• Nenhum resultado encontrado

Liberdade, liberdade: o espetáculo e sua circunstância

4. Capítulo III: A dramaturgia musical

4.2. Os textos-colagem

4.2.4. Liberdade, liberdade: o espetáculo e sua circunstância

A peça Liberdade, liberdade, o segundo dos textos-colagem a serem examinados, não se propõe a compor antologia de gêneros, literários ou musicais, nem a apresentar personagens típicas, que resumam a população brasileira ou parte dessa população e sua demanda por mudanças, como acontece em Opinião. A coletânea de textos e canções, aqui, busca reafirmar valores essenciais, conforme o título explicita. Adota-se a

estratégia de universalizar os argumentos, portanto; o acervo das conquistas democráticas, alcançadas em épocas e lugares diversos, é mobilizado como arma na disputa ideológica com o regime.

Escrito por Millôr Fernandes e Flávio Rangel, o espetáculo, dirigido por Flávio, estreou a 21 de abril de 1965 na mesma sala em que Opinião surgira, quatro meses antes. O elenco formado por Paulo Autran, Tereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho e Nara Leão dizia e cantava obras ou fragmentos devidos a dezenas de nomes – do poeta Geir Campos a Jesus Cristo, do “famoso compositor e violonista brasileiro Robert Thompson Baden Powell de Aquino” a Platão, de Shakespeare ao diretor francês Barrault e deste a Moreira da Silva, Noel Rosa, Bertolt Brecht.

O texto possui humor, embora o tom sério a ele também compareça: assuntos como delação, prisões e execuções acham-se entre os temas abordados. Os grupos Opinião e Arena uniam-se pela segunda vez na produção de um espetáculo.

Referências muito prestigiosas, como Thomas Jefferson ou Winston Churchill, além do próprio Cristo, faziam a coletânea parecer algo acima de qualquer suspeita política – o que confundiu os censores, dispostos a criar dificuldades para a carreira do espetáculo quanto este se transferiu do Rio de Janeiro para São Paulo.

Liberdade, liberdade, ao menos na forma de texto em livro, aquela a que temos

acesso, parece menos quebradiça, mais consistente que Opinião, como dissemos páginas atrás. É verdade que a montagem pode transfigurar as palavras, nelas revelando virtualidades insuspeitadas à simples leitura; e, de fato, o show de 1964, de que pudemos ouvir os trechos registrados em disco, mostra-se melhor em movimento do que em letra de fôrma.

Raciocinamos a partir dos elementos disponíveis: a trivialidade de certas falas em

Opinião (embora o banal seja apenas aparente em alguns casos) e o processo da

associação de idéias, que não dispensa as modulações arbitrárias, produzem a impressão de colcha de retalhos, tornando o texto dependente das referências tópicas, o que não ocorre na mesma medida com a peça de 1965 (no entanto, como se vai ver a seguir, não foi assim que artistas e críticos entenderam Liberdade, liberdade naquele instante). A relativa unidade conferida pelo tema principal, que funciona como fio condutor, e pela atitude literária mais disciplinada empresta à colagem de Millôr Fernandes e Flávio Rangel maiores chances de permanecer no repertório, se comparada à sua congênere.

Os artistas ligados ao espetáculo e os críticos que sobre ele escreveram enxergaram essas questões de diferentes modos. O primeiro ponto de vista a lembrar é o

de Vianinha, expresso em artigo que não se divulgou na ocasião, breve ensaio já mencionado. Ele diz ali: “Muitos acharão que Liberdade, liberdade é excessivamente circunstancial. Para nós, essa é a sua principal qualidade”. E enfatiza: a montagem “é o espetáculo mais circunstancial da história do teatro brasileiro” (1983: 107).

Vianna Filho defende a pertinência de textos feitos segundo as exigências do instante político; fala em trabalhos úteis, destinados a cumprir tarefas de comunicação emergentes, “deixando na história não a obra, mas a posição”. Porém, para ele não se trata de propor “um teatro de momento”, puramente contingente. De acordo com o olhar agudo de Vianna, informado pelas teses de Lukács – veja-se a relação entre fenômeno e essência, implícita nas palavras que se seguem –, autores e intérpretes do espetáculo “afirmam que muitas vezes a circunstância é tão clara, tão imperiosa, que sobe à realidade como um retrato dos seus fundamentos. Afirmam que nesse instante a realidade mais profunda é a própria circunstância e – nesse momento – não ser profundamente circunstancial é não ser real” (1983: 108).

