• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1: A Psicologia nos Escritos Alemães de Wolff

1.2 A Psicologia nas Anmerckungen zur Deutschen Metaphysik

1.2.2 Restrição Epistêmica da Harmonia Pré-estabelecida

Nas AzDM, encontramos um extenso trabalho de Wolff relativo à harmonia pré- estabelecida que consiste em, por um lado, restringir a sua significação epistêmica na psicologia em geral, evitando os problemas derivados de sua ligação a certos assuntos e, por outro, justificar de forma mais detalhada os termos de sua aceitação na psicologia racional. Mais especificamente, este trabalho pode ser dividido em três momentos: primeiro, a demonstração da independência da psicologia empírica e da filosofia prática em relação à harmonia; segundo, a demonstração da independência da fundamentação das faculdades da alma na psicologia racional em relação à harmonia; por fim, a demonstração da equidade entre as teorias explicativas da relação entre corpo e alma, e dos termos de aceitação da harmonia.

Restrição da harmonia em relação à psicologia empírica e à filosofia prática

A partir da nossa apresentação da psicologia empírica da DM, podemos perceber que o tema da relação entre corpo e alma ocupa ali apenas uma pequena parte ao final da exposição. Notamos também a ênfase de Wolff em sua restrição à experiência, a partir da qual, afirma, sabemos somente que entre corpo e alma existe uma sintonia, sem que possamos, por ora, compreender sua razão. Em termos gerais, vemos que em sua psicologia empírica Wolff não estabelece qualquer tipo de compromisso com a teoria da harmonia pré-estabelecida. Efetivamente, a explicação da relação entre corpo e alma, em geral, não faz parte dos propósitos desta disciplina.

Os opositores de Wolff, no entanto, não o entenderam desta maneira. A defesa da harmonia pré-estabelecida presente na psicologia racional foi por eles interpretada como um compromisso da psicologia wolffiana como um todo. E na medida em que a

psicologia empírica constitui a fonte dos fundamentos da filosofia prática, em especial da moral e da política, muitas controvérsias foram geradas a respeito das implicações daquela tese para estas disciplinas (rever exemplo em nota de rodapé 31).

A primeira preocupação de Wolff relativa à tese da harmonia pré-estabelecida entre corpo e alma é, neste contexto, demonstrar sua completa irrelevância para a filosofia prática. E é precisamente isto que busca realizar com suas diversas notas à psicologia empírica a respeito deste tema. Já na primeira nota à psicologia empírica, assim, Wolff menciona que esta tese não possui lugar algum na Moral e na Política (AzDM, Ad §.191). Isto porque, primeiramente, assim como todas as teorias explicativas da relação entre corpo e alma, ela constitui apenas uma hipótese, e sobre hipóteses, em sua opinião, não se devem sustentar verdades fundamentais (pois os estudiosos sempre encontram razões para divergir a respeito delas)35. Em segundo lugar porque, na realidade, a explicação da relação entre corpo e alma não é relevante naquelas disciplinas. Em outras palavras, Wolff sugere que, tal qual o aprendizado da escrita não exige o conhecimento de como pode a mão mover a pena, também o exercício da virtude não exige o conhecimento de como pode o corpo agir de acordo com a vontade, mas basta que se saiba que isso ocorre, e que se possa conhecer o que a alma exige como motivos. Bastam aqui, enfim, os conhecimentos da psicologia empírica, que não dependem minimamente de hipóteses (Ad §.191, Ad §.527 & seqq.). Por isso, diz Wolff, “é uma loucura quando se começa uma briga, como se a salvação e bem-aventurança da humanidade, assim como o bem-estar do Império Romano dependesse de como se esclarece a operação do corpo e da alma um no outro.” (Wolff, 1740/1983a, p. 263, Ad §.527 & seqq.).

