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CAPÍTULO 3: Sobre a Unidade da Psicologia no Pensamento de Wolff

3.2 O Sistema Psicológico de Wolff constitui uma Unidade?

3.2.1 Teses da Literatura Secundária

A primeira tese que desejamos considerar provém não dos estudos wolffianos ou da historiografia da psicologia, mas da história desta disciplina. Ela é um exemplo de como a ideia de Wolff foi entendida ou interpretada por psicólogos no século XIX, a partir do objetivo de criar uma identidade própria ao que então se considerava uma psicologia científica. Nos referimos aqui a uma interpretação apresentada por Wundt, na introdução de seus Princípios de Psicologia Fisiológica (5ª Ed., 1902). Ali, após apresentar qual seria a justificativa geral de sua psicologia fisiológica, e os múltiplos campos da psicologia que compõem sua estrutura, diz Wundt: Na enumeração anterior das disciplinas psicológicas, propositadamente nenhum lugar foi alocado à chamada Psicologia racional. Com este nome, que Christian Wolff introduziu na ciência, deve ser caracterizado um conhecimento da vida mental a ser adquirido puramente a partir de conceitos metafísicos,

independentemente da experiência. O resultado mostrou que um tratamento metafísico deste tipo só pode assegurar sua existência por meio de contínuas captações ilícitas da experiência. O próprio Wolff se viu logo obrigado a colocar, ao lado de sua psicologia racional uma psicologia empírica, embora a primeira contenha quase tanta experiência quanto a segunda, e esta, quase tanta metafísica quanto a primeira. (Wundt, 1902, p. 8 – ênfase no original)

Obviamente, para não exagerarmos o seu sentido, devemos levar em conta o contexto teórico desta referência de Wundt. Longe de tratar-se de uma pura avaliação da psicologia wolffiana, Wundt busca aqui, na contraposição com a ideia geral de psicologia racional e de sua oposição à psicologia empírica introduzida por Wolff na psicologia moderna, acentuar a sua própria diferenciação entre conhecimento científico e filosófico, pressuposta na fundamentação de sua psicologia científica108. Ainda assim, encontramos aqui uma significativa ilustração de como a distinção wolffiana entre psicologia empírica e racional foi interpretada na história da psicologia; neste caso, como a distinção entre um conhecimento da vida mental adquirido na experiência, e outro totalmente divorciado dela, sustentado exclusivamente em conceitos metafísicos. Esta interpretação, portanto, tomamos como a tese (1): distinção fundamentada nas fontes epistêmicas.

Em segundo lugar, desejamos considerar dois casos presentes na historiografia tradicional da psicologia. Naturalmente, devemos observar que não podemos inferir daqui o estado da arte da historiografia da psicologia contemporânea. Não obstante, consideramos estes casos significativas ilustrações do que foi, por muito tempo, o conhecimento existente a respeito da psicologia de Wolff entre historiadores da psicologia, principalmente norte-americanos, e consequentemente das diversas gerações de psicólogos formados com apoio em seus manuais. O primeiro deles provém, assim, de um dos primeiros manuais de história da psicologia norte- americanos:

A distinção feita por Wolff entre uma psicologia “racional” ou filosófica, e uma “empírica” ou observacional estava alinhada com uma divisão posterior de problemas e interesses; mas seus livros sobre esses dois tipos de psicologia ilustram a dificuldade de executar a distinção a partir do seu ponto de vista. Para

ele a “psicologia racional” era uma disciplina dedutiva metafísica, contra a ciência indutiva e empírica. A primeira deveria ter sido chamada de “psicologia do racionalismo”. A sua distinção entre as duas não é aquela que a psicologia moderna reconhece na diferenciação entre o problema observacional com o qual a ciência começa, de um lado, e o problema explicativo, de outro, com o qual ela conclui. Esta última distinção estava se desenvolvendo de uma forma mais expressiva no trabalho dos empiristas britânicos. (Baldwin, 1913, p. 153 – ênfase no original)

Com um tom inicial similar àquele que vimos em Wundt, Baldwin contrapõe aqui, mais que as fontes epistêmicas e os campos aos quais pertencem as duas partes da psicologia (ciência vs filosofia), o método adotado em cada uma: indução na empírica, e dedução na racional. De um ponto de vista negativo, ele observa ainda do que não se trata a distinção wolffiana: da diferenciação entre o problema observacional e explicativo. Mais à frente vamos considerar que relação possível existe entre essas duas afirmações que compõem esta interpretação. Mas, pelo seu enfoque principal, a tomamos como a tese (2): distinção fundamentada no método (indução vs dedução).

