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CAPÍTULO 1: A Psicologia nos Escritos Alemães de Wolff

1.2 A Psicologia nas Anmerckungen zur Deutschen Metaphysik

1.2.1 Esclarecimentos Conceituais

Parte significativa das notas à psicologia é relativa aos seus conceitos. Deve-se ter em vista que Wolff funda na DM o primeiro vocabulário psicológico alemão sistemático, e por isso algo de seu esforço de esclarecimento volta-se para esse processo – o que, segundo ele, faltou até sua época, e prejudicou o avanço tanto das disciplinas metafísicas quanto da filosofia prática (AzDM, Ad §.196). Os esclarecimentos conceituais, assim, envolvem grande parte das noções estabelecidas tanto na psicologia empírica quanto na racional, e sob quatro grandes pontos de vista, que chamaremos aqui de: semântico, sistemático, epistêmico e pragmático.

De acordo com nossas finalidades analíticas, apresentamos aqui alguns exemplos destes esclarecimentos.33 O comentário a todos está para além do escopo deste estudo.

Esclarecimentos semânticos

Sob a categoria de esclarecimentos semânticos, compreendemos os esclarecimentos de Wolff voltados ao sentido geral de seus conceitos, assim como suas observações a respeito das idiossincrasias do alemão e suas tensões com o latim. Neste sentido, por exemplo, ele observa que pela palavra sensação entende o mesmo tipo de percepção que em latim se denomina sensationes, ou Ideas rerum materialium

33 A seleção dos conteúdos respeitou um duplo critério: representação dos tipos gerais de esclarecimentos

praesentium, e não todo e qualquer pensamento da alma (Ad §.220). Em outro ponto,

adverte que a fraseologia tomada de empréstimo do corpo para a alma não implica a noção de corporeidade da alma (Ad §.202, Ad §.203, Ad §.207). Mais à frente, comenta ainda que em alemão se chamam os juízos intuitivos de Grund-Urtheile e os simbólicos de Nach-Urtheile porque aqueles provêm imediatamente da experiência e são a base do raciocínio, e estes são alcançados por inferência (Ad §.289). Por fim, nota também que na ausência de uma palavra alemã para a recordação progressiva de uma representação, que difere da representação imediata do representado na memória, usa-se a palavra latina reminiscentiam (Ad §.256.257).

Esclarecimentos sistemáticos

Sob a categoria de esclarecimentos sistemáticos compreendemos as observações de Wolff sobre o lugar das noções em seu sistema, e também os acréscimos conceituais à DM. Por exemplo, Wolff aqui nota que o que se diz sobre a indistinção na sensação é útil para quando nas ciências da natureza se pretende explicar aquilo que sentimos indistintamente, como as cores e os sons (AzDM, Ad §.771 & seqq.). Observa também que a noção de signos naturais dá o princípio do que na física se entende como signos do tempo iminente, e se aplica na arte de prever e nas verdades morais (Ad §.293). Além disso, comenta que no conhecimento da alma, na lógica e na moral se mantém a divisão dos antigos entre parte inferior e superior da alma, àquela pertencendo sentidos, imaginação, memória, desejo sensual, aversão e afetos, e a esta, entendimento, razão, vontade e liberdade (Ad §.434 & seqq.). Esta última observação, em especial, constitui um acréscimo em relação à DM, e como veremos, constitui um ponto de interesse para os desdobramentos posteriores da psicologia wolffiana.

Esclarecimentos epistêmicos

Sob a categoria de esclarecimentos epistêmicos encontra-se a maior parte das notas de Wolff. Elas se voltam para a localização de sua doutrina em relação às demais escolas de filosofia e, sobretudo, para a resposta aos ataques de adversários que, como já vimos, consistem principalmente em acusações de determinismo e ateísmo.

Respondendo às acusações de determinismo, no que diz respeito à dimensão cognitiva da alma, por exemplo, Wolff nota que a aplicação da forma do silogismo às mudanças da alma inaugura uma maneira compreensível de filosofar sobre ela, com a

qual se alcança a certeza na compreensão de suas mudanças. Esta certeza, no entanto, não implica a necessidade das mudanças, ou seja, a impossibilidade destas ocorrerem de maneira diferente daquela que ocorrem. Pois, segundo Wolff, apesar das regras tornarem certa a sucessão dos pensamentos, a alma conserva a liberdade de exercer suas capacidades como quer (Ad §.342, Ad §.343).

Sobre outro ponto de sua psicologia, Wolff afirma que erram aqueles que entendem que há na alma somente uma faculdade passiva de sentir, e o acusam de privá-la de liberdade, tornando tudo nela necessário, como Spinoza. Pois, conforme adverte, existe uma clara diferença entre uma mera faculdade e uma força, e por meio desta a alma é ativa (Ad §.745.746), e pode ainda produzir muitas mudanças – assim como o fogo, que por meio de uma força pode queimar, aquecer e iluminar (Ad §.754)34.