De fato, continua Wolff, a explicação da comunidade entre corpo e alma importa tão pouco à Moral e à Política, que desde que não seja negado nenhum dado da experiência, pode-se ali eleger a hipótese que se quiser. Na Moral, por exemplo, onde se mostra como o homem deve determinar os movimentos de seu corpo, basta saber como a alma se determina à sua ação livre, e não negar que os movimentos se dão tão logo a vontade se dá, de forma que aqui mesmo o influxo poderia ser eleito. Na Política, por sua vez, tem-se que ver a união da alma com o corpo principalmente por conta da

35 Esta caracterização das teorias explicativas da relação entre corpo e alma como hipóteses constitui um

importante acréscimo conceitual de Wolff em relação à DM. Veremos que nos tratados latinos esta ideia será desenvolvida em maior detalhe.

punição pela qual se obriga o homem a cumprir as leis. Isto é, como não se pode intervir diretamente sobre a alma, então se pune o corpo do homem quando se quer governar sua vontade com poder. E para isso basta que a alma tenha sensação do que sucede no corpo. Não importa compreender de que maneira isto ocorre, e por isso se pode escolher a explicação que se quiser (Ad §.539).

Mas por que, então, a ocupação com a explicação da relação entre corpo e alma em primeiro lugar? Wolff responde que, como alguns tomam a questão como um nó indissolúvel, e nisto encontram o fundamento para cair em idealismo ou materialismo (isto é, restringir a dimensão ontológica seja a puras ideias da alma seja a produtos da matéria, respectivamente), considerou útil mostrar que é possível explicá-la de forma compreensível (Ad §.760). Como veremos, no entanto, isto não envolve as demais demonstrações da psicologia racional.

Restrição da harmonia em relação à psicologia racional

Garantido o papel fundamental da psicologia empírica, Wolff avança notando que em sua psicologia racional empreende um trabalho até então inédito, que consiste na demonstração de todos os fenômenos observados na experiência a partir de um conceito único de alma. E aqui entra sua segunda medida em relação à harmonia pré- estabelecida: Wolff prova a independência dessa demonstração em relação à explicação da sintonia entre corpo e alma (Ad §.727). Sabemos que na DM Wolff identifica a essência e natureza da alma com a força de representar o mundo de acordo com as mudanças que ocorrem nos órgãos dos sentidos, e disto deriva o fundamento de todas as faculdades da alma observadas na experiência. Nas AzDM, Wolff introduz uma observação de cautela: isto não depende de qualquer explicação da relação entre corpo e alma. Pois, em sua opinião, em todas as hipóteses a força da alma permanece a mesma, diferenciando-se tão somente a maneira pela qual é determinada. Na cartesiana é determinada imediatamente por Deus, na leibniziana por meio da alma (i.e., por Deus, mas por meio da natureza e essência da alma), e na aristotélica (influxo) pelo corpo. Mas, ao tratar da fundamentação das faculdades da alma em sua força, diz ele, ainda não se trata da maneira pela qual esta força é determinada. Logo, não se deve dirigir nenhuma atenção às hipóteses (Ad §.753).

Desta maneira, Wolff desfaz o vínculo entre a explicação das faculdades da alma a partir da sua força representativa e a explicação da relação entre corpo e alma (e,

principalmente, da harmonia pré-estabelecida). Em especial, Wolff prova que independe de qualquer hipótese sobre a relação entre corpo e alma aquilo que diz sobre: a finitude dos estados da alma (Ad §.783 & Seqq); as mudanças no corpo sintonizadas com as sensações da alma (Ad §.778); o fundamento das mudanças das sensações (Ad §.786); a imaginação, a memória (Ad §.807) e os movimentos a elas correspondentes no cérebro (Ad §.812.813.814); a perfeição das sensações (Ad §.822 & seqq.); os conceitos e juízos gerais (Ad §.832) e como o corpo produz as palavras do conhecimento geral (Ad §.836 & seqq.); as inferências (Ad. §.842) e seus efeitos correspondentes no cérebro (Ad §.843); o entendimento (Ad §.844); a regra do pensamento (Ad §.846.847); as perfeições do conhecimento (Ad §.848); a razão (Ad §.865 & seqq..); a ausência de razão nos animais (Ad §.869); as faculdades apetitivas e sua produção progressiva (Ad §.873), e a liberdade (Ad §.875).

De maneira complementar, Wolff admite que, por outro lado, algumas discussões desenvolvidas na psicologia racional, como aquelas relativas aos estados do cérebro nas inferências, e ao equivalente corpóreo do entendimento (DM, §.842, §.844) tiveram como intenção ajudar a demonstração da harmonia pré-estabelecida. Ele reconhece agora, no entanto, que elas se aplicam, verdadeiramente, a todos os sistemas, e de nenhum deles depende (AzDM, Ad §.842, Ad §.844). E, de forma geral, insiste que naqueles casos onde defende a harmonia, isto se dá pelo bem da verdade, e para a evitação de problemas maiores. Todas as demonstrações da psicologia racional, na realidade, independem tanto da harmonia quanto de qualquer outra explicação hipotética da relação entre corpo e alma (Ad §.792 & seqq.).

