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2. Capítulo I: Do Golpe à Abertura: elementos de historiografia

2.2. Teatro musical de 1964 a

2.2.1. Quatro famílias estéticas

Os textos teatrais que se fizeram no período de 1964 a 1979 devem ser estudados prestando-se atenção especial às datas e eventos a que eles reagem e que em parte os condicionam. De fato, essas obras não foram compostas visando platéias remotas ou póstumas; ao contrário, buscaram integrar-se no instante histórico, dele participar e, no horizonte da utopia, contribuir para mudá-lo.

Naturalmente, se a vigência dessas peças se limitasse àqueles momentos, seu interesse estaria diminuído, não para a pesquisa histórica, mas para o juízo estético que delas pudéssemos formar, décadas após seu nascimento. Verifica-se que aspectos vitais dessas obras permanecem fecundos, artisticamente falando – a tarefa é a de situá-los e descrevê-los.

Assim, no presente capítulo, de natureza mais historiográfica do que crítica, dispomos as peças em ordem linear, conforme as datas de estréia. O segundo capítulo estará dedicado a questões teóricas. Já na terceira e última seção, procederemos à análise crítica das obras; os textos – combinados, tanto quanto possível, à música que lhes corresponde e à notícia das montagens – serão organizados segundo quatro categorias, nas quais podemos reparti-los com vistas a entendê-los melhor. Essas famílias estéticas, diga-se, não se pretendem estanques, mas permeáveis umas às outras.

As peças em pauta no período que nos importa são, em ordem cronológica:

Opinião; Liberdade, liberdade; Arena conta Zumbi; Morte e vida severina; Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come; Arena conta Tiradentes; O rei da vela; Roda viva e Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, apresentadas entre 1964 e 1968; Calabar, que

estrearia em 1973, mas que só pôde ir à cena em 1980; e, a partir de 1975, Gota d´água,

As folias do látex, Ópera do malandro, O rei de Ramos e Vargas (esta, em 1983, uma

reedição modificada de Dr. Getúlio). Ao todo, 15 peças, se contabilizarmos Vargas (evidentemente, outros textos ou montagens poderão ser mencionados).6

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Outras obras poderiam constar da lista de musicais no período, evidentemente. Talvez fosse esse o caso de Rasga coração, de Vianinha, peça terminada em 1974, ano da morte do autor, e que chegou à cena em 1979, participando com destaque do clima de abertura que então alcançava os palcos. Não a incluímos neste panorama porque se trata, a nosso ver, de um drama com música, mais do que exatamente de um musical; o próprio autor chamou Rasga coração de “drama brasileiro em duas partes”. Acrescente-

Essas peças ganham breve comentário no resumo historiográfico que consta das próximas páginas. Para a categorização proposta, porém, vamos utilizar não todas, mas 13 das 15 obras relacionadas acima (O rei da vela e Roda viva não serão levadas em conta para esse fim: o texto de Oswald de Andrade originalmente não prevê música, embora a direção de José Celso tenha transformado a peça num musical; já o texto de Chico Buarque revela-se frágil,7 apesar das boas canções). Adiantamos, a seguir, as quatro famílias nas quais iremos distribuí-las no terceiro capítulo – quando selecionaremos textos representativos de cada uma das categorias para análise detalhada.

A primeira das famílias estéticas é a do texto-colagem, correspondente a espetáculo próximo do show ou do recital. Nesse caso, encontram-se Opinião, de Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes, e Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.

Outra família consiste no texto épico de matriz brechtiana, categoria em que se enquadram Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, ambos de Boal e Guarnieri, além de Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra.

Uma terceira categoria contempla o texto inspirado diretamente em fontes

populares. A essa família, pertencem Morte e vida severina, de João Cabral de Melo

Neto, poema dramático ligado aos autos pastoris pernambucanos; Se correr o bicho

pega, se ficar o bicho come, farsa de ambientação nordestina, escrita por Vianinha e

Ferreira Gullar; Dr. Getúlio, sua vida e sua glória e sua reedição, Vargas, de Dias Gomes e Gullar, que aproveitaram a forma do enredo carnavalesco em textos que mesclam elementos dramáticos e épicos; e As folias do látex, de Márcio Souza, que revisita a fórmula da revista, politizando-a à maneira de Piscator.

Por fim, no quarto grupo de obras, temos o drama e a comédia musicais. É o caso do drama Gota d´água, de Chico Buarque e Paulo Pontes (baseado na tragédia grega

Medéia e na adaptação televisiva feita por Vianinha da peça de Eurípides); e das

comédias Ópera do malandro, de Chico Buarque, e O rei de Ramos, de Dias Gomes. Essas três peças baseiam-se nas convenções da comédia musical e, eventualmente, nas da revista. Essa família estética é a do texto inspirado na forma da comédia musical.

musicais em causa teve canções ou trilha instrumental compostas especialmente para eles, ou se valeram de música recentemente criada, o que não é o caso de Rasga Coração (onde velhas canções integram o complexo jogo de planos temporais armado por Vianna Filho).

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Como o admite o próprio compositor e dramaturgo, ao qualificar Roda viva como “primária” na entrevista sobre seu teatro registrada no DVD Bastidores (Buarque, 2005).

Note-se que o texto em verso, freqüentemente praticado nessa fase, atravessa as quatro categorias, aparecendo em Morte e vida severina, Se correr o bicho pega e Gota

d´água, peças integralmente escritas em versos medidos e rimados (no caso da primeira,

rimas em geral toantes), e noutras obras, em que se combinam prosa e verso, entre as quais estão Zumbi e Dr. Getúlio.

Contamos, a seguir, um pouco da história dessas peças e espetáculos.