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CAPÍTULO 2 ENSINO DO DIREITO DO BRASIL

2.4 DESUMANIZAÇÃO DO ENSINO E SEUS EFEITOS NA PRÁTICA

2.4.1 Educação e seu papel

2.4.1.2 Perfil docente no ensino do Direito

Desde seus primórdios354, a estrutura do ensino superior brasileiro privilegiou, de acordo com MASETTO355, “a crença de que quem sabe, sabe ensinar”. Isso equivale a afirmar que o essencial na atividade docente é que o professor tenha conhecimento na sua área de atuação e experiência profissional. Tal quadro se manteve mais ou menos inalterado até a década de 1970, mesmo já existindo universidades no Brasil que, nas palavras no mesmo autor356, “exigiam do candidato a professor do ensino superior o bacharelado e o exercício competente de sua profissão”. A partir dessa época a exigência ampliou-se: o candidato a professor precisava ter especialização na área da disciplina que lecionaria. Hoje a exigência inclui o mestrado e o doutorado, permanecendo os requisitos de conhecimento na área e experiência profissional.

Neste sentido COLAÇO357 contribui:

O único requisito legal para a docência do ensino do Direito no Brasil é a posse de diploma de graduação expedido por cruso superior em que se ministre matéria indêntica ou afim. No processo de seleção ou de contratação dos professores do ensino superior, raramente se observa sua habilidade didática ou se exige comprovação de uma capacitação didático-pedagógica. Atualmente, as instituições de ensino superior estão exigindo o título de doutor nos concursos públicos para professor efetivo, no entanto não há obrigatoriedade de comprovação de uma capacitação pedagógica.

No final do século XX, a questão do perfil docente do ensino358 do Direito ingressou na ordem do dia dos debates, o que não significa dizer que existe uma crise pedagógica, no que enfatiza ANDRADE359,

354 Sobre a capacitação docente entre os anos de 1827-1883 lembra Alberto Venâncio Filho: “O ofício de

professor era uma atividade auxiliar no quadro do trabalho profissional. A política, a magistratura, a advocacia, representavam para os professores, na maioria dos casos, a função principal. E aqueles que a ela só se dedicavam por vocação ou por desinteresse de outras atividades sofriam na própria carne a conseqüência de sua imprevidência”. In: VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 119

355

MASETTO, Marcos Tarciso. Competência pedagógica do professor universitário. São Paulo: Summus, 2003, p. 11.

356 Idem, p. 12.

357 COLAÇO, Thais Luzia. Aprendendo a ensinar direito o Direito. COLAÇO, Thais Luzia (Org.)

Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 21.

358 Sobre ensino do Direito, ver: ADEODATO, João Maurício. Ensino jurídico e capacitação docente;

AGUIAR, Roberto A. R. de. A contemporaneidade e o perfil do advogado; BASTOS, Aurélio Wander. O

novo currículo e as tendências do ensino jurídico no Brasil e BEZERRA, Francisco Otávio de Miranda. Ensino jurídico: momentos históricos e propostas para uma nova realidade.

[..] mas sim de ruptura com o ensino jurídico alheio à realidade social, a qual transcende a mudança curricular. […] E em virtude desta redefinição da concepção de ensino jurídico é que se começa a entender o Direito não só como instrumento de mecanismo de mudança social, mas também como um instrumento para alcançá-la. É imperioso transcender os muros da universidade assim como a produção e socialização do conhecimento, adstrita até então às universidades – que não são mais as únicas instâncias de produção e de divulgação do conhecimento. Dentre os novos espaços de divulgação se alinha, por exemplo, a Internet.

Diante desta rápida socialização do conhecimento, a universidade atravessa um momento de mudanças, tendo pela frente o desafio de adaptar-se às novas tecnologias. O docente deixou de ser apenas um transmissor de informação. Para MASETTO, o papel “de professor como apenas repassador de informação atualizada está no seu limite”. O aluno está se atualizando na mesma velocidade do professor – e até mais rapidamente que ele. Destarte, o papel do docente do século XXI está se modificando e exigindo novo perfil.

Repassar ou transmitir conhecimento ao aluno do ensino superior exige novas configurações, que incluam aulas mais democráticas e menos técnicas, além de ênfase na ética, na afetividade e nas necessidades sociais. A sociedade atual exige não apenas formação técnico-profissional, mas novas competências e habilidades dos egressos.

A falta de profissionais do ensino do Direito precisa ser vista com mais atenção, pois o descaso com o ensino não pode mais prevalecer. COLAÇO360 enfatiza:

A maioria dos educadores do do ensino do Direito são amadores e não profissionais aprendem a ensinar ensinando, com a experência do dia-a-dia em sala de aula, absorvendo e reproduzindo o que deu certo e rechaçando o que deu errado. Esta situação da falta de domínio das técnicas de ensino e da falta de conhecimento das teorias da educação causa uma perda de tempo de tentativas de acertos e erros que poderiam ser evitados.

