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CAPÍTULO 1: A Psicologia nos Escritos Alemães de Wolff

1.4 Considerações Preliminares sobre as Hipóteses

Neste capítulo, nos propusemos a analisar os principais escritos psicológicos alemães de Wolff, com vistas à identificação de suas particularidades, assim como à sua comparação com os escritos psicológicos latinos, a partir do que pretendemos avaliar a correção de nossas hipóteses, e responder as questões formuladas na introdução deste estudo. Antes de prosseguir na direção destes propósitos, no entanto, desejamos apresentar algumas considerações sobre a análise realizada neste capítulo, tendo as hipóteses como referência.

Desta forma, nos perguntamos aqui se: os escritos psicológicos alemães de Wolff constituem uma unidade; o sistema psicológico alemão de Wolff constitui uma unidade; monismo e dualismo constituem uma unidade na psicologia alemã de Wolff.

Os escritos psicológicos alemães de Wolff constituem uma unidade?

Em outras palavras, perguntamos aqui se podemos considerar estes escritos como partes de um todo, atribuindo-lhes uma continuidade; ou se, pelo contrário, encontra-se neles algum ponto de ruptura. De acordo com nossos achados, apesar de algumas modificações introduzidas por Wolff em alguns tópicos da psicologia nas AzDM e na AU, em comparação com a DM, elas não caracterizam rupturas em seu pensamento psicológico. Mais especificamente, cremos que a principal diferença entre a DM e os demais escritos é a atitude de Wolff em relação à harmonia pré-estabelecida. Sabemos que para Wolff não faltaram motivos para isso. Contudo, devemos ser cautelosos para não vermos nessa diferença mais do que de fato nela se encontra.

Primeiramente, é verdade que, na DM, as demonstrações da psicologia racional relativas à fundamentação das faculdades da alma em sua força representativa parecem depender diretamente da compreensão da relação entre corpo e alma. Wolff menciona, por exemplo, logo após a definição da essência e natureza da alma, que “como agora, contudo, provamos que a alma tem uma força de representar para si aquilo que provoca mudanças em seu corpo, então devemos investigar de onde vem que alma e corpo concordem” (Wolff, 1751/2003, p. 470, §.760). Em consonância com essa postura, no segundo prefácio à DM (de 1721) ele sugere que se tem a impressão de que “tudo o que se deduz no quinto capítulo sobre os atributos e atos da alma a partir de sua natureza não seria outra coisa senão uma explicação da harmonia pré-estabelecida entre alma e

corpo” (Wolff, 1751/2003, p. viii). A partir das AzDM, contudo, Wolff se esforça para deixar absolutamente explícita a independência destas deduções não só em relação à tese da harmonia, mas a todas as explicações da relação entre corpo e alma. O mesmo se mantém na AU.

Além disso, Wolff restringe ainda mais o escopo da harmonia a partir das AzDM, ao demonstrar como todas as teorias da relação entre corpo e alma, na condição de hipóteses, são igualmente irrelevantes para a experiência e todas as disciplinas que dela dependem, assim como apresentam limitações insuperáveis, de forma que um cientista pode escolher aquela que melhor lhe aprouver. Na AU, por exemplo, Wolff diz sobre a eleição da harmonia:

como, agora, preferi este Systema na explicação da comunidade entre corpo e alma sobre os demais, então também expliquei a partir dele aquelas perguntas que dependem da comunidade entre corpo e alma, não obstante elas facilmente se possam explicar de tal forma que com qualquer um dos Systemate se pode manter a explicação. (Wolff, 1733/1973, p. 280, §.100 – ênfase no original)

Em que pesem estas mudanças, não vemos aqui razão suficiente para compreender uma ruptura das AzDM e da AU com a DM. Primeiramente, de um ponto de vista puramente lógico, as demonstrações da psicologia racional na DM de fato podem se sustentar sem a explicação da relação entre corpo e alma, assim como se encontra uma equidade entre as teorias. Além disso, não só diferenças, mas também semelhanças se encontram entre as obras. Em todas, por exemplo, a harmonia é eleita como a teoria mais razoável entre todas, mas é, não obstante, absolutamente afastada da psicologia empírica, e das disciplinas que dela dependem.

De um ponto de vista estrutural, por fim, devemos reconhecer ainda que as AzDM constituem um complemento da DM, no qual são refinadas as suas teses, em função de um contexto de discussões específicas. O próprio Wolff diz que, “quando se quer afirmar que eu teria mudado de opinião, então se deve mostrar que eu disse nas Notas algo que é contrário às explicações dadas e princípios provados na Metafísica, como nunca se poderá minimamente mostrar” (Wolff, 1733/1973, p. 318, §.115). A AU, por sua vez, não é senão uma introdução geral às duas primeiras, de maneira que todas compõe um mesmo sistema de conteúdos e referências. Desta forma, apesar das

modificações identificadas, observamos aqui uma continuidade, e uma consequente unidade entre os escritos psicológicos alemães de Wolff.

