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CAPÍTULO 1 PERSPECTIVA DO HUMANISMO NO DIREITO

1.5 HUMANISMO NA ESFERA DO DIREITO

1.5.2 Considerações sobre o humanismo na cultura jurídica do Brasil

De forma didática, se procurará situar o humanismo no âmbito da cultura jurídica brasileira a partir da época colonial, percorrendo os tempos do Brasil Império até a República – sem a pretensão, logicamente, de especificar em cada minúcia as etapas desse desenvolvimento histórico.

Marcado pela exploração de matérias-primas e pela mão-de-obra escrava indígena e africana, o período colonial estendeu-se de 1500, ano da chegada dos portugueses, até o desembarque do rei D. João VI e de sua corte no Rio de Janeiro, em 1808. Durante esse tempo, a cultura jurídica brasileira foi caracterizada pela predominância das leis portuguesas, em especial as Ordenações.

Os valores culturais da época são marcados pela ideologia da chamada Contra-Reforma, movimento de oposição à Reforma Protestante patrocinado pela Igreja Católica. No bojo desse movimento merece destaque a atuação dos padres da Companhia de Jesus – os jesuítas. Na expressão de CATEN205, “aos padres jesuítas coube a tarefa de, com o patrocínio dos Reis Católicos ibéricos, rechaçar o Protestantismo206 e fazer cristão-católicas as populações nativas das terras recém-descobertas”. A evangelização dos índios, ainda segundo CATEN207, representou “a imposição de um humanismo que não respeitou o modo de ser indígena”. Tal imposição cultural, obviamente, não se restringiu aos aspectos religiosos, mas abarcou com igual impacto o que se poderia chamar de âmbito jurídico nativo. Em outras palavras, havia certa estrutura jurídica entre os índios, o que é corroborado pelo entendimento de CATEN208 de que “sempre existiu um direito entre os povos sem escrita”. Ao fim e ao cabo, porém, o que prevaleceu foram as leis dos colonizadores, com a conseqüente descaracterização ou desintegração das normas, cultura e costumes indígenas.

A lição é de WOLKMER209:

Toda cultura tem um aspecto normativo, cabendo-lhe delimitar a existencialidade de padrões, regras e valores que institucionalizam modelos de conduta. Cada sociedade

205 CATEN, Odécio Ten. Humanismo e justiça nas missões jesuíticas da América Latina. In: WOLKMER,

Antonio Carlos (Org.). Humanismo e cultura jurídica no Brasil. Florianópolis: Boiteux, 2003. p. 108.

206

Vale lembrar que o Protestantismo se opunha às arbitrariedades da Igreja Católica, ao comportamento imoral dos papas e de parte do clero, e à corrupção que imperava em diversos segmentos sociais.

207 CATEN, op. cit., p. 109. 208 Idem, op. cit., p. 104. 209

WOLKMER, Antonio Carlos. O direito nas sociedades primitivas. In: Fundamentos de história do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 19-20.

esforça-se para assegurar uma determinada ordem social instrumentalizando normas de regulamentação essenciais, capazes de atuar como sistema eficaz de controle social.

As normas impostas aos índios serviram para regular as relações entre colonizadores e nativos, como explica COLAÇO210: “As posturas dos Estados português e brasileiro com relação ao indígena [...] era em normatizar e regularizar as relações de exploração do colonizador em relação aos colonizados”. E mais, a obediência imposta aos índios foi duramente cobrada e em caso de desobediência as penas eram duras. Contribui COLAÇO211:

[...] Quanto à afirmativa dos autores anteriormente citados, de que somente dois padres conseguiram com o “seu amor e sua bondade” manter a paz e obediência a população do interior das missões, não é tão verdadeira, pois os padres não estavam sozinhos nesta tarefa, aliados a eles estavam caciques e os “funcionários” do cabildo, pois todos tinham o mesmo interesse de se manter no poder para manutenção de seu status quo. Montou-se uma estrutura interna de fiscalização, controle e disciplina das populações indígenas, chegando todas as informações do que acontecia nas missões ao cura. Mas, mesmo assim, houve revoltas, fugas e crimes que eram prontamente reprimidos pelos padres.

