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3. Capítulo II As idéias estéticas

3.3. Estruturas épicas: Peter Szondi e interlocutores brasileiros

3.3.2. O teatro épico segundo Rosenfeld

Anatol Rosenfeld publicou O teatro épico em 1965, numa fase em que, no Brasil, se buscava entender e pôr em prática esse conceito, muito ligado às peças e teses de Brecht, mas relacionado também, de modo mais amplo, às comédias e aos shows musicais. Naquele ano estrearam Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, no Rio de Janeiro, e Arena conta Zumbi, de Boal e Guarnieri, em São Paulo, para ficarmos em dois exemplos. A primeira peça consiste em texto-colagem semelhante ao de Opinião; a segunda, em drama histórico dotado de humor e música, sem compromisso estritamente realista. Ambas trabalham com técnicas épicas.

Dedicado à divulgação cultural de alto nível, Rosenfeld procura ordenar idéias teatrais em circulação naquele momento. Assim, na seção inicial de seu livro, retorna à matriz clássica da teoria dos gêneros para esclarecer didaticamente:

Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir seu próprio estado de alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou não – de extensão maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações e eventos. Pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem os próprios personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador (Rosenfeld, 1997: 17).

Esses dados compõem o que o ensaísta chama de “significado substantivo dos gêneros”. Já o seu “significado adjetivo” corresponderá a “traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero”. Admite-se que “toda obra literária de certo gênero conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em questão, também traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros”; ou seja, não existem modalidades ou espécimes puros, a não ser em teoria. O trânsito dos aspectos de estilo entre textos de filiação diversa marca especialmente a literatura no século XX e envolve a dramaturgia, tornada épica por força dos conteúdos que se dispõe a expressar.

O ensaísta rastreia estruturas ou elementos épicos no teatro que se fez desde os gregos, pondo em relevo lições que serviram a Brecht, mencionadas por este dramaturgo em seus escritos teóricos. Embora mantenha em seu horizonte a crise do drama conforme abordada por Peter Szondi na Teoria do drama moderno, Rosenfeld comenta procedimentos artísticos a que Szondi apenas alude em seu livro, dando-os tacitamente por conhecidos. Assim, as cenas grega, medieval, renascentista, barroca, shakespeareana e romântica, além do teatro asiático, são sumarizadas em O teatro

épico, no que constitui breve genealogia dos processos narrativos no palco.

O autor lembra ser “muito curioso que Aristóteles tenha baseado a sua Arte

poética – ponto de partida de toda Dramática rigorosa – no exame de uma dramaturgia

que de modo algum é modelo de pureza absoluta, no sentido da forma severa, fechada” (1997: 40). A presença do coro, que comenta a ação, e os relatos confiados a mensageiros, entre outros recursos épicos, somam-se nas tragédias gregas ao evento plenamente atual e ao enredo monitorado pelo diálogo, exigências fundamentais do drama absoluto. “Ainda assim, o teatro grego é com muitos dos seus exemplos – como

Antígone ou Édipo Rex – um dos tipos mais elevados de uma dramaturgia que pelo

ensaísta, ressaltando “que este rigor não representa, necessariamente, um valor estético” (1997: 40-1).

Estrutura propriamente épica encontra-se na Idade Média com o palco sucessivo, isto é, formado por carros dispostos em seqüência, nos quais se viam cenários a representarem lugares distintos. “Mas a grande invenção do teatro medieval foi a cena simultânea, usada a partir do século XII” por cerca de 500 anos, informa o ensaísta. O essencial a notar nesses espetáculos que exibiam dezenas de passagens bíblicas, justapondo-as, é que o presente pleno do drama trocava-se por uma espécie de passado pleno, considerado que os episódios eram previamente conhecidos de seu público; o que de modo algum anulava a impressão, de fins pedagógicos, que tais espetáculos pretendiam exercer (1997: 47).

No Renascimento, o ideal de máxima ilusão cênica resulta na criação do palco italiano, frontal, em que os corpos e objetos distinguem-se de modo preciso, de acordo com os efeitos de perspectiva então descobertos. Esses efeitos delineiam de modo mais nítido as personagens, agora retratos de indivíduos e não de divindades. Recursos e formas épicas, porém, continuariam em voga: “Na época que vai dos fins da Idade Média ao Barroco multiplicam-se as formas dramáticas e teatrais caracterizadas por forte influxo épico em conseqüência do uso amplo de prólogos, epílogos e alocuções (...), com fito didático, de interpretação e comentário, à semelhança de técnicas usadas no nosso século por Claudel, Wilder e Brecht”, diz Rosenfeld (1997: 55).