O sistema psicológico alemão de Wolff constitui uma unidade?

Na medida em que aceitamos a continuidade entre os escritos psicológicos alemães de Wolff, nos perguntamos agora a respeito da separação entre psicologia empírica e psicologia racional. Em outras palavras, elas constituem duas disciplinas distintas e independentes, com objeto, método, e delimitações especiais? Ou podem ser consideradas duas partes de uma mesma disciplina? Esta segunda possibilidade nos parece a mais razoável.

Como vimos na análise da AU, Wolff realmente apresenta razões para dividir a psicologia em duas partes: uma pedagógica e outra pragmática. No entanto, não entendemos que isto conduza ao estabelecimento de duas ciências distintas. Em primeiro lugar, Wolff não apresenta estas razões para justificar uma distinção interna à psicologia, mas sim a sua divisão (Einteilung) em duas partes. As finalidades que tem em mente com essa divisão nos parecem insuficientes para a postulação de disciplinas distintas. De fato, o próprio Wolff parece nos mostrar isso ao afirmar, por exemplo, na primeira nota à psicologia empírica nas AzDM, que

A utilidade daquilo que é ensinado nesse capítulo mostra-se principalmente na Moral. Quando nós lá nos referimos à natureza da alma, e a partir disto queremos exibir o fundamento do exercício da virtude e evitação dos vícios, ou ainda as obrigações da alma para consigo mesma, isto está geralmente nos conceitos e ensinamentos incluídos no presente capítulo, ou ainda nos que no quinto capítulo são derivados destes princípios, e se teria também aqui podido tomar, se nós não tivéssemos preferido impedir isto até aqui por outras causas. O que no presente capítulo é ensinado sobre a alma, nós derivamos somente da experiência, e o que a partir dos princípios até aqui confirmados é levado ainda mais adiante através de inferências racionais no quinto capítulo, nós não consideramos diferente daquelas doutrinas que estão fundamentadas na experiência. (Wolff, 1740/1983a, p. 123, Ad §. 191)

Em outras palavras, Wolff nos parece expressar aqui uma clara continuidade epistêmica entre as duas partes da psicologia, primeiramente por declarar a possibilidade de

derivação de alguns conteúdos da psicologia racional já na empírica, o que reconhece evitar senão por “outras causas” (as quais, até onde podemos saber, consistem nas razões pedagógica e pragmática por ele apresentadas para a separação da psicologia na AU); mas também, por declarar não enxergar diferenças entre os conteúdos derivados da experiência e aqueles alcançados por inferências racionais na psicologia racional, inclusive no que diz respeito às contribuições da psicologia para a moral.

Em segundo lugar, vemos que ambas lidam com o mesmo objeto (a alma), a partir dos mesmos princípios (de não contradição e de razão suficiente), com os mesmos métodos (observação e dedução), e visando aos mesmos propósitos gerais (fomentar o avanço da verdade e a fundamentação da virtude). Sua diferença, por fim, encontra-se somente na restrição de uma à experiência, e o avanço da outra em novas noções, tanto para a elucidação da primeira quanto para a extensão do sistema em geral, o que, não obstante, nos parece absolutamente afinado ao fluxo geral do sistema de Wolff, no qual se vai do mais simples para o mais complexo.

O sistema de psicologia alemã de Wolff, portanto, nos parece constituir uma unidade. Contudo, reconhecemos que esta questão ainda vai além. Muitos estudiosos encontraram diversos critérios a partir dos quais pretendem defender a psicologia empírica e racional de Wolff como duas ciências absolutamente distintas. A discussão deste ponto, no entanto, não se restringe aos escritos alemães, e deve realizada no terceiro capítulo, após a comparação destes com os escritos latinos de Wolff. Avançar agora seria repetir o erro daqueles estudiosos, que ignoraram a relevância desta comparação.

Monismo e dualismo constituem uma unidade na psicologia alemã de Wolff?

A resposta integral da presente questão pressupõe uma discussão que se realizará apenas no capítulo 3. Contudo, desejamos apresentar aqui, a partir dos nossos achados relativos aos escritos psicológicos alemães de Wolff, alguns pontos relevantes para a formulação desta resposta. Em especial, pretendemos demonstrar que Wolff assume simultaneamente as perspectivas monista e dualista em sua psicologia alemã.

Em todos os escritos analisados, observamos que Wolff adota a teoria das coisas simples como fundamento ontológico tanto de sua psicologia quanto de sua cosmologia. Isto é, para ele, a alma (humana ou animal, assim como todos os espíritos em geral)

constitui uma coisa simples, e os corpos, que são coisas compostas, são formados a partir de outras coisas simples, os elementos. Desta maneira, tudo o que existe consiste, em última instância, em coisas simples, e se estabelece um monismo ontológico no sistema wolffiano.