Desde o início do século XVIII, no entanto, passam a irromper entre os brasileiros focos de descontentamento em relação às amarras impostas pelos portugueses. Com o passar do tempo os movimentos de libertação nacional se multiplicam e organizam, como esclarece NOGARE212: “No final deste século [XVIII] e início do XIX é que encontramos os movimentos sociais mais significativos diante dos ideais de independência política do Brasil. São eles: a Inconfidência Mineira, de 1789; a Revolução Baiana, de 1798; e a Revolução Pernambucana, de 1817”. Em que pese o fracasso de tais revoltas isoladas, elas representaram etapas importantes no caminho que levou à nossa independência política. NOGARE213 ressalta o viés humanista dessa escalada emancipatória:

A emancipação política obtida pelo país [...] seja como conseqüência de fatores objetivos da história seja como conseqüência das ações levadas a efeito pelos movimentos sociais, é um fato humanista em nossa história, pois que ela traz um tipo de autonomia [...]. E todo tipo de autonomia é uma forma de engrandecimento do ser humano na perspectiva de sua realização individual e social.

210

COLAÇO, Thais Luzia. Os “novos” direitos indígenas. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Morato (Orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 76.

211 COLAÇO, Thais Luzia. “Incapacidade” indígena: tutela religioa e violação do direito guarani nas missões

jesuíticas. 1 ed. (ano 2000), 4ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2006, p. 164. 212 NOGARE, op. cit., p. 275.

Com raras exceções, porém, os anseios pela liberdade política não incluíram a noção de liberdade social. Poucos movimentos nacionalistas da época questionaram a chaga da escravatura ou o desprezo absoluto pela cultura indígena. Tendo como prioridade a sobrevivência diária, quase nenhum espaço de contestação restava aos negros e aos índios para pleitear dignidade. São marcas indeléveis de anti-humanismo na história brasileira.

Quer nas escolas jesuíticas portuguesas, quer nas “reduciones” espanholas – cujas ruínas, no Rio Grande do Sul, são Patrimônio Cultural da Humanidade –, foram os padres da Companhia de Jesus214 os grandes responsáveis pela aculturação dos índios brasileiros, sendo também decisiva sua influência na formação de nossa típica família patriarcal. Reforça HERÉDIA215:

Os jesuítas tiveram um triplo papel, além de catequizar os habitantes nativos da terra, tinham a função de ensinar os conhecimentos básicos para as classes dominantes, onde os filhos das elites aprendiam a ler, escrever e contar. [...] Ensinavam nos seminários, moral, filosofia e línguas clássicas. [...] Garantiam às classes privilegiadas, uma educação clássica humanística.

Em que pese seus excessos e a aculturação forçada dos indígenas que levou a cabo, DAL RI JUNIOR reconhece haver “uma presença humanista no jesuitismo colonial, e não apenas nele, porque o prestígio e a utilização dos autores clássicos aparecem em outros autores, que não foram jesuítas nem religiosos”.

É fácil imaginar a importância estratégica de os dominadores negarem autonomia cultural aos dominados, o que ocorreu tanto na relação entre a Metrópole portuguesa e a Colônia quanto na relação interna entre senhores e escravos. Sendo a cultura uma forma de autonomia – e que conduz à liberdade –, negá-la é uma maneira de perpetuar a dominação.

214 Cf. HIRSCHBERGER, Johannes, op. cit., p. 233. “Foram os padres jesuítas os iniciadores da aculturação

brasileira. O primeiro grupo deles veio na comitiva de TOMÉ DE SOUZA, como parte integrante do esquema do povoamento do Brasil, estabelecido em Portugal através do sistema de Governadores Gerais. Desembarcaram no Brasil em 1549. A ação dos padres da Companhia se estendeu ampla e ràpidamente e foi o elemento dominante da educação brasileira até meados do século XVIII, quando sua atividade foi interrompida pela reforma pombalina”. E também importante a colocação de: HERÉDIA, Vania Beatriz Merlotti. A influência do humanismo latino na cultura brasileira: uma visão sociológica. In: Globalização e

humanismo latino. PAVIANI, Jayme; DAL RI JÚNIOR, Arno (Orgs.). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p.

