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CAPÍTULO 2: A Psicologia nos Escritos Latinos de Wolff

2.2 Psychologia Empirica

2.2.3 Sobre a Faculdade Apetitiva e a Relação entre Mente e Corpo

Wolff passa aqui à análise da faculdade apetitiva, que segue da cognitiva, segundo ele, sucessivamente. A compreensão desta sucessão depende da análise das noções de prazer e desprazer que nascem de um conhecimento (certo, provável ou errado), e das noções de bem e de mal que surgem daí, dando origem ao desejo e aversão sensuais e a todos os afetos – compondo a parte inferior da faculdade apetitiva

69 Em (PE, §.488), Wolff utiliza o termo introspicitur para referir-se à multiplicidade de verdades cujo

nexo é examinado, em lugar de perspicitur, presente passivo do verbo perspicio (is ,ere) que usa no mesmo parágrafo. Este é o único momento desta obra em que Wolff usa um termo próximo à introspecção.

(§.509)70. Como neste conhecimento se encontra o fundamento da filosofia moral, Wolff lhe dedica um grande espaço de sua PE. No entanto, vale recordar que, na medida em que grande parte desta análise repete aquela realizada na DM, daremos aqui maior atenção às novidades introduzidas por Wolff em sua PE.

Sobre prazer e desprazer e sobre as noções de bem e mal

Como na DM (DM, §§.404-415), Wolff apresenta as noções de prazer (voluptas) e desprazer (taedium, ou molestia, ou displicentia)71 a partir das noções de perfeição (perfectio) e imperfeição (imperfectio), na medida em que aquelas se definem como o conhecimento intuitivo (percepção confusa) destas, respectivamente. Em linhas gerais, prazer e desprazer são verdadeiros ou aparentes, constantes ou inconstantes, simples ou mistos, e maiores ou menores de acordo com a verdade, aparência e graus de perfeição e imperfeição da coisa, por um lado, e o conhecimento e quantidade de certeza no juízo a respeito desta coisa, por outro (PE, §§.510-538).

Neste ponto, Wolff expõe uma noção muito importante de sua PE. Reconhecendo o duplo fundamento dos graus do prazer e do desgosto (a magnitude da perfeição e da certeza do conhecimento desta), diz ele, pode-se afirmar por teoremas, em estilo matemático, que: 1. O prazer é composto em razão das perfeições das quais somos conscientes, e da certeza dos juízos sobre essas perfeições; 2. O desgosto é composto em razão das imperfeições das quais somos conscientes, e da certeza dos juízos sobre estas imperfeições; de onde segue que, 3. Se igual for a perfeição ou imperfeição, o prazer ou o desgosto será proporcional ao grau de certeza do juízo sobre a perfeição ou imperfeição; e 4. Se igual for a certeza dos juízos sobre a perfeição ou imperfeição das quais somos conscientes, o prazer ou o desgosto será proporcional à perfeição ou imperfeição das quais somos conscientes. Estes teoremas pertencem ao que Wolff chama de Psicometria (Psycheometria), a qual fornece o conhecimento matemático da mente humana e consta entre os desiderata do conhecimento humano em geral. Nela, diz Wolff, além dos teoremas, deve-se ensinar também como medir a

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Wolff nota que as noções de certeza, probabilidade, opinião e erro contribuem para o conhecimento profundo dessa faculdade, mas que estes foram tratados em sua LOG. Vemos que Wolff desloca aqui para a sua lógica um tema que na DM havia tratado na psicologia empírica.

71 Neste caso, Wolff reconhece não haver no latim um termo etimologicamente oposto a “prazer”, como

no alemão (Lust - Unlust). Por isso escolhe o termo latino taedium, que deve ser acompanhado da sua respectiva definição (PE, §.518).

magnitude da perfeição e imperfeição, assim como a magnitude da certeza do juízo, sem o que os teoremas não são de nenhuma utilidade. De toda forma, conclui Wolff, este reconhecimento torna explícito que as verdades matemáticas (aritméticas e geométricas) mesclam-se com as contingentes não menos na mente humana do que no mundo material, e que a alma, no que diz respeito à quantidade, também segue leis matemáticas – pelo que, portanto, é evidente a possibilidade de um conhecimento matemático da mente humana, isto é, de uma Psicometria (§.522)72.

