• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2: A Psicologia nos Escritos Latinos de Wolff

2.1 A Psicologia no Discursus Praeliminaris

Do discurso preliminar de Wolff sobre a sua filosofia em geral desejamos saber duas coisas no que se refere à psicologia: 1- Qual o lugar dela na nova apresentação do sistema filosófico wolffiano? 2- Por que ela se encontra separada em duas partes diferentemente qualificadas?47

2.1.1 – O Lugar da Psicologia no Sistema Filosófico Latino de Wolff

Wolff inicia a introdução à sua filosofia latina esclarecendo quais são os três tipos gerais de conhecimento. De maneira similar àquela encontrada na DM, o ponto de

47 A Teologia Natural também é separada em duas partes, ambas, no entanto, qualificadas como teologia

natural. O mesmo se dá com as três partes da Lógica. Por isso, nos perguntamos a respeito da razão das diferentes qualificações das partes da psicologia.

partida do DP é a noção de que: “Com o auxílio dos sentidos conhecemos as coisas que são e ocorrem no mundo material, e a mente é consciente das mudanças que ocorrem nela mesma. Ninguém desconhece isso, desde que atente a si mesmo.” (Wolff, 1740/1983b, p. 1, §.1). O conhecimento desta maneira adquirido sobre o que é e ocorre no mundo material ou em substâncias imateriais, reforça Wolff, é indubitável (§.2), e se chama conhecimento histórico (§.3).

Como já sabemos, no pensamento de Wolff as coisas que são e ocorrem possuem razões de ser e ocorrer (§.4), e o conhecimento destas razões é por ele chamado de filosófico (§.6), o qual difere do histórico na medida em que este se restringe ao conhecimento do fato, enquanto o filosófico avança na razão do fato, pelo qual se sabe como este pode ocorrer (§.7). As coisas que são e ocorrem, continua Wolff, se são finitas, sejam materiais ou imateriais, possuem também quantidades (§.13), e o conhecimento das quantidades das coisas é chamado de matemático (§.14).

Apesar de diferirem entre si (§.17), estes três tipos de conhecimento devem estar em constante relação. O histórico fornece fundamentos para o filosófico, tanto ao estabelecer as coisas a partir das quais podem ser dadas as razões de outras que são e ocorrem (§.10) quanto ao confirmar que é possível aquilo que se alcança através da razão (§.26). O conhecimento matemático, por sua vez, intensifica a certeza do filosófico, na medida em que por ele se pode demonstrar que a quantidade de um efeito é proporcional à força de uma causa (§.27). Por fim, os conhecimentos histórico e filosófico também fornecem fundamentos ao conhecimento matemático, como demonstram a ótica e a astronomia, por exemplo (§.18).

A partir deste quadro dos tipos de conhecimento, Wolff nos apresenta sua definição de filosofia. Para ele, filosofia é “a ciência dos possíveis na medida em que podem ser” (Wolff, 1740/1983b, p. 13, §.29), e ciência “o hábito de demonstrar asserções, isto é, de inferir a partir de princípios certos e imutáveis por consequências legítimas” (Wolff, 1740/1983b, p. 14, §.30). Na filosofia, portanto, são dadas as razões da ocorrência dos possíveis (§.31), e explicado por quê uns ocorrem ao invés de outros (§.32). E como aqui se busca de todas as maneiras a certeza (§.33), devem-se derivar princípios firmes da experiência, confirmar o que é demonstrado por experimentos e observações imutáveis, e unir todo o trabalho ao conhecimento matemático (§.34); isto é, deve-se sempre admitir ali o conhecimento histórico e matemático (§.35).

Desta noção geral deriva a partição da filosofia wolffiana. Mas, primeiro, sendo ela a ciência dos possíveis na medida em que podem ser, deve-se determinar quais são estes possíveis. Wolff nos conduz à noção de que, a partir da simples atenção a nós mesmos, nos damos conta de três tipos de possíveis: os corpos presentes dos quais somos conscientes como coisas extensas fora de nós e que comovem nossos órgãos dos sentidos; a alma, que é aquilo em nós que é consciente de si mesma; e Deus, enquanto autor das coisas que existem (§.55). Desses três objetos de conhecimento delineiam-se três partes da filosofia: Teologia Natural, a ciência daquilo que se entende como possível através de Deus (§.57); Física, ciência daquilo que é possível através dos corpos (§.59); e Psicologia, que trata da alma, e é por isso “a ciência das coisas que são possíveis através das almas humanas” (Wolff, 1740/1983b, pp. 29-30, §.58).

Esta definição ainda não nos permite compreender o lugar da psicologia no sistema wolffiano. Avançando junto a Wolff, pois, vemos que a alma possui duas faculdades, uma cognitiva e outra apetitiva (§.60), e assim, aquela parte da filosofia que constitui a ciência de dirigir a faculdade cognitiva em conhecer a verdade e evitar o erro é chamada Lógica (§.61), e a ciência de dirigir a faculdade apetitiva na escolha do bem e evitação do mal, Filosofia Prática (§.62). Há que se notar, ainda, que algumas coisas são comuns a todos os seres e são predicadas tanto de almas quanto de corpos. A parte da filosofia que trata do ser em geral e das afecções gerais do ser é chamada Ontologia, ou Filosofia Primeira, que é assim a ciência do ser em geral, ou do ser enquanto ser (§.73). No que diz respeito à física, também existe uma contemplação geral do mundo, pela qual se explicam aquelas coisas que são comuns ao mundo existente e a qualquer mundo possível. Esta é a Cosmologia Geral, ou a ciência do mundo em geral (§.78).