Em sua DM, de fato, Wolff chega a afirmar a possibilidade de que as almas e os elementos pertençam à mesma espécie, possuindo ambas uma força de representar o mundo:

Nós provaremos mais adiante (§.742) que a alma faz parte das coisas simples e tem a capacidade de representar-se o mundo de acordo com a posição de seu corpo no mesmo (§.753). Mostraremos também que são possíveis ainda muitas outras coisas simples que representam o mundo de um modo menos perfeito que a alma (§.900). E são, portanto, possíveis tais coisas como as unidades leibnizianas

da natureza. A elas compete tudo o que provamos a respeito dos elementos das

coisas, e caso se converta os elementos nestas unidades, permanecem semelhantes entre si todas as coisas simples, tal como as compostas, e constituem uma espécie de coisas (§.177). (Wolff, 1751/2003, pp. 369-370, §.599 – ênfase no original) A atribuição de uma força representativa aos elementos implicaria, como vemos nesta reflexão de Wolff, a sua adoção da teoria monadológica leibniziana e, por consequência, de uma perspectiva eminentemente monista em sua filosofia em geral, e em sua psicologia em especial.

Entretanto, como vimos anteriormente, em sua DM Wolff declara que deixará em suspenso em que consiste a força dos elementos (DM, §.598) e a natureza última da harmonia que se dá entre eles (DM, §.600), deixando em aberto, por conseguinte, a identidade entre elementos e mônadas. Nas AzDM observamos uma mudança de tom em Wolff, que intensifica sua suspeita em relação a essa identidade:

Contudo, eu ainda não vejo nenhuma necessidade de que todas as coisas simples devam ter o mesmo tipo de força, e suponho, ainda mais, que deveria ser encontrada nos elementos das coisas corpóreas uma força da qual se pudesse deduzir de forma compreensível a força dos corpos, junto com a qual aquela mostra mudanças nos movimentos. Na verdade, eu ainda não fiz nada suficiente aqui, e por isso permaneço silencioso sobre essa conjectura, pois não estou

acostumado a apresentar o que ainda não considerei suficientemente, nem estou em condições de provar corretamente. Contudo, achei necessário mencionar isso aqui porque, entre outras acusações, se tem alegado que eu fiz as mônadas

leibnizianas passarem pelos elementos da matéria. (Wolff, 1740/1983a, pp. 369-

370, Ad §.598.599 – ênfase no original.)

Encontramos aqui um primeiro nível de dúvida a respeito do monismo ontológico geral identificado inicialmente em Wolff. Apesar de compreendê-los sob o gênero das coisas simples, Wolff enfatiza agora a possibilidade de que almas e elementos pertençam a diferentes espécies, distintas pelos tipos de força que as definem. Se ainda não é dada aqui a possibilidade de um dualismo clássico entre coisa extensa e coisa pensante, é oferecida a possibilidade ao menos de um dualismo entre tipos de coisas simples.

Wolff, no entanto, tampouco avança com a exploração desta possibilidade. Até sua AU, sua posição é de suspensão do juízo a respeito da força dos elementos, e de todas as questões que dele dependem, sejam psicológicas, sejam cosmológicas (AU, §.86). Os traços definitivos de um dualismo em Wolff, não obstante, podem ser encontrados em sua psicologia.

A despeito de sua teoria das coisas simples, ao tratar do tema da relação entre alma e corpo na psicologia, Wolff não se volta a uma análise da relação entre as almas e os elementos dos quais os corpos são compostos (isto é, entre as coisas simples, como o faria um monista), mas dedica-se diretamente ao exame da relação entre almas e corpos, de uma perspectiva dualista. No segundo prólogo à DM (1721), tratando deste tema, Wolff refere-se diretamente a esta perspectiva, esclarecendo que conclui, em acordo com o que havia sugerido Leibniz, que “as opiniões de idealistas e materialistas se podem combinar entre si pelos dualistas” (Wolff, 1751/2003, p. xxii). Isto é, aceitando ao mesmo tempo a tese idealista segundo a qual tudo se daria na alma ainda que não houvesse corpo, e a tese materialista de que tudo se daria no corpo ainda que não houvesse alma, os dualistas podem explicar a relação entre corpo e alma pela teoria da harmonia pré-estabelecida. E é precisamente isto que Wolff realiza em sua psicologia, pelo que, portanto, devemos atribuir-lhe uma perspectiva dualista.

Se não queremos ir para além do que o próprio Wolff nos oferece, devemos, portanto, aceitar a presença simultânea em sua psicologia das perspectivas monista e

dualista. A real produção (ou não) de uma unidade entre elas será discutida no capítulo 3, onde vamos contrastar nossos achados com as opiniões presentes na literatura secundária. Por ora, podemos apenas dizer que Wolff parece buscar aqui uma posição autêntica. Como diz em suas AzDM, “esta é a verdadeira índole de um Philosophi

Eclectici, ou um cientista que não jura nenhuma bandeira, mas tudo examina, e mantém

o que conecta entre si na razão, ou se pode trazer em um Systema Harmonicum” (Wolff, 1740/1983a, p. 412, Ad §.647 – ênfase no original).