As moralidades, os autos de Gil Vicente e o teatro jesuíta são tratados a seguir. Mais relevante do ponto de vista moderno é a recepção dada a Shakespeare por iluministas como Lessing ou pré-românticos como Herder e Goethe, na Alemanha, ou Victor Hugo, décadas mais tarde, na França. A fusão do trágico e do cômico e a ampla liberdade quanto às unidades de lugar e tempo são estímulos que os renovadores, entre eles Büchner, encontram nas peças shakespeareanas.

A partir da segunda metade do século XIX, quando atuam dramaturgos como Ibsen e Strindberg, os comentários de Rosenfeld seguem roteiro similar ao de Szondi, embora sempre acrescentem algo de seu ao que ficou dito na Teoria do drama moderno. O ensaísta brasileiro aborda ainda o palco asiático – o drama Nô e o teatro Kabuki, gêneros tradicionais japoneses. Referindo-se ao Kabuki, anota:

Sem dúvida, são os próprios atores que pronunciam o diálogo, mas o coro-narrador ainda exerce variadas funções. Manifesta-se como voz da consciência e comentador, mais ou menos como o coro grego; toma a si o solilóquio dos personagens, informa o público

sobre questões do entrecho e ambiente e serve de acompanhamento rítmico-musical que liberta os atores intermitentemente para a dança (...). Constitui, enfim, uma espécie de moldura narrativa dentro da qual se desenvolve a ação dramática propriamente dita, à semelhança dos cantores de O círculo de giz caucasiano (Brecht) (1997: 111-2).

Anatol Rosenfeld assume premissa idêntica à de Peter Szondi no que toca à emergência do épico em fins do século XIX e na primeira metade do século XX. Mas reordena dados críticos e históricos de maneira a dar a ver, em primeiro lugar, a longa vigência das formas e processos narrativos em séculos de história teatral e, depois, de modo a fazer com que essas linhas estéticas alcancem Brecht, que as reviu, politizando- as. Rosenfeld enfatiza ainda a importância do católico Paul Claudel, antípoda ideológico de Brecht a quem destina algumas páginas.

O trabalho que se propôs Anatol Rosenfeld em O teatro épico, no que toca a Bertolt Brecht, liga-se antes à tarefa de esclarecer e divulgar propósitos e práticas estético-políticas do que à pretensão de fornecer, dessas peças e teses, interpretação inteiramente nova. Seja como for, podem-se destacar ainda alguns instantes especialmente lúcidos no percurso.

Um deles aparece na seção dedicada a Claudel, quando Rosenfeld compara o dramaturgo francês a Brecht. O ensaísta recordara que “o radicalismo e a dureza com que Claudel concebe (p. ex. em O livro de Cristóvão Colombo) a matança de dezenas de milhares de índios ou a escravização de tantos africanos (...) provocaram do próprio lado católico inúmeras acusações de heresia, soberba e amoralidade”.

A seguir, notará que esse modo de ver as coisas, “proveniente de um teocentrismo radical”, segundo o qual os indivíduos podem se sacrificar ou ser sacrificados em razão de valores supostamente superiores, no caso de origem religiosa, “resulta em conseqüências comparáveis àquelas a que, pelo menos em certa fase, B. Brecht se viu levado pelo sociocentrismo”. Na peça didática A decisão, de 1930, Brecht parece legitimar o assassinato de um dos militantes comunistas que perfazem o grupo de personagens em nome da eficácia de suas tarefas políticas, perturbada pelo que se viu atingido na decisão do título. Essa tese, diz Rosenfeld, “foi combatida com a mesma violência pelos comunistas como a de Claudel por inúmeros cristãos”. Ele acrescenta:

Não importa neste ponto verificar que Brecht se “converteu” a uma atitude de profunda afabilidade e bondade humanas e que o zelo claudeliano é resultado do amor de Deus. O importante é verificar que concepções que com tamanha ênfase teo ou sociocêntrica

tendem a colocar o centro fora do indivíduo, integrando-o como elemento no todo maior, quase necessariamente conduzem a uma idéia épica do teatro (1997: 137).

A passagem do dramático ao épico ou a mistura de elementos provenientes de ambos os estilos não constitui mera questão de técnica literária. Os processos pelos quais formas dramáticas e épicas se reúnem, compondo terceiras estruturas, incluem e transcendem o aparecimento das novas temáticas, envolvendo, além delas, “uma deslocação decisiva na hierarquia dos valores”. Ao contrário do que se deu no teatro clássico de Racine e Goethe, “ao protagonista não cabe mais a posição majestosa no centro do universo”.

Assim, “a concepção teocêntrica ou sociocêntrica transborda do rigor da forma clássica, na medida em que ultrapassa a limitação da esfera psicológica e moral, enquanto apenas psicológica e apenas situada no campo da moralidade individual” (1997: 174). No teatro épico, de acordo com Rosenfeld, a ênfase já não recai sobre figuras capazes de decidir quanto ao próprio destino ou de compreendê-lo plenamente, mas nos fatores – metafísicos, sociais ou, no interior das personagens, irracionais – que circunscrevem a sua liberdade.