Dadas as definições destas partes da filosofia, Wolff observa que Psicologia e Teologia Natural são algumas vezes designadas pelo nome comum de “pneumática”, usualmente definida como a ciência dos espíritos. Ontologia, Cosmologia Geral, e Pneumática são designadas, por sua vez, pelo nome comum “metafísica”. Assim, metafísica é a ciência do ser, do mundo em geral, e dos espíritos (§.79).

Com isso, podemos agora compreender o critério usado por Wolff para a ordenação destas partes da filosofia. Segundo ele, na ordenação das partes da filosofia precede aquela a partir da qual são dados princípios às demais (§.87). Assim, no que se refere à metafísica, à psicologia devem preceder ontologia e cosmologia geral, para que

nela se possa compreender a essência e natureza da alma, que dependem das noções de força da ontologia e de mundo da cosmologia geral (§.98); e deve suceder teologia natural, que depende das noções de todas as três, especialmente daquelas relativas à alma, sobre as quais se constrói o conhecimento sobre Deus (§.96). Assim, a ordem da metafísica é: ontologia, cosmologia geral, psicologia e teologia natural (§.99).

Não obstante, ainda no que diz respeito à ordenação, diz Wolff, a lógica deve ser a primeira parte da filosofia em geral, na medida em que contém as regras pelas quais a faculdade cognitiva é dirigida no conhecimento da verdade em todas as áreas filosóficas (§.88). Paradoxalmente, na medida em que a completa determinação das verdades lógicas depende de noções ontológicas (relativas aos seres que se pretende conhecer) e psicológicas (relativas à capacidade cognitiva) (§.89), ela deveria vir após a ontologia e a psicologia (§.90). A dissolução deste paradoxo depende da escolha de um método geral. Segundo Wolff, o método de demonstrar exige que a lógica venha depois da ontologia e da psicologia; enquanto o método de estudar recomenda que a mesma preceda todas as partes da filosofia. Como em ontologia e psicologia, continua ele, não se progride bem sem as noções da lógica, mas nesta se pode facilmente explicar os princípios da ontologia e da psicologia, é preferível o segundo método ao primeiro (§.91). Logo, a primeira parte da filosofia deve ser a lógica, seguida da metafísica, após o que podem vir a filosofia prática e a física, ambas dependentes de noções metafísicas, a primeira principalmente da psicologia e da teologia natural (§§.92-93), e a segunda principalmente da ontologia e da cosmologia geral (§§.94-95).

Com isso, podemos compreender o lugar da psicologia no sistema filosófico de Wolff. Falta-nos saber, no entanto, por que Wolff divide a psicologia em duas partes e as qualifica de maneiras diferentes.

2.1.2 – A Separação da Psicologia no Sistema Filosófico Latino de Wolff

Como vimos, a psicologia é, para Wolff, a ciência daquilo que é possível através da alma humana. Avançando nesta definição, Wolff diz que, na medida em que à psicologia são pedidos os princípios das demonstrações tanto da lógica e da arte da descoberta quanto da filosofia prática, e nestas disciplinas assim como na regulação das ações do homem se deve ter a máxima certeza, é necessário que na psicologia tais princípios tão importantes sejam constituídos através da experiência, e sua ordem seja

arranjada de uma maneira tal que a razão do consequente se abra através do antecedente. Assim, diz Wolff,

Esta é a razão pela qual fizemos da Psicologia empírica uma parte da filosofia, na qual através da experiência são estabelecidos os princípios pelos quais se pode dar a razão das coisas que podem ocorrer através da alma humana. Defino, portanto, a

Psicologia empírica, que é a ciência de estabelecer princípios através da

experiência pelos quais é dada a razão das coisas que ocorrem na alma humana. (Wolff, 1740/1983b, pp. 50-51, §.111 – ênfase no original)48

Continuando sua elaboração, Wolff acrescenta que, uma vez distinguida a psicologia empírica daquela parte da filosofia que havia definido anteriormente apenas como psicologia (§.58), a esta impõe agora o nome de psicologia racional. E segue dizendo,

na Psicologia racional, precisamente como compete a um filósofo, a partir de um conceito único de alma humana derivamos a priori todas aquelas coisas adequadas à mesma que são observadas a posteriori e deduzidas a partir de certos observados (§.46). (Wolff, 1740/1983b, p. 51, §.112).

Mas como novas investidas são geralmente contrárias à opinião comum, diz Wolff, a razão de discernir a psicologia racional da empírica foi que não se rejeitassem indiscriminadamente os conhecimentos psicológicos. Os princípios psicológicos são necessários para a teoria e práxis moral e também política, e a partir deles deduzimos coisas em razão do método demonstrativo. A filosofia prática é da maior importância, e aquilo que é da maior importância não desejamos dessa forma basear em princípios chamados a debate. Por essa razão, não baseamos as

48 Neste ponto, Wolff insere uma importante observação. Para ele, a psicologia empírica, por suas

características, corresponde à física experimental, e por isso pertence à filosofia experimental. Ambas as disciplinas, não obstante, não são partes da história. A psicologia empírica, diz ele, não apenas revê o que é observado na alma, mas também formula as noções das faculdades da alma e dos hábitos, estabelece princípios e fornece a razão de algumas coisas. E aquilo que é próprio ao conhecimento filosófico, conclui, não pode ser classificado meramente como história (§.111). Esta observação será de particular importância no capítulo seguinte, em especial na nossa discussão sobre a unidade entre a psicologia empírica e a racional.

verdades da filosofia prática senão em princípios estabelecidos de forma evidente pela experiência na psicologia empírica. (Wolff, 1740/1983b, p. 51, §.112)49

Entendemos assim, em linhas gerais, como se situa a psicologia no sistema latino de Wolff, e qual a razão para sua separação em duas partes diferentemente qualificadas. Temos o suficiente, portanto, para seguir com a análise dos escritos psicológicos latinos.