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CAPÍTULO 1: A Psicologia nos Escritos Alemães de Wolff

1.3 A Psicologia na Ausführliche Nachricht

As AzDM ganharam também uma ampla aceitação entre os estudiosos da doutrina wolffiana, e foi logo tomada como um manual complementar à DM. A esta altura, a obra alemã de Wolff estava praticamente completa, e consistia em diversos títulos, envolvendo os demais Pensamentos Racionais, assim como seus escritos de defesa e outros pequenos escritos filosóficos.

Em 1726, Wolff publicou a última grande obra de conteúdo filosófico que compôs em língua alemã, consistindo em um escrito sinóptico, dedicado à síntese e explanação geral de sua obra filosófica alemã: a sua Ausführliche Nachricht (AU), ou como indica seu título completo, sua Notícia pormenorizada sobre seus próprios

escritos publicados em língua alemã. Não obstante tenha continuado a reeditar seus

escritos e a publicar outros textos em alemão ao longo de sua carreira, dois anos depois da aparição da AU Wolff passou a dedicar a maior parte de sua produção à elaboração e publicação de seus escritos filosóficos latinos, voltados para o público europeu em geral (Arndt, 1973).

Em linhas gerais, Wolff expõe ali, em diversos capítulos, as razões de seu estilo de escrita, da sua escolha do alemão como idioma oficial de suas obras, e da sua concepção geral de filosofia, além de apresentar uma síntese de cada parte desta, contemplando suas principais questões e conexões. Em sua maior parte, portanto, Wolff não introduz aqui grandes novidades em seu sistema. No que diz respeito à apresentação que faz da sua metafísica, no entanto, nos interessa notar alguns pontos, os quais se mostram fundamentais para o entendimento tanto de seu pensamento psicológico alemão quanto do projeto por ele desenvolvido em seus escritos latinos.

Primeiramente, tratando do tema da organização das disciplinas na DM, Wolff expõe as razões que orientaram a distribuição dada ali à psicologia. Após referir-se a dois de seus discípulos, L. P. Thümmig (1697-1728) e G. B. Bilfinger (1693-1750), que em suas obras sobre a metafísica wolffiana36 dispuseram de maneira diferente as disciplinas (fazendo seguir ontologia, cosmologia e só então a psicologia) 37, diz ele:

Eu tratei de uma parte da psicologia antes da cosmologia. E a razão para isto é a seguinte. Eu divido a psicologia em duas partes. Uma lida com aquilo que se conhece da alma do homem a partir da experiência; a outra, no entanto, explica tudo a partir da natureza e essência da alma, e mostra nisso o fundamento daquilo que se observa. A primeira parte chamo de Psicologia empírica, e a segunda de

Psicologia racional. A Psicologia empírica é propriamente uma história da alma,

e pode ser conhecida sem todas as demais disciplinas: a psicologia racional, pelo contrário, supõe a cosmologia como previamente conhecida. Por isso, quando se quer tratar essas disciplinas particularmente em sua ordem, da ontologia segue a cosmologia, e desta a psicologia. [...] Contudo, como eu não tratei as disciplinas que pertencem à metafísica em especial, aloquei uma parte da psicologia, propriamente a empírica, antes da cosmologia, porque ela é mais fácil que esta, e cai nas graças dos iniciantes perturbados pelo desgosto que tiveram com a ontologia, na medida em que devem dar a diferentes coisas uma atenção mais precisa do que estão habituados. Após a psicologia segue finalmente a Teologia

36 Thümmig (1725), Institutiones Philosophiae Wolfianae in Usus Academicos Adornatae. Bilfinger

(1725), Dilucidationes Philosophicae de Deo, Anima Humana, Mundo, et Generalibus Rerum

Affectionibus.

37

De fato, Wolff faz frequentes referências a Thümmig e Bilfinger na AU, notando a adequação de suas obras aos princípios de seu sistema metafísico, principalmente aqueles desenvolvidos na DM e AzDM. Por exemplo, ele nota que Thümmig adota em sua Institutiones (1725) a hierarquia das faculdades da alma, e confere às partes inferior e superior das faculdades cognitivas e volitivas um exame detalhado distribuído em diversos capítulos especiais (AU, §.90, §.103). Nesta mesma obra, diz Wolff, Thümmig desenvolve ainda a psicologia racional de acordo com suas recomendação nas AzDM, isto é, expõe todas as demonstrações relativas à força da alma de forma independente da explicação da relação entre corpo e alma (AU, §.98), separando-as em duas grandes seções, vindo este último tema após a explicação do fundamento das faculdades (AU, §.100). No próximo capítulo, veremos que Wolff repetirá nas obras latinas muitos dos aspectos que reconhece aqui nas obras de seus discípulos. Ainda que o exame completo das relações entre Wolff e seus discípulos esteja para além do escopo de nosso estudo, a observação destes pontos nos sugere a existência de algo mais que um simples reconhecimento de Wolff dos esforços destes últimos na defesa e divulgação de seu sistema.