Muitos aspectos do ensino jurídico e do perfil docente devem, portanto, ser revistos e adequados ao multiforme mosaico social de raças, etnias, culturas e crenças que caracteriza a contemporaneidade, a exigir respostas a expectativas e necessidades igualmente plurais, tendo por meta final a cidadania emancipatória.

Ao analisar especificamente o perfil docente para o ensino do Direito, constatamos que a maioria dos professores vem de uma trajetória profissional como

advogado, promotor de justiça, juiz, delegado estadual ou federal, procurador e desembargador. Salvo exceções, falta-lhes formação pedagógica361 para o magistério, sem falar na obrigação de seguir em sala de aula a ementa de uma disciplina no transcurso do semestre. Em outras palavras, o professor recebe uma ementa pronta e terá que trabalhar com ela. Na prática este docente pode apenas organizar o seu plano de ensino e/ou plano de aula.

A experiência desta autora evidencia que os alunos – pelo menos no curso de Direito em que leciona – preferem professores que exerçam a judicatura ou sejam representantes do Ministério Público. Tanto é que são estes os mais freqüentemente homenageados nas designações utilizadas pela academia: paraninfo, patrono, nome e amigo da turma. Raramente a honraria recai, por exemplo, sobre um advogado ou um professor de carreira. Esse endeusamento por parte dos discentes em relação a determinados operadores jurídicos pode ter suas raízes no caráter marcadamente formalista de nossos cursos jurídicos. Como resposta, tais docentes tendem a se comprometer com mais afinco ao curso – o que se perceberá nas suas atitudes em sala de aula, podendo tanto externar uma postura dogmática, formal e tecnicista quanto um perfil mais flexível e uma perspectiva humanista. Obviamente, a postura do professor influenciará seus alunos para além da academia, com repercussões na sua vida profissional.

TEIXEIRA362 exemplifica com a figura do médico:

Sobressai sempre o estilo pessoal do médico, a sua originalidade e o seu poder criador. A ciência, aliás, longe de mecanizar o artista ou o profissional, arma a sua imaginação com os instrumentos e recursos necessários para seus maiores vôos e audácias.

Interessante pesquisa foi realizada na dissertação de mestrado da professora Alzira Buse Fernandez, onde ela destaca um professor-modelo identificado por meio de entrevistas com os alunos. Um dos estudantes afirmou que

Influência forte maior que tenho é a do professor Glauco. [...] Ele tem segurança, além de uma fala coerente e uma empatia com os alunos. É muito direto e sincero e aí depende do interesse do aluno. O aluno tem que conseguir sentir isso no

361 Por formação pedagógica entende-se a graduação dentro das licenciaturas, especialização ou pós-graduação.

Preferencialmente que desperte no futuro profissional (professor) a crítica e a reflexão.

“Por formação pedagógica entende-se o processo de apropriação de recursos didático-pedagógicos que auxiliam e facilitam a atuação do professor em sala de aula no ensino superior.” Ver mais em FERNANDEZ, Alzira Buse. Professores bem sucedidos no ensino superior: um estudo sobre professores sem formação pedagógica formal. São Paulo, 2007, 124 p. Dissertação. (Psicologia da educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC. p. 46.

362

TEIXEIRA, Anísio. Ciência e arte de educar. Educação e ciências sociais. v. 2, n. 5, ago. 1957, p. 10. Disponível em: <http://www.prossiga.br/anisioteixeira/artigos/ciencia.html>. Acesso em: 03 set. 2004.

professor. Ele sempre esta do lado do aluno. Além do conhecimento profundo que tem na área. Ele foi a maior influência que eu já tive até hoje363.

Um docente que preza a técnica364, por exemplo, imprimirá em seus alunos o gosto e a relevância pela prática profissional, o mesmo acontecendo com um professor dogmático365 ou um formalista366. Tal constatação não traduz exatamente uma crítica à dogmática, à técnica e ao ensino formal – até porque são aspectos indissociáveis da atuação jurídica –, mas à postura dogmática, técnica ou formalista da pessoa do docente.

WOLKMER367 enfatiza:

O conhecimento, a produção e o discurso jurídico predominantes no Brasil, normalmente calcados na lógica da racionalidade técnico-formal e nos pressupostos dogmáticos do cientificismo positivista não respondem mais com eficácia às necessidades da etapa de desenvolvimento socioeconômico e dos parâmetros de evolução das instituições políticas da sociedade brasileira. Tampouco tal modelo jurídico condiz com a tradição de um humanismo autêntico368.

Rediscutir ou reconstruir o ensino jurídico brasileiro passa necessariamente pela formatação de um novo perfil docente e de sua adequação à disciplina e ao curso onde se insere.

