mesmo número da revista traria o artigo “Se eles vencessem...”, de Márcio Moreira Alves, originalmente divulgado no jornal Correio da Manhã a 1º de junho de 1965, ali republicado no âmbito das “Investigações e debates sobre um ‘delito de opinião’”, com as quais Ênio Silveira reunia material relativo ao inquérito policial- militar aberto contra sua editora, a Civilização Brasileira, em 1964, além de textos correlatos.

Depois de denunciar torturas praticadas contra estudantes e contra membros do Partido Comunista Brasileiro, Moreira Alves informava sobre cortes em Opinião, entre