Quanto às acusações de ateísmo voltadas à sua psicologia, Wolff comenta, por exemplo, que por fundamentar a imortalidade da alma na conservação do estado de pessoa após a morte do corpo, o acusaram de instituir duas pessoas em Cristo, comprometendo a religião (Ad. 924). De acordo com sua avaliação, no entanto, seu conceito de imortalidade não contraria a noção de unidade na multiplicidade, que torna possível compreender uma só pessoa em Cristo, e ainda permite sustentar que após a morte a alma pode ser punida, diferente do que ocorre com a simples incorruptibilidade

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De fato, a fundamentação das faculdades da alma em sua força representativa constitui um dos pontos de controvérsia da psicologia wolffiana até os dias atuais. Em um estudo recente sobre o desenvolvimento deste tópico na DM, Goubet (2003), por exemplo, propôs que a força representativa da alma fornece tão somente um fundamento vertical para as faculdades (pelo qual se explica a possibilidade de sua geração), mas não um fundamento horizontal (pelo qual se compreende a procedência de umas a partir de outras). Este autor sugere, assim, a existência de outras “forças” fundamentais para as mudanças da alma, como a “força do silogismo” (Goubet, 2003, p. 343), e a força motriz dos corpos. Em que pese o fato de que o próprio Wolff reconhece (já na DM, em §.847, mas de maneira mais clara posteriormente, como veremos) que apenas pela força da alma não é possível fornecer todas as razões do que nela ocorre (para o que são necessárias ainda as regras e leis das faculdades conhecidas na experiência), não consideramos justificada a proposição deste intérprete. Em primeiro lugar, porque ela ignora um aspecto da noção de força de Wolff: o afã que ela impõe à coisa de modificar continuamente o seu estado interno. Em segundo lugar, porque ignora a limitação presente na definição da força da alma como a força de representar o mundo de

acordo com o lugar do corpo nele (DM, §.753). Tendo isto em vista, compreendemos que a força da alma

contempla o fundamento horizontal das mudanças da alma nos quesitos abordados por Goubet (2003), tanto em relação à sucessão dos pensamentos uns a partir de outros (dada pelo afã) quanto no que se refere ao papel limitador desempenhado pelo corpo. A proposição da influência de outras forças na alma nos parece, neste sentido, uma abstração desnecessária. Ainda no mesmo estudo, cabe mencionar, Goubet afirma também a impossibilidade de identificação entre representar e querer como um impasse para a fundamentação da faculdade volitiva na força representativa. Em contraposição, nós não consideramos necessário que o estabelecimento da razão suficiente de uma coisa em outra pressuponha uma relação de identidade entre ambas – o que será defendido pelo próprio Wolff, como veremos posteriormente.

da alma afirmada em outras escolas filosóficas (Ad §.926 & seqq.). Wolff rechaça também a acusação de que impede a punição do ateu ao afirmar que a alma se torna mais perfeita sem o corpo, destacando que se perde de vista aqui que na DM se fala da perfeição essencial, que o piedoso e o mau têm, aquele para o aumento do seu prazer, e este da sua danação (Ad §.925).

Wolff ainda dedica grande parte de seus esclarecimentos epistêmicos à discussão da associação entre a sua doutrina e a de Leibniz. No que importa à psicologia, discute principalmente que, apesar de explicar as noções de Leibniz relativas às suas mônadas (ou unidades), não pôde aderir à sua opinião (Ad. 806). Tratando deste mesmo tema nas notas à cosmologia, Wolff admite que as mônadas de Leibniz têm em si as características comuns das coisas simples, como uma força que nelas constantemente traz mudanças, e através da qual se dá a diferença dos estados em cada uma em relação a todas as outras, gerando uma harmonia universal. No entanto, diz ele, isto não implica a necessidade de que todas as coisas simples tenham o mesmo tipo de força. Reconhecendo que nas coisas simples do mundo deve haver uma força da qual se podem derivar as forças motriz e de resistência dos corpos, Wolff não encontra razões para aprovar a ideia leibniziana de que a força dos elementos seja a de produzir representações obscuras do mundo. No entanto, tampouco aprova qualquer teoria contrária. Por julgar ainda não ter considerado suficientemente esta questão, Wolff diz preferir aqui o silêncio. Apenas não toma, por isso, os elementos pelas mônadas de Leibniz, nem aprova sua explicação da harmonia universal (Ad §.598.599, Ad §.600, Ad §.697) - pelo que considera ainda absurdo que alguns o acusem de conceber a matéria como um agregado de espíritos, e que outros, por outro lado, o ataquem por não dar aos elementos uma força representativa (Ad §.898).

Esclarecimentos pragmáticos

Wolff apresenta ainda várias notas de caráter pragmático, considerando as implicações de sua psicologia para os campos da moral e da ética, assim como para a vida comum, insistindo que tudo em seu sistema é voltado para a praxis (Ad §.236, Ad §.248). Por exemplo, apresenta as utilidades práticas da regra da imaginação, como julgar a natureza das cerimônias na moral (Ad §.238); comenta, a partir da operação da atenção, o fundamento da noção popular de que Deus ajuda quem cedo madruga (porque mais cedo há menos perturbações para a atenção) (Ad §.271); e, em geral, nota

que tudo o que se fala sobre o querer é o fundamento da moral, a partir do que se constrói a práxis moral (Ad §.406 & Seqq.) – o que também, em sua opinião, viram os chineses, levando a virtude natural e a respeitabilidade civil mais longe que os cristãos (Ad §.414.415).

Não obstante a relevância destes esclarecimentos e incrementos conceituais, consideramos que o ponto alto da atividade de Wolff em suas notas à psicologia diz respeito ao foco da maior parte das controvérsias que vinha enfrentando desde 1720: a harmonia pré-estabelecida.