Obviamente não é possível desprezar as características pessoais do docente – suas dúvidas, medos, angústias, alegrias, sonhos, preferências, valores ou problemas pessoais – e imaginar que, positivas ou negativas, suas emoções não restem transmitidas aos seus alunos. Isto tanto é verdade quanto é verdadeiro o fato de que, ao transmitir seus conhecimentos, o professor deve ter habilidade e sensibilidade para instigar no discente a potencialização das suas próprias capacidades. Referindo-se à condição de incompletude ou

363 FERNANDEZ, Alzira Buse. Professores bem-sucedidos no ensino superior: um estudo sobre professores sem

formação pedagógica formal. São Paulo, 2007, 124 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Educação). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC. p. 84.

364 Entende-se por “técnica”, no presente contexto, a preocupação do professor em salientar de forma

contundente a prática jurídica e seus resultados.

365 Por professor dogmático se entende aquele que é autoritário e impõe suas idéias. 366

Por professor formalista, no presente estudo, entende-se aquele que preza por seguir as formalidades da lei. “Formal. [Do lat. formale.]. Adj.[...] 4. Que não é espontâneo; que se atém às fórmulas estabelecidas; convencional. 5. Que é amigo de formalidades, de etiquetas, formalista. 6. Filos. Relativo às leis, às regras ou à linguagem próprias de determinado domínio do conhecimento, e que se consideram independentemente do conteúdo, da matéria ou da situação concreta a que se aplicam. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.

Novo dicionário da língua portuguesa. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Positiva, 2004.

367 WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. Revista e atualizada. Rio de Janeiro:

Forense, 2001. p. 140.

368

Entende-se por humanismo autêntico aquele que privilegia a dignidade, a liberdade e justiça na vida das pessoas.

de permanente vir-a-ser que caracteriza o homem, afirma FREIRE369: “Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento”. Não há, assim, como separar o ser humano do docente – são um só.

Na prática da sala de aula, tanto no que tange aos conhecimentos quanto no que se refere à condição de ser humano com as imperfeições que lhe são inerentes, o professor deve emprestar o melhor de si à tarefa de educar. Para tanto são essenciais a coerência, a criatividade, a criticidade e a maturidade – qualidades que precisam ser diariamente reinventadas para que as aulas representem de fato um momento de prazer, aprendizado e compromisso com os valores sociais.

Revestida do senso da humanização, a relação professor-aluno tem como pressuposto, efetivado por meio do diálogo, o desenvolvimento de uma docência emancipatória370 e de uma cidadania plural. Enfatiza TEIXEIRA371 a interligação do processo de ensinar com a própria vida:

É que o processo educativo se identifica com um processo de vida, não tendo outro fim [...] senão o próprio crescimento do indivíduo, entendido êsse crescimento como um acréscimo, um refinamento ou uma modificação no seu comportamento como ser humano. [...] A sua participação na elaboração dêsses objetivos não é privilégio, mas a conseqüência de ser, naquele processo educativo, o participante mais experimentado, e esperemos mais sábio.

Embora seja inegável a importância da formação pedagógica docente no ensino jurídico, a relevância das considerações do professor independe dela – pois se revestem (ou deveriam revestir-se) de princípios críticos e éticos, da preocupação com o humano e da invenção372 e reinvenção de novos e melhores paradigmas. Também é

369

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 50.

370 Entende-se por docência emancipatória a docência que liberta o oprimido das garras do opressor e lhe

confere liberdade para expor suas idéias, criticar e transformar a realidade opressora. É o que aduz Paulo Freire: “A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”. FREIRE, Paulo.

Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 46.

371 TEIXEIRA, Anísio. Ciência e arte de educar. Educação e Ciências Sociais. v. 2, n.5, ago. 1957, p.10.

Disponível em: < http://www.prossiga.br/anisioteixeira/artigos/ciencia.html>. Acesso em: 03 set. 2004.

372 “A invenção da existência envolve, [...] necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis

mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida, a „espiritualização‟ do mundo, a possibilidade de embelezar como de enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Capazes de interferir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e indignidade. [...] No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o mundo, [...] na medida em que se foram habilitando a intelegir o mundo e criaram por

verdadeiro que, mesmo sem qualificação pedagógica formal, muitos professores são bem- sucedidos na sala de aula, lecionando com prazer, bom senso, amor, respeito e afetividade, imbuídos de humanismo e comprometidos com os alunos e o curso.

FREIRE373 assevera que, sendo “a luta [...] uma categoria histórica, [há que] reinventar a forma também histórica de lutar”. Os professores universitários estão experimentando um momento de conscientização acerca da importância da capacitação docente e de que ser professor – a lição é de MASETTO374 – “exige capacitação própria e específica que não se restringe a ter um diploma de bacharel, ou mesmo de mestre ou doutor, ou ainda apenas o exercício de uma profissão. Exige isso tudo, e competência pedagógica, pois ele é um educador”.