O segundo caso provém de um manual mais recente de história da psicologia, segundo o qual:

A Psicologia Empírica de Wolff apareceu em 1732 e foi seguida dois anos depois por sua Psicologia Racional. Ele via as tarefas dessas duas psicologias como inter-relacionadas. A psicologia racional deduz a partir de concepções metafísicas e da experiência das atividades da alma; a psicologia empírica se ocupa com o ser humano, o composto de corpo e alma. Esta forma de formular a distinção entre psicologia racional e empírica tem implicações metodológicas baseadas em ênfase, na medida em que, na visão de Wolff, a psicologia racional depende mais da razão e menos da experiência, e a psicologia empírica mais da experiência do que da razão. Para ele esta distinção é primordialmente de conteúdo. A alma é a preocupação da psicologia racional; o ser humano (alma e matéria) é a preocupação da psicologia empírica. Ambas as psicologias usam os dois métodos, mas em diferentes graus. (Watson & Evans, 1991, p. 237 – ênfase no original) Vemos aqui que a psicologia empírica, por tratar do homem, depende mais da experiência; enquanto a racional, que lida com a alma, depende mais da razão. Sem

negar, portanto, a existência de uma diferença na ênfase metodológica em cada parte da psicologia em função do papel assumido pela razão e pela experiência em cada uma, nesta interpretação tal diferença deriva, efetivamente, de uma outra fonte: o conteúdo das psicologias. E é por isso que a tomamos como a tese (3): distinção fundamentada no conteúdo.

Passando agora para outro nível da literatura, teremos em vista três casos da literatura especializada em Wolff. O primeiro consiste em uma interpretação direta da distinção wolffiana entre psicologia empírica e racional. Os outros dois, em interpretações indiretas. Ou seja, os fundamentos da distinção entre as duas partes da psicologia são aqui determinados não a partir de uma busca explícita por eles, mas pelo exame de outros aspectos da psicologia de Wolff.

O primeiro caso consiste na interpretação de Richards (1980), apresentada na ocasião de sua tradução para o inglês dos prolegômenos da PE e da PR. Ali, diz o autor:

O principal assunto da psicologia empírica de Wolff, assim como de sua psicologia racional, é a mente (ou alma) e suas atividades. As duas disciplinas da psicologia, em sua construção, são distinguidas principalmente por seus métodos. A psicologia empírica, ainda que sem negligenciar as observações do comportamento externo, tem como seu método primário a introspecção direta da mente de suas próprias atividades, seja capturando espontaneamente suas operações normais, ou efetuando experimentos a fim de eliciar atos particulares. [...] De maneira complementar, a psicologia racional procede a priori e dedutivamente para demonstrar verdades sobre a alma. Os conceitos e proposições que ela usa são derivados de disciplinas mais fundamentais – física, metafísica, e psicologia empírica. Por conta de seu caráter a priori e dedutivo, a psicologia racional para Wolff chega mais perto do que a psicologia empírica de realizar o ideal de ciência como um conjunto de proposições ordenadas, cujas antecedentes provêm razões suficientes para as consequentes. (Richards, 1980, p. 228 – ênfase no original)

Vemos que aqui o critério distintivo para as duas partes da psicologia se encontra na contraposição entre os métodos da observação e introspecção (natural ou experimental) utilizados pela psicologia empírica, e da dedução a priori (a partir das noções provindas de outras disciplinas), por parte da racional. Isto é, apesar de também

repousar sobre o nível metodológico, como a tese (2), a interpretação de Richards possui um maior nível de distinção, na medida em que não só os métodos em geral, mas os procedimentos e aspectos específicos da metodologia das psicologias são por ele destacados. Por isso a tomamos aqui, entendendo-a como a tese (4): distinção fundamentada no método (introspecção vs dedução).

Afastando-se da busca pela distinção entre as duas partes da psicologia a partir da oposição entre experiência e razão, ou entre conhecimento a posteriori e a

priori, École (1969) reconhece a presença de ambos nas duas. Ele as entende como

empreendimentos igualmente racionais, e igualmente atravessados pela experiência, de forma que nem mesmo na psicologia racional a razão se encontra em seu estado puro. A partir disto, diz,

Apesar do caráter flutuante da classificação wolffiana, pensamos que é mais exato localizar a razão não pura, que é o instrumento da Psychologia rationalis, no conhecimento a priori, e buscar o que diferencia a Psychologia rationalis da

Psychologia empirica no distinto papel desempenhado pela razão em cada uma.

Enquanto na Psychologia empirica a razão é subordinada à experiência, cujos dados apenas põe em ordem, na Psychologia rationalis a primazia pertence à razão, que toma estes dados para lhes confirmar e fundamentar. Em uma palavra, na Psychologia empirica a razão não tem senão um papel secundário e metodológico, e na Psychologia rationalis ela exerce sua função essencial, que é a de informar e explicar. (École, 1969, pp. 81-82 – ênfase no original)

Nestes termos, tomamos esta como a tese (5): distinção fundamentada no papel da razão.

