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4. Capítulo III: A dramaturgia musical

4.2. Os textos-colagem

4.2.2. Opinião por analogia

Os textos-colagem,22 ao somarem fragmentos de origem diversa, exigem providências capazes de ligá-los entre si, dando-lhes alguma coesão. No caso de

Liberdade, liberdade, o que relaciona frases, textos e canções de procedência variada é

o próprio tema, a que se refere tudo o que se diz na peça.

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Francisco Posada estuda as diversas acepções da expressão no livro Lukács, Brecht e a situação

atual do realismo socialista, publicado em 1969 na Argentina e, em 1970, no Brasil. Posada afirma:

“Lukács identifica o realismo socialista em geral com uma modalidade do realismo socialista, especialmente a de Gorki, a quem chama ‘o maior escritor do presente’; modalidade que para ele é a continuação do grande realismo da burguesia” (1970: 118). Já a ortodoxia soviética sustentava outro conceito de realismo socialista, ligado a “uma visão otimista da existência” e a objetivos de propaganda. Nessa linha, V.M. Zimenko, citado por Posada, assevera: “A alta vocação dos escritores soviéticos consiste em revelar, de maneira veraz e brilhante, a beleza das façanhas que realiza o povo no trabalho, a magnitude e grandeza da luta pelo comunismo; em conduzir-se como apaixonados propagandistas do plano setenal, em infundir otimismo e energia no coração das pessoas soviéticas” (em: Posada, 1970: 139). As diferenças entre as proposições de Lukács e as dos comunistas ortodoxos (apesar das críticas que se podem fazer ao filósofo) saltam aos olhos.

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Outros exemplos de espetáculos desse tipo, musicais ou não: Brasil pede passagem, escrito e produzido pelo Opinião, com estréia em 1965, e O homem do princípio ao fim, de Millôr Fernandes, com

Em Opinião, as coisas se passam de outra forma. Em primeiro lugar, deve-se notar com Maria Helena Kühner e Helena Rocha, autoras de Para ter opinião, que a fragmentação é, em si mesma, expressiva de um momento em que as certezas políticas mostram-se precárias (Kühner e Rocha, 2001). Motivo pelo qual o espetáculo empenha- se em recompor crenças e ânimos, buscando as convicções alternativas que deveriam mobilizar as esquerdas nos novos tempos.

Se a fragmentação deve ser vista como categoria estética, de todo modo os dramaturgos teriam de conferir sentido geral a tantos textos e músicas. Esse sentido ordenador, global, não falta a Opinião, embora a peça por vezes ameace desagregar-se, carente de liames que a integrem. A congênere Liberdade, liberdade alcança maior unidade e, com isso, deve subsistir a seu instante, o que pode não ocorrer com o show de 1964, conforme ressalta Maria Sílvia Betti: “É significativo que uma tentativa de remontagem de Opinião, decorridos dez anos de sua estréia, tenha tido resultado pouquíssimo compensador. Acima de tudo, o êxito de Opinião é produto de uma série de circunstâncias das quais o espetáculo em si não pode ser abstraído sem prejuízo de sua própria pertinência” (1997: 155).

Que processos, então, garantem ao show a mínima unidade necessária? O primeiro e mais amplo dos procedimentos utilizados no roteiro e no espetáculo (lembre- se a gravação em que o show foi parcialmente registrado) é o da associação de idéias. O elo entre cenas, músicas e textos consiste na simples e direta (às vezes indireta e mesmo arbitrária) associação de temas, frases, melodias, atmosferas.

Esse processo realiza-se por dois caminhos básicos: as analogias se podem dar por afinidade ou por contraste. Passa-se de um sentimento a outro até no interior da mesma cena ou fala, como apontaremos adiante. Assim, o espetáculo alterna por todo o tempo climas que tendem a pólos opostos: alegres e tristes, bem-humorados e reflexivos, eufóricos e melancólicos.

Opinião procede, a partir das analogias que o fazem avançar, por uma espécie de efeito de distanciamento generalizado; as situações propostas jamais se conservam

inalteradas por muito tempo. Talvez se possam ver, na base desse processo, dois estados de espírito essenciais para o trabalho: a desolação quanto às condições brasileiras – pobreza, analfabetismo, “muito sacrifício pra viver”, como diz João do Vale –, das quais o Golpe é a cifra histórica recente, reveza-se com a esperança de que as coisas mudem, sentimento que em certas passagens chega à euforia das certezas inapeláveis (entre desolação e esperança, note-se ainda a indignação que surge em temas como Sina de

caboclo). Esse otimismo, cuja ingenuidade é temperada por humor, projeta-se em

platéias predispostas a perceber, na cena, as suas próprias convicções, ou a recompô-las sob estímulo do espetáculo.

Se esse é o ritmo a que obedece (e nele já se acham embutidas as posturas ideológicas que animam o show), reitere-se que Opinião aposta, no plano do conteúdo propriamente dito, na possibilidade de se aliarem as classes média e baixa no sentido de modificarem a ordem, conforme diretriz sustentada pelo Partido Comunista Brasileiro desde fins dos anos 50. Por essa diretriz, pretendia-se que, entre os prováveis parceiros políticos, estivesse também a burguesia nacional, vista como virtual adversária do imperialismo (sobretudo) norte-americano. Este seria o inimigo comum contra o qual classes sociais diversas deveriam somar as suas forças, segundo a perspectiva do PCB.

Abordamos o assunto ao comentar a peça Brasil – versão brasileira, de Vianna Filho, encenada pelo CPC em 1962; pudemos notar que o texto não se limita a simplesmente reproduzir a orientação do Partido, ao qual o autor era filiado, mas a questiona. Vianna sugere ser difícil ou impossível que as elites (no caso, o empresariado industrial) participem das frentes de esquerda. De todo modo, a tese do PCB, nesse aspecto, seria desautorizada pelo Golpe.

De volta ao show de 1964, o leque político de oposição devia abrigar as camadas pobre e média numa ampla faixa, ao longo da qual se vinculavam o retirante, o favelado, populações remediadas e porções da alta classe média (todos referidos mais ou menos explicitamente em canções e textos). Tais camadas eram vistas como representativas da nacionalidade e, dentro dela, das correntes que reclamavam mudanças sociais: reforma agrária e democratização do acesso à educação, entre outras. Os estratos em causa forneceram aos autores as figuras típicas, segundo a acepção de Lukács: a escolha recaiu sobre artistas populares, profissionais da música.

Os setores que estariam dispostos a promover mudanças no país ali compareciam, portanto, na forma dos atores-personagens: o proletário urbano, o camponês e o jovem de classe média (ou a jovem: o gênero importa neste caso). As canções os ligam também no plano simbólico, isto é, trata-se das “tradições da cultura brasileira”, tornadas exemplares na antologia de ritmos feita no espetáculo.

As histórias de vida, a coletânea de estilos populares – partido alto, incelença, xote, baião, bossa – e a esperança levada aos limites da euforia pretendiam dar, juntas, o retrato do Brasil dos anos 60. Ao mesmo tempo, apontavam a possibilidade de

transformá-lo justamente na direção que o Golpe cancelara. Vale verificar como se fizeram tais operações no plano dos elementos mobilizados.