Voltando ao curso normal de sua análise, Wolff diz que agrada ou desagrada (placere vel displicere) aquilo pelo que sentimos prazer ou desgosto, e que beleza ou feiura (pulchritudo vel deformitas) são a aptidão das coisas em produzir prazer ou desgosto em nós, respectivamente (§§.542-548). Pelas sensações, segue, também podemos nos referir à perfeição ou imperfeição de nosso estado, produzindo-se assim prazer ou desgosto sensual (§§.550-553). Àquilo que aperfeiçoa a nós e nosso estado, como sabemos, é chamado de bom (bonum), e seu o contrário, mau (malum), sendo ambos relativos à alma, ao corpo ou ao nosso estado externo – e podendo igualmente ser verdadeiros ou aparentes, despertando assim, por si ou por acidente, prazer ou desgosto verdadeiro ou aparente (contínuo ou mutável) em função do juízo certo ou errado que fazemos da perfeição ou imperfeição que nos propiciam (§§.554-578).

Sobre desejo sensitivo e aversão sensitiva

A partir destas noções, Wolff chega ao que nomeia propriamente de parte inferior da faculdade de desejar, ou seja, ao desejo sensitivo (appetitus sensitivus) e aversão sensitiva (aversatio sensitiva), que são a inclinação ou reclinação da alma em direção a um objeto em função do bem ou do mal nele confusamente percebido, ou do prazer ou desgosto que nos suscita – o que também é mutável ou constante, e possui muitos graus (em diferentes sujeitos ou nos mesmos em diferentes momentos) estimáveis em função das coisas e de como as representamos (§.599). Estas noções, diz Wolff, são particularmente importantes para a moral, na medida em que a maior parte

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Esta ideia constitui para a historiografia da psicologia uma das contribuições mais importantes e ao mesmo tempo mais controversas de Wolff. Ainda que realize aqui apenas uma menção geral a ela, a noção de psicometria de Wolff estabelece um marco fundamental para aquele que será considerado uma das peças-chave do desenvolvimento da psicologia científica: o debate sobre a possibilidade de matematização e medição dos fenômenos psicológicos. Para mais sobre o assunto, ver (e.g., Feuerhahn, 2003; Mei, 2011; Ramul, 1960; Sturm, 2006).

dos homens se mantém no nível das noções confusas de bem e mal, e deve-se aprender como a partir disso se podem manejar o desejo e a aversão sensuais (§§.579-602).

Sobre os afetos

Assim como na DM (DM, §§.439-488), Wolff dedica um expressivo espaço de sua psicologia empírica à análise dos afetos (affectus), definidos como atos veementes de desejo ou aversão sensitivos (PE, §.603). De fato, esta é a maior seção da obra, concentrando mais de 250 parágrafos (§§.603-879). Isto se dá porque, de acordo com Wolff, seu conhecimento é de especial importância para a ética, na medida em fornece a razão das diferentes vontades que o homem tem a partir de suas opiniões e desejos sobre um objeto (§.716)73. Wolff, assim, cuida de apresentar sobre cada afeto a sua definição (nominal e real), sua origem, seu modo de operação e relação com outros, além de discutir outras definições dadas a eles por outros autores, e a adequação das suas próprias definições ao senso comum e aos dados da experiência.