276. “Através da escola, a formação das elites teve início e paralelamente a evangelização das camadas menos privilegiadas também. As ordens religiosas preocuparam-se em fundar instituições educacionais com intuito de promover a educação da população da colônia e ao mesmo tempo formar um quadro de religiosos para continuar a missão. Além da Igreja, outra instituição que desempenhou um papel importante na manutenção desses valores foi a família patriarcal. [...] A aliança igreja, família e escola fortaleceram a padronização da cultura”.

Com a transferência da Corte portuguesa no Brasil, em 1808, fugindo do avanço de Napoleão, a cultura e a educação recebem um poderoso influxo. Não porque D. João VI e a nobreza lisboeta se interessassem em educar os brasileiros, mas porque precisavam urbanizar e refinar minimamente o Rio de Janeiro, nova capital do Império. NOGARE216 enumera alguns desses avanços: “Imprensa Régia (1808); Biblioteca Pública (1810); Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1810); A Gazeta (1812), O Patriota (revista) (1818)”.

Foi deste modo que o Brasil ingressou no ritmo e na ambiência do desenvolvimento cultural europeu, influenciando inescapavelmente o pensamento dos futuros juristas. Embora imposta e sem ligação orgânica com as raízes de nossa formação, tal “transplante” contribuiu positivamente para o desenvolvimento do país.

O período do Brasil Império estendeu-se de 1822, quando o país se tornou politicamente independente, até o advento da República, em 1889. Nossa cultura jurídica, no entanto, seguiu reproduzindo o modelo imperial, caracterizado por um humanismo idealista e jusnaturalista, até a década de 1930.

Outra guinada representativa, já no período republicano, aconteceu entre os anos 1940 e início da década de 1960, quando se adotou um modelo econômico capitalista dependente e desenvolvimentista. O grande personagem desta fase histórica é sem dúvida Getúlio Vargas, intervém na economia e manipula os meios de comunicação através do Estado.

Momento importante em relação à cultura jurídica no Brasil é o da promulgação da Constituição Federal de 1988, caracterizada por importantes avanços no campo social, ampliando os direitos fundamentais do cidadão. Tais direitos vêm sendo rediscutidos pelos estudiosos em prol de uma configuração que inclua os denominados “novos”217

direitos – direitos da criança e do adolescente (enquanto sujeito-cidadão), dos idosos, do consumidor, direito ambiental e os direitos virtuais na sociedade globalizada de informação, dentre outros.

216 NOGARE, op. cit., p. 284. 217

Ver mais em: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato. Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003.

Assim à formação histórica de nossa cultura jurídica evoluiu o conceito de humanismo no Brasil, até as atuais considerações acerca do tema. Parte-se de PAVIANI218, para quem “o conceito de humanismo pressupõe uma concepção do humano como centro da vida, das relações de produção e de comunicação, das relações entre os indivíduos e as sociedades”. O mesmo PAVIANI219

acrescenta, por outro lado, que “não se trata apenas do humano como valor, mas do humano como realidade ético-ontológica. O humano não é um adjetivo, uma qualidade, mas o modo fundamental de existir no mundo”.

Outro fator a ser destacado no humanismo brasileiro se liga à educação. Sobre o tema, BOMBASSARO220 destaca dois nomes: “Quando se trata de pensar o humanismo no Brasil [...] importantes as reflexões de Anísio Teixeira sobre a questão da educação e da ciência apresentadas por Sérgio Paulo Rouanet”. Na mesma perspectiva, mas já no âmbito jurídico, outros autores se propuseram a interpelar o Direito a partir do humanismo, na tentativa de operacionalizar uma prática e uma elaboração teórica estimuladoras da ruptura com a tradição legalista. Entende-se possível, a partir desses parâmetros, pautar o ensino jurídico por uma visão humanista, vinculada à transformação social, de modo a atender às necessidades humanas.

Integrando o universo da educação superior e dada a complexidade do mundo atual, os cursos de Direito precisam, a partir de sua competência técnica, propor soluções desde um enfoque interdisciplinar e que direcione o ensino numa perspectiva humanista cuja essência é o homem.

218 PAVIANI, Jayme; DAL RI JUNIOR, Arno (Orgs.). Globalização e humanismo latino. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 2000. p. 26-27.

219

Idem, p. 27.