Atentando a uma questão que lhe parece mais alarmante que a distinção entre psicologia empírica e racional, Corr (1975a) nos diz, a respeito do lugar da psicologia empírica no sistema wolffiano, que:

[…] é importante notar que Wolff descreve essa disciplina experiencial como uma parte propriamente da filosofia, e não da história. […] Algumas das afirmações do próprio Wolff, apesar de sua posição professada, servem apenas para aumentar nossa perplexidade. Assim, na Ausführliche Nachricht, ele nos diz que “a psicologia empírica é realmente uma história da alma e pode ser conhecida sem

nenhuma outra disciplina”. Ademais, em seu Discursus praeliminaris, Wolff introduz a noção de “um certo nível intermediário entre o conhecimento histórico e filosófico”. Isto se refere ao conhecimento possuído por alguém “que por experimentos e observações confirma teses filosóficas que ele conhece historicamente, mas não pode demonstrar”. “Este é”, diz ele, “o nível mais próximo da filosofia, e pode ser chamado de seu início”. Como a psicologia empírica também fornece confirmação experiencial por experimentos e observações, ela exibe afinidades com este nível intermediário do conhecimento. Sua diferença deve depender da função da psicologia empírica de estabelecer princípios. Mas, ainda assim, o estabelecimento de princípios a partir dos quais as razões são dadas não é a mesma coisa que o fornecimento efetivo de razões explicativas. Nem a formulação de conceitos e definições é muito mais que uma organização de fatos da experiência. [...] Parece que somos levados ao resultado de que existem algumas ambiguidades não resolvidas especialmente na concepção de Wolff do papel e caráter da psicologia empírica. (Corr, 1975a, p. 197, pp. 205- 206 – ênfase no original)

Como vemos, Corr identifica aqui uma ambiguidade produzida na obra de Wolff a respeito do lugar da psicologia empírica em seu sistema de filosofia. Em outras palavras, seria ela propriamente uma parte da filosofia (como a psicologia racional), da história, ou de um nível intermediário entre as duas? Em nosso entendimento, apesar de ser mais abrangente, e não restringir-se à questão da distinção entre psicologia empírica e racional, estas duas questões estão fortemente ligadas. Isto é, o fundamento da distinção entre as psicologias pode ser dado de acordo com o domínio atribuído à psicologia empírica. Se ela faz parte da história ou de um nível intermediário entre história e filosofia, distingue-se da psicologia racional, que é uma parte da filosofia. Se, ao contrário, também faz parte da filosofia, não se distingue da racional, ou distingue-se por outra razão. Consideramo-la, portanto, como a tese (6): distinção fundamentada no domínio de conhecimento.

Por fim, desejamos considerar um último caso, proveniente de outro nível da literatura, que pode ser aqui entendido como a historiografia das ciências humanas do século XVIII. A interpretação nos é aqui oferecida por Sturm (2009), que tratando do tema geral dos debates sobre psicologia e antropologia no século XVIII, diz,

Wolff introduz, ademais, uma influente distinção metodológica entre duas partes da psicologia, a saber, entre uma psicologia “racional” e uma “empírica”. Ele pensa que o conhecimento empírico da mente é um conhecimento de certos fatos, enquanto o conhecimento racional da mente deve verdadeiramente proporcionar o fundamento ou explicação para a possibilidade desses fatos. Isto não significa que a psicologia empírica unicamente proporcionaria descrições dos fatos psicológicos. A psicologia empírica oferece também um conhecimento sobre hábitos e faculdades da mente. Isto inclui um conhecimento explicativo geral sobre por que e como a mente se comporta de determinadas maneiras em certos estados. [...] Se pode também dizer que Wolff na psicologia racional busca especificar os fundamentos da possibilidade de todos os esclarecimentos especiais da psicologia empírica. (Sturm, 2009, pp. 58-60 – ênfase no original)

Em poucas palavras, por esta interpretação nos é sugerido que psicologia empírica e racional diferem na medida em que a primeira dedica-se ao conhecimento dos fatos da mente (e à sua explicação geral), enquanto a última dedica-se ao conhecimento do fundamento da possibilidade desses fatos. Apesar de caracterizar esta distinção como metodológica, notamos que a ênfase de Sturm recai aqui, na realidade, sobre as funções epistêmicas desempenhadas por essas disciplinas. Por isso, a entendemos como a tese (7): distinção fundamentada na função epistêmica.

Com isso, tendo em vista os limites e propósitos de nosso estudo, cremos ter o bastante a respeito das diferentes teses sobre a distinção entre psicologia empírica e racional em Wolff. Naturalmente, não descartamos que outras importantes possam ainda ser encontradas na literatura109. Mas, cremos haver recenseado um grupo representativo das teses existentes na literatura secundária. A seguir, faremos a avaliação de cada uma, seguida de uma posição final a respeito da questão.

109 Blackwell (1963), por exemplo, nos sugere que “a doutrina dos juízos intuitivos de Wolff também

lança luz sobre sua distinção entre psicologia empírica e psicologia racional” (p. 343), e afirma que “a transição da psicologia empírica para a racional pode ocorrer porque os princípios estabelecidos através da experiência na psicologia empírica são proposições analíticas” (p. 343). Além de não sabermos o que Blackwell quer dizer exatamente com “lança luz” (i.e., se a doutrina dos juízos mostra a conexão ou, pelo contrário, fundamenta a separação entre as psicologias), a sua devida avaliação pressupõe um exame detido da teoria wolffiana do juízo, o que está para além do escopo do presente estudo.