De um ponto de vista geral, Wolff nota que, como surgem da representação confusa do bem ou do mal, os afetos se podem dividir em agradáveis, desagradáveis ou mistos, de acordo com a predominância ali de prazer ou desgosto, e também possuem diversos graus (relativos aos graus destes últimos), cada um possuindo também uma contraparte física (expressa pelo movimento do sangue e dos fluidos nervosos, ou

espíritos animais) (§§.605-613). Como exemplo, o primeiro afeto tratado por Wolff é o

da alegria (gaudium). Ele o define como o predomínio de um prazer notável, ao lado do qual um desgosto existente não é apercebido, e cuja magnitude é proporcional à da representação confusa do bem (o que, segundo ele, concorda com a experiência, e difere de outras concepções, como a de Descartes) (§§.614-618). A sua definição real, diz Wolff, é a de um afeto que surge em nós a partir da opinião de que um bem presente que percebemos confusamente não é pequeno (§.624). E a ele, complementa, se referem ainda outros afetos, como a felicidade e o amor, e se opõe a tristeza, como graus

73 O conhecimento dos estados interiores da alma, ao qual pertence a teoria dos afetos, constitui para

Wolff um meio indispensável para o que na moral se compreende como a arte de conjecturar sobre os costumes do homem, na qual pela ação exterior do homem se chega ao seu estado interior, o que é necessário para sua regulação (PE, §.686).

diversamente predominantes de prazer e desgosto. Desta forma geral Wolff conduz o tratamento de todos os demais afetos74.

Sobre a parte superior da faculdade apetitiva

Acabada a análise dos afetos, Wolff passa então à análise da parte superior da faculdade apetitiva. Suas duas atividades básicas são o desejo e a aversão racional (appetitus rationalis et aversione rationalis), ou vontade (voluntatis) e nolontade (noluntatis). Como já sabemos, estes consistem nos desejos e aversões surgidos das representações distintas do bem e do mal, cujos atos chamam-se propriamente volição (volitio) e nolição (nolitio), e para os quais há sempre uma razão suficiente, os motivos (motivum), que são as representações distintas do bem e do mal, sem os quais ocorre apenas a omissão da vontade (omissio volitionis) (§§.880-893) – podendo ser incompletos ou completos, e as vontades a partir destes surgidas, antecedentes ou consequentes, respectivamente (§§.919-921). Os motivos, segue Wolff, na medida em que são relativos à nossa representação, na qual se misturam distinção e confusão, podem gerar desejos sensitivos e racionais resultantes que, ou estão em consenso (consensus), tendendo ao mesmo objeto e fazendo-se mais fortes, ou em conflito (pugna) (§§.908-918). No entanto, continua, sabe-se que quando se quer o mal ou não se quer o bem, tem-se o bem por mau ou mal por bom, ou se escolhe entre males um menor – ou ainda se quer algo bom no que é mal em outros aspectos, dando-se mais atenção ao primeiro (§§.894-897). Sabe-se também que sempre se elege o que se tem como melhor, e quando não há razão intrínseca para isso, se usa uma extrínseca (como a proximidade ou comodidade do acesso a ela), ou se escolhe a mais familiar (por imitação ou repetição) ou que chama mais a atenção (§§.898-901). Disto, conclui Wolff, se vê que o apetite tem regras e uma lei: desejamos qualquer coisa que temos como boa, e não queremos o que temos como mau para nós (§§.902-907).

Por fim, Wolff nota que a faculdade apetitiva pode determinar-se ainda por representações passadas, isto é, motivos passados confusos unidos à percepção presente, o que constitui o hábito de agir (habitus agendi) (§§.922-923). Por isso, quando se quer

74 A respeito dos afetos em geral, voltando ao tema da medida, Wolff observa aqui também que, na

medida em que a dimensão quantitativa dos afetos é muito diversa, sem a psicometria é impossível a demonstração absoluta em todos os seus números do tanto que envolvem as suas quantidades (§.616).

conhecer a gênese dos desejos, diz, deve-se atentar às suas primeiras ocorrências (§.924).

