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3. Capítulo II As idéias estéticas

3.3. Estruturas épicas: Peter Szondi e interlocutores brasileiros

3.3.3. Teatro épico no Brasil: Iná Camargo Costa

A hora do teatro épico no Brasil, livro de Iná Camargo Costa lançado em 1996,

trabalha sobre o período singularmente rico que se estende de Eles não usam black-tie, em 1958, a Roda viva, em 1968, meses antes do AI-5. O trabalho arrisca uma tese audaciosa sobre essa fase e seus produtos, afirmando que as boas intenções revolucionárias, que começaram a engordar no Arena, batem bruscamente não apenas contra o Estado policial, mas também contra o mercado, que disciplinou com lucro as dissidências, e contra a própria incapacidade dos agentes históricos – artistas, no caso – em perceber a derrota em 1964.

Eles alimentaram a quimera de uma arte participante que, no entanto, a partir do Golpe, volta a fechar-se em espaços políticos estreitos, restritos à classe média impotente, malgrado as ilusões de bilheteria. O sonho de um teatro político e popular, portanto forte, degrada-se melancolicamente no espancamento de atores, em julho de 1968, depois de uma sessão de Roda viva.

Iná Camargo Costa procura revelar, em cada evento, o seu contrário, os avessos pouco notados. Desse modo, inverte sinais comumente aceitos no que diz respeito à

história teatral, à crônica da cultura brasileira nas últimas décadas, contradizendo interlocutores como Décio de Almeida Prado. Ela acredita que as formas artísticas condensem os valores do tempo em que nasceram e, mais importante, da classe que as criou, o que indica seu parentesco com o Peter Szondi de Teoria do drama moderno.

Como ficou dito ao tratarmos do livro de Szondi, o drama, com o diálogo e os limites estritos para o espaço da ação, dados formais que lhe são inerentes, presta-se à exposição dos trajetos individuais por meio dos quais a burguesia, que o sustentou, reflete sobre o mundo. Mas parece acanhado para a exibição dos quadros mais largos. O teatro épico, à procura do qual o Arena tateava, responderia a questões de caráter coletivo, temas como o conflito entre proletários e patrões, mote da peça de Guarnieri.

Black-tie foi escrito na forma de um drama, no qual o protagonista é o jovem

Tião, posto diante da escolha entre aderir ou não a uma greve, isto é, ser ou não ser fiel à sua classe. Tião terá como antagonista o próprio pai, Otávio, um militante comunista de velha cepa. Mas, se essa é a forma, o assunto ou conteúdo é outro: trata-se de traçar o quadro em que evolui uma rebelião de trabalhadores e de aferir seu impacto não somente sobre a vida de Tião, mas sobre a de toda a comunidade, a favela. O assunto é, portanto, épico, enquanto a forma permanece dramática. Pede outros recursos de expressão, como a voz de um narrador capaz de unificar o mundo onde os horizontes se abrem para além da sala de visitas. A autora obriga-se a concluir que o próprio sucesso de Black-tie constituía o sintoma de que o brasileiro progressista pensava, naquela hora, ainda por esquemas formalmente conservadores.

O Arena sabia de que temas pretendia falar e buscava o melhor modo de tratá-los. A peça de Guarnieri corresponde a um daqueles instantes em que velho e novo se atritam: o primeiro ainda não morreu, o segundo não pode nascer. De acordo com Iná, a saída para o impasse político-estético aparece em 1960 com Revolução na América do

Sul, de Augusto Boal, quando o autor abandona a casa, a sala, os ambientes da

intimidade para fazer o seu José da Silva passear, em clima de comédia, por uma série de espaços públicos, inclusive o da feira – onde a personagem descobre que, com ou sem emprego, será sempre o culpado pelos preços que não param de subir. O épico, a essa altura, tende a dominar a cena, e falar em épico não significa falar apenas em Brecht, cuja Alma boa de Setsuan chegara ao Brasil em 1958, mas também nos processos tomados à farsa, à revista e ao circo.

O próximo passo é dado por Vianinha e Chico de Assis, autor e diretor de A mais-

de Arquitetura, no Rio, em 1960, alcançando a média de 400 espectadores por sessão. A cena da feira e congêneres, em Revolução na América do Sul, inspiram o espetáculo em que se quer destrinchar, para uma platéia ampla, a famosa fórmula marxista. Vianinha irá subestimar um pouco a sua Mais-valia, imaginando, em nota redigida depois da estréia, ter simplificado demais as coisas. Iná Camargo Costa discorda de Vianna e mostra como, nesse instante, teatro e lutas populares parecem coincidir, ou quase.

O teatro de agitação e propaganda, que o Centro Popular de Cultura praticará de 1961 a 1964, encontra seu limite material no fato de que, ao contrário do que teria ocorrido noutros países – União Soviética, França, Estados Unidos –, as tarefas de agitação revolucionária, aqui, permaneceram nas mãos dos universitários, os militantes de classe média; não puderam ou não tiveram tempo de chegar aos trabalhadores, incorporando-os. Na verdade, às vésperas do Golpe, grupos de lavradores nordestinos, pais dos atuais sem-terra, já ultrapassavam o estudante politizado e o próprio PCB na disposição para pegar em armas. A unidade das esquerdas e seus laços com o povo revelavam-se bastante inconsistentes.

A atitude conciliatória que Vianinha irá defender, em 1968, no artigo “Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém” – na contramão do que sustentara até Os

Azeredo mais os Benevides, texto qualificado por Iná como obra-prima – passa a dar o

tom. Opinião, com novas referências musicais, o Nordeste e o morro, e Arena conta

Zumbi, crônica de Palmares, “foram festejadas como a senha para uma resistência

política que não tinha acontecido nem estava acontecendo”. O Grupo Oficina e seu diretor Zé Celso, em O rei da vela, e o mesmo Zé Celso em trabalho fora do Oficina, em Roda viva, com sua agressividade programática, apenas tripudiam sobre o cadáver da esquerda que, quatro anos antes, perdera o bonde e, agora, perde a esperança e a compostura. A boa hora do teatro épico havia passado ou, dito de outra forma, o teatro que se pretendera épico já não possuía qualquer lastro popular.

Devem-se discutir algumas das opiniões expressas no livro. Por exemplo, é um pouco anacrônico supor que Décio de Almeida Prado e outros críticos e artistas pudessem aceitar ou mesmo compreender plenamente as propostas brechtianas, quando estas mal aportavam em praias brasileiras; de todo modo, não se deixou de escrever sobre o dramaturgo. O próprio Almeida Prado, citado por Iná Camargo Costa, admitiu na ocasião em que aquelas propostas chegavam ao Brasil: “Cada crítico é mais ou menos circunscrito por seus hábitos e crenças”. A idéia de que os artífices de Opinião e

de outras peças pudessem, já em 1964 ou 1965, perceber que os golpistas haviam de se demorar no poder constitui outro ponto passível de discussão.

Aqueles “hábitos e crenças” também teriam guiado os dramaturgos, entre eles Guarnieri. O autor de Black-tie, na entrevista que nos concedeu quando a peça fazia 40 anos (entrevista já mencionada), diverge das teses de Iná. As idéias da autora, assim como outras que eventualmente as contradigam, estão entre as que serão discutidas no terceiro capítulo deste trabalho.