As contradições brasileiras materializavam-se na “chamada ‘revolução’” e nos seus desdobramentos, como escrevia Ênio Silveira em 1965, ressaltando não saber “por que insistem em denominar assim, de modo sociologicamente incorreto, o movimento insurrecional do 1º de abril” (Silveira, em: Kühner e Rocha, 2001: 85).

Dois dos mais influentes críticos da época, Yan Michalski e Décio de Almeida Prado, atuando respectivamente no Rio e em São Paulo, fizeram reparos ao texto e ao espetáculo. Sublinharam, em contrapartida, as suas qualidades, além de se solidarizarem com os propósitos do empreendimento, “uma ação indiscutivelmente cristã, cívica e didática na sua essência”, diria o comentarista carioca, certamente sem esquecer que seria lido também por inimigos das liberdades políticas (Michalski, 2004: 40).

O crítico do Jornal do Brasil escreveu por duas vezes acerca da montagem, ambas já no mês de estréia, segundo o que se encontra nas Reflexões sobre o teatro brasileiro

no século XX, livro que reúne parte de sua larga produção na imprensa. O primeiro

desses artigos, por se ater mais a fatores literários, é o que nos importa aqui.

Um dos reparos formulados por Michalski coincide com o que seria feito por Décio de Almeida Prado e se prende aos “poucos textos [no espetáculo] que se afastam do tema central da liberdade ou que dão a este tema um sentido demasiadamente elástico, como, por exemplo, o monólogo de Júlio César”, passagem da tragédia de Shakespeare em que Marco Antônio discursa lastimando o assassinato de César.

A qualidade desigual dos “textos de ligação”, utilizados pelos autores entre as palavras alheias, foi, contudo, o aspecto que pareceu a Michalski “realmente sujeito a restrições”. Por fim, a questão de como qualificar a obra no que toca ao gênero aparentemente preocupou o crítico, que encerraria assim seu comentário: “Não se trata, obviamente, de uma peça de teatro, e não será graças a Liberdade, liberdade que a dramaturgia brasileira reencontrará o seu rumo perdido; mas se trata de um show oportuno, feito com muito coração e muita inteligência”. Michalski posicionava-se ao lado dos artistas, completando: “Cantar a liberdade, em verso, prosa ou música, é sempre uma obra útil; fazê-lo em bom verso, boa prosa e boa música é muito mais útil ainda” (2004: 41).

Ao excursionar pelo país, a começar por São Paulo, a montagem passou a ter problemas com a censura, os quais já se haviam esboçado no Rio de Janeiro. A hesitação do governo em vetar textos históricos, devidos a nomes ilustres, temporariamente resguardou o espetáculo das interdições.

A estréia na capital paulista “foi ameaçada de proibição total”, informam Maria Helena Kühner e Helena Rocha. A encenação seria afinal permitida – mas com 25 cortes. O episódio deu início ao “processo de brigas do Grupo [Opinião] e da classe teatral com a Censura”; o espetáculo sofreria novos cortes em Minas Gerais e Alagoas; no Ceará, o próprio governador tomou a si a tarefa de censurar Liberdade, liberdade (2001: 90).

Os artistas de teatro mobilizaram-se, entregando ao presidente Castelo Branco, em agosto, carta aberta com 1500 assinaturas na qual protestavam contra as limitações impostas à expressão no país. Em outubro, telegrama endereçado à Comissão de Direitos Humanos da ONU denunciava o problema. No livro O teatro sob pressão, Michalski conclui seus comentários acerca do ano de 1965 lembrando que “o tempo vai encarregar-se logo de demonstrar a inocuidade de tais reclamações” (1989: 24).

Peças e espetáculos politizavam-se, manifestando-se contra o regime que promovia a perda de liberdades civis. Já em outubro de 1965, o governo promulgava o Ato Institucional nº 2, que dissolvia os partidos políticos e instaurava o bipartidarismo (que teria a Aliança Renovadora Nacional, a Arena, como partido de situação, e o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, de oposição). Mais: o AI-2 estabelecia que as eleições para presidente da República tornar-se-iam indiretas. Em fevereiro de 1966, o AI-3 estende o voto indireto às eleições para o governo dos estados.