Sobre a liberdade

No que se refere à liberdade (libertas), Wolff chega à sua determinação explorando as características que a compõe. Primeiramente, diz, nada externo à alma pode forçá-la a ter algo como bom ou mau para si, pelo que não se pode forçar sua vontade – no máximo, se podem reforçar os motivos para querer ou não querer algo, e assim mudar a opinião de alguém em relação a isso (§§.926-928). Sabemos, em segundo lugar, que a alma quer por motivos, e por isso deve conhecer o que deseja, inclusive suas próprias ações, diferentemente das vísceras, que atuam independente do conhecimento (§§.929-930). Os motivos, não obstante, não são forças externas que forçam a alma, mas apenas razões suficientes; tampouco são necessários, porque podem mudar, assim como as ações da alma (§.931). Portanto, sabemos que a alma se determina por si, a partir de seus motivos, a querer e não querer (§.932).

Ao princípio intrínseco de se determinar a agir Wolff dá aqui o nome de espontaneidade (spontaneitas)75 (PE, §.933). A partir disso, diz que as volições e nolições são espontâneas e contingentes (§§.934-935), assim como os movimentos voluntários do corpo, cujo oposto pode ocorrer (§§.935-936) – não podendo aquelas ser determinadas nem sequer pela essência da alma, onde tudo é necessário e imutável (§.940). E como diz-se fazer “de bom grado” aquilo que apraz, e a alma quer de bom grado o que quer (§§.937-939), a liberdade da alma é definida aqui por Wolff como a faculdade da alma de eleger espontaneamente entre muitos possíveis aquele que a apraz – a qual requer, portanto, a contingência das volições e nolições; a inteligência do objeto do desejo ou aversão; espontaneidade e bom grado (lubentiam) (§.941)76.

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Em outras passagens Wolff utiliza o termo arbitrium, mais próximo ao que vimos na DM.

76 Neste ponto, Wolff nota que o fundamento da filosofia moral e civil, assim como do direito natural, é a

determinação da alma a si mesma a partir de motivos. Seja na demonstração de quais ações são honestas e quais indecentes, e quais se devem cometer e quais omitir; seja na demonstração de como pode o homem agir de acordo com a lei da natureza, ou ainda em como se pode obrigá-lo a agir e punir sua ação, tudo isto se liga à possibilidade da alma se determinar a si mesma (PE, §.945).

Sobre a relação entre mente e corpo

A respeito da relação entre mente e corpo (commercium inter mentem et corpus), Wolff também traz noções por nós já conhecidas (DM, §§.527-539). Primeiramente, retoma aqui a ideia de que na experiência notamos que coexistem algumas atividades da alma e do corpo, mas não observamos a razão dessa coexistência no corpo ou na alma, nem na ação de um no outro. Wolff tampouco nega aqui esta ação, na medida em que isto implicaria aceitar como princípio a inexistência daquilo que não observamos enquanto ocorre, ou do que não somos conscientes – o que, em sua opinião, é falso (PE, §§.947-956). Sobre esta coexistência das mudanças do corpo e da alma, portanto, diz Wolff, o único que se pode afirmar a partir da experiência é que a razão da origem das percepções na mente pode ser dada a partir das mudanças nos órgãos sensórios, isto é, não da sua atualidade, mas do momento (simultaneidade e continuidade) em que ocorrem e das suas especificações – e vice-versa, no que se refere aos movimentos voluntários no corpo e volições da alma (§§.959-960). Nestes termos, se dá entre os dois uma mútua dependência, que constitui o que se chama propriamente de relação (commercium) da mente com o corpo (§§.960-961)77. Desta se deriva ainda a união (unio) entre os dois (que constituem, assim, uma substância composta), e se atribui o regime do corpo (regimen corporis) à alma (§§.962-964). Mas em que consiste tudo isto, finaliza Wolff, só se pode compreender após a apresentação da razão a priori dessa relação – a psicologia empírica não se dedica a isto, e o que ensina sobre esta relação é o suficiente para teólogos, juristas, médicos e filósofos na filosofia moral e civil (§.964).

Com isto, Wolff encerra sua psicologia empírica.