Equidade entre as hipóteses, e termos de aceitação da harmonia

Uma consequência imediata destas provas é o estabelecimento de uma condição de equidade entre as hipóteses explicativas da relação entre corpo e alma: todas são igualmente irrelevantes para a demonstração da fundamentação das faculdades da alma em sua força representativa. Seguindo esta ideia, Wolff observa que, pelo bem da verdade, apresenta animadamente as objeções contra a harmonia, e também auxilia os demais sistemas (Ad §.781), dando a todos o mesmo tratamento justo, de maneira que quem queira se aproximar ou se afastar de cada um, encontre ali seus fundamentos (Ad §.782).

Assim, por exemplo, sobre a acusação de que a noção de ordem contínua gerada pela força implicaria a de necessidade, Wolff esclarece que ela somente exige que uma coisa siga da outra (isto é, uma certeza), nunca prejudicando a liberdade, e que isso se aplica à força da alma em todos os sistemas, não só na harmonia (Ad §.767). À acusação de idealismo Wolff responde que as representações da alma independem do corpo não só na harmonia, mas também no ocasionalismo (i.e., na tese cartesiana), e isto não implica o idealismo, pois a realidade não segue imediatamente da possibilidade (Ad §.777). À consequência de que na harmonia a sensação ocorreria sem a mudança no corpo, ou de maneira diferente desta, objeta que o que se diz da finitude e estados da alma só depende da força, e se dá assim em todos os sistemas (Ad §.783 & seqq.). Tendo em vista a objeção segundo a qual a escravidão do corpo na harmonia deslegitima a punição e a liberdade da alma, Wolff observa que esta escravidão se dá em todos os sistemas (no influxo o corpo é determinado pela alma, no ocasionalismo imediatamente por Deus, e na harmonia por Deus mediante o curso da natureza), mas não compromete a punição (pois a experiência comprova que a alma sente a dor do corpo), nem a liberdade, pois, como se viu na DM, não é impossível Deus dar ao corpo a arte de agir racionalmente (AzDM, Ad §.884). Assim, conclui Wolff, o que é incompreensível e maravilhoso no corpo, o é em todos os sistemas, e só fica mais claro na harmonia (Ad §.780).

Não obstante esta equidade, a harmonia, de fato, possui para Wolff algumas claras vantagens sobre as demais hipóteses. O fato de a alma poder regular-se de acordo com o estado do cérebro e dos nervos, e ainda ser ativa ao sentir, por exemplo, não se esclarece para ele com igual distinção em hipótese nenhuma como na harmonia (Ad §.815, Ad §.818). A explicação de como pode o corpo agir racionalmente, por outro lado, também é para ele mais clara na harmonia, pois no influxo se mistura ali a alma, e no ocasionalismo, Deus, enquanto na harmonia tudo segue natural e suficientemente (Ad §.836 & seqq.). E isto, em sua opinião, deixa ainda mais claro o quanto não se defende o determinismo e o ateísmo em seu sistema. Pois, que a verdade no corpo seja determinada da mesma maneira como se dá na alma, vem de que a lei do movimento que funda a ordem natural tem tão pouca necessidade quanto a liberdade da alma, e Deus em sua onisciência procurou uma ordem na lei do movimento que concorda com as determinações voluntárias da alma (Ad §.885).

Assim, como a harmonia está em acordo com os conceitos de alma e corpo, podendo-se explicar natural e compreensivelmente a comunidade entre eles; e, além disso, rejeita o materialismo e ateísmo, eleva a doutrina de Deus à luz da natureza, e não faz entrave à religião revelada, Wolff encontra os termos de sua aceitação (Ad §.765). Mas na teologia, moral e política, diz, continua sem misturar ela ou outra hipótese, que em nada lhes servem (Ad §.760).

E nisto consistem os principais desdobramentos da psicologia de Wolff em suas AzDM. Nos resta, portanto, contemplar aqueles presentes em sua AU.