natural, que toma seus fundamentos em geral das disciplinas anteriores. (Wolff,

1733/1973, pp. 230-232, §.79 – ênfases no original) 38

Apesar de manter a noção geral de psicologia que sustenta na DM e nas AzDM, Wolff esclarece aqui a motivação pedagógica subjacente à distribuição que dá a essa disciplina naquela obra. E o que é ainda mais importante, pela primeira vez Wolff nos apresenta uma concepção clara a respeito da diferença entre as duas partes da psicologia, e utiliza os termos psicologia empírica e psicologia racional para designá- las – o que se tornará uma marca distintiva de seu sistema psicológico39. Mas isso não é tudo. Pois, após apresentar sua motivação para o afastamento na DM das duas partes da psicologia, Wolff nos fornece propriamente a razão de ter estabelecido uma separação entre elas:

Eu não separei uma da outra sem motivo. Porque o que se conhece da alma a partir da experiência são verdades importantes, nas quais muito está situado, na medida em que ali encontram sua prova não só as regras da lógica, de acordo com as quais o entendimento é guiado no conhecimento da verdade, mas também as regras da moral, segundo as quais se conduz a vontade do homem para o bem e se retira do mal. Para o fundamento de doutrinas tão importantes, não se deve tomar senão aquilo de cuja verdade se pode imediatamente convencer. E as coisas que se conhecem da alma através de experiências incontestáveis são de tal natureza; delas se pode convencer imediatamente contanto que se atente a si mesmo ou a outros. Não obstante agora eu veja na outra parte [psicologia racional – acréscimo nosso] que eu também mostrei os fundamentos corretos daquilo que percebemos da alma através da adequada atenção; não é, contudo, trabalho de todos utilizar tanta atenção quanto se requer para ver o fundamento da verdade. Além disso, meu empreendimento é algo novo, e ainda não se está habituado com isso. Sabe-

38 Corr (1975a) identifica neste ponto um foco de controvérsias relativas ao estatuto da psicologia

empírica no sistema de Wolff. Na medida em que Wolff a compreende como uma história da alma, pergunta ele: “a psicologia empírica é uma parte da filosofia propriamente, ou é uma mera propedêutica para a ciência filosófica distinta da alma humana?” (Corr, 1975a, p. 205). A real dimensão desta questão ficará clara no terceiro capítulo, quando já tivermos em vista o quadro geral do sistema psicológico de Wolff.

39 Devemos reconhecer que Wolff se refere neste ponto ao uso prévio destes mesmos termos por

Thümmig, em sua Institutiones de 1725. Baseando-nos puramente nos textos publicados, portanto, podemos dizer que é Thümmig, e não Wolff, o primeiro a aplicar estes termos às duas partes da psicologia.

se, porém, como a verdade é contradita quando é nova. (Wolff, 1733/1973, pp. 251-252, §.89)

Vemos, assim, as duas razões dadas por Wolff para a separação da psicologia em seus escritos alemães. Por um lado, ela se dá por razões pedagógicas, isto é, com fins de auxiliar os estudantes no estudo de sua metafísica. Por outro, ela se dá por razões pragmáticas, ou seja, para que não seja desafiado o valor geral da psicologia em função da novidade e do caráter controverso da psicologia racional. Mais adiante discutiremos o valor destes esclarecimentos de Wolff para nossa análise.

Por ora, gostaríamos de notar ainda que, não obstante enfatize estes aspectos da psicologia racional como justificativa para a sua separação da psicologia empírica, Wolff nos oferece também outras observações a respeito daquela disciplina. Primeiramente, afirma que seu ineditismo consiste justamente na derivação de todas as faculdades da alma e de suas regras de operação de um conceito único de alma. Apesar de considerá-lo desafiador, como acabamos de ver, Wolff enxerga neste traço de sua psicologia racional um grande valor, na medida em que, em sua opinião, por ele se torna possível a explicação das ocorrências da alma de forma compreensível, e ainda se oferecem contribuições para a vida do homem e para outras demonstrações buscadas pelos estudiosos (§.102). Por fim, a respeito dos possíveis erros cometidos nesta disciplina, Wolff nota também que, por um lado, eles não podem implicar nenhum prejuízo à verdade em geral, na medida em que apenas consistiriam em razões falsas e descartáveis para experiências verdadeiras e duradouras; e, por outro, eles são sempre passíveis de melhora, assim como as hipóteses em geral, de maneira que nada impede que esta ciência avance progressivamente na direção da verdade (§.104). Desta forma, ainda que esteja sujeita a erros por sua própria natureza, e evoque reações adversas dos estudiosos mais conservadores, pelo que julga importante separá-la da psicologia racional, Wolff reconhece a relevância da psicologia racional, e o valor de seu papel ao lado da psicologia empírica.

Com isso temos o suficiente a respeito da psicologia nos escritos alemães de Wolff. Mais à frente retomaremos muitos dos conteúdos aqui analisados, quando nos voltemos à sua comparação com a psicologia presente nos escritos latinos.