• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 ENSINO DO DIREITO DO BRASIL

2.4 DESUMANIZAÇÃO DO ENSINO E SEUS EFEITOS NA PRÁTICA

2.4.1 Educação e seu papel

2.4.1.3 Perfil do egresso nos termos da Resolução CNE/CES nº 09/2004

Buscar-se-á agora priorizar o perfil do formando delineado no artigo 3º375 da Resolução CNE/CES nº 09/04, que exige, entre outras coisas, sólida formação geral, humanística e axiológica, visão crítica e postura reflexiva.

Inicialmente, cumpriria às IES se perguntar sobre qual profissional pretendem formar. Que curso ter-se-á nos próximos dez, vinte anos? Sem respostas claras e objetivas para estas questões não há como se falar seriamente em diretrizes curriculares voltadas à qualidade do ensino e à formação de profissionais aptos.

Determina a Resolução CNE/CES nº 09/04 que a organização do curso de Direito deve se expressar através do projeto pedagógico, do perfil do formando, competências conseqüência a necessária comunicabilidade do intelegido, já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e a indignidade, entre a decência e o despudor, entre a boniteza e a feiúra do mundo. [...] Já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política”. Ver mais em FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 52.

373

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. Terra, 2005. p. 68.

374 MASETTO, Marcos Tarcísio. Competência pedagógica do professor universitário. São Paulo: Summus,

2003. p. 13.

375

A Resolução CNE/CES nº 09, de 29 de dezembro de 2004, artigo 3º. “O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do formando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e de terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania”.

e habilidades, conteúdos curriculares, estágio supervisionado, atividades complementares, sistema de avaliação, trabalho de curso obrigatório, regime de oferta e duração do curso. No presente estudo serão priorizadas as competências e habilidades, o estágio curricular supervisionado, as atividades complementares e o trabalho de curso obrigatório.

A grande novidade das diretrizes curriculares da graduação em Direito é que não trata mais das matérias da organização curricular, mas do conteúdo. O curso deverá propiciar ao futuro profissional, no mínimo, as oito habilidades e competências descritas no Artigo 4º376 da Resolução CNE/CES nº 09/04. Os incisos I, II, III, V e VI do referido artigo tratam da hermenêutica; o inciso IV aborda o estágio, mencionando a “adequada atuação técnico-jurídica [...] com a devida utilização de processos, atos e procedimentos”; o inciso VII refere-se ao “julgamento e tomada de decisões” que o futuro profissional há de saber realizar; o inciso VIII relaciona-se ao “domínio de tecnologias e métodos”, mencionando conhecimento de informática, metodologia da pesquisa e hermenêutica.

Sem aprofundar-se tecnicamente no assunto, deduz-se que habilidades e competências envolvem capacidade intelectual, psicológica e técnica. Pergunta-se: os professores estão preparados para desenvolver nos estudantes tais requisitos? As IES devem investir na capacitação dos docentes de forma a prepará-los para o contexto delineado pela Resolução CNE/CES nº 09/04.

A organização curricular a ser contemplada tanto no projeto político- pedagógico quanto na graduação em Direito divide-se em três eixos interligados:

1) Eixo de Formação Fundamental, que trata da interdisciplinaridade entre áreas do conhecimento e da base da formação – como a formação do cidadão;

2) Eixo de Formação Profissional, com a preocupação de que o discente compreenda a evolução do Direito, sua aplicação e os conteúdos essenciais da área, de forma

376 Resolução CNE/CES nº 09 de 29 de dezembro de 2004. Artigo 4º. “O curso de graduação em Direito deverá

possibilitar a formação profissional que revele, pelo menos, as seguintes habilidades e competências:

I – leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos ou normativos, com a devida utilização das normas técnico-jurídicas;

II – interpretação e aplicação do Direito;

III – pesquisa e utilização da legislação, da jurisprudência, da doutrina e de outras fontes do Direito;

IV – adequada atuação técnico-jurídica, em diferentes instâncias, administrativas ou judiciais, com a devida utilização de processos, atos e procedimentos;

V – correta utilização da terminologia jurídica ou da Ciência do Direito;

VI – utilização do raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica; VII – julgamento e tomada de decisões; e

a aplicar tais conhecimentos nas mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais do país, incluindo as relações internacionais; e

3) Eixo de Formação Prática, onde devem ser desenvolvidos os conteúdos dos eixos 1 e 2, especialmente no estágio curricular e nas atividades complementares.

A questão do estágio será aprofundada no capítulo 3 do presente estudo. Já as atividades complementares incluem ensino, pesquisa e extensão. As IES devem incentivar a prática de tais atividades através de seminários, simpósios, palestras, atendimento à comunidade e demais iniciativas que colaborem para o enriquecimento do perfil do formando, inclusive fora do ambiente acadêmico, “incluindo a prática de estudos e atividades independentes, transversais, opcionais, de interdisciplinaridade, especialmente nas relações com o mercado de trabalho e com as ações de extensão junto à comunidade”.377

Exemplo digno de menção é o da Universidade do Planalto Catarinense (UNIPLAC), que vem desenvolvendo um projeto de extensão permanente junto à comunidade carente da região, com atendimento jurídico gratuito, ajuizamento de ações e palestras realizadas pelos acadêmicos sobre direitos fundamentais do cidadão. A participação dos discentes é voluntária, validando-se a carga horária como atividade complementar.

As diretrizes esclarecem que o estágio e o trabalho de curso são atividades distintas e não devem ser confundidas com atividades complementares. Compete à IES usar de criatividade no sentido de implementar, desenvolver e avaliar as atividades complementares realizadas fora do âmbito acadêmico.

O trabalho de curso foi motivo de acirrados debates antes de instituídas as diretrizes curriculares do curso de graduação em Direito, sendo reivindicação de muitos discentes de que não fosse obrigatório. Não obstante, as novas diretrizes estabelecem a obrigatoriedade, além do requisito de que seja desenvolvido individualmente. Há flexibilidade, porém, no que se refere à instrumentalização do trabalho de curso, que pode ser realizado ou não através de monografia, como pode ou não ser apresentado em banca – o critério é da própria IES, que deve contar com uma regulamentação própria disciplinando o conteúdo, os procedimentos, a forma de avaliação e a metodologia do trabalho de curso.

377

Resolução CNE/ CES nº 09 de 29 de dezembro de 2004. Artigo 8º. “As atividades complementares são componentes curriculares enriquecedores e complementadores do perfil do formando, possibilitam o reconhecimento, por avaliação de habilidades, conhecimento e competência do aluno, inclusive adquirida fora do ambiente acadêmico, incluindo a prática de estudos e atividades independentes, transversais, opcionais, de interdisciplinaridade, especialmente nas relações com o mercado de trabalho e com as ações de extensão junto à comunidade”.

É positiva para o aluno, data venia, a obrigatoriedade do trabalho de curso, pois implica – desde que bem conduzido pela instituição – um momento de importante produção científica por parte do estudante, que só benefícios lhe acarreta.

Já a obrigatoriedade da monografia suscita outra reflexão. Mesmo em se tratando de produção científica e acadêmica – ao lado da dissertação de mestrado e da tese de doutorado – é preciso ter em conta que muitos alunos não construirão seu futuro profissional na academia, preferindo as carreiras públicas e a advocacia. Se para alguns, portanto, redigir uma monografia representa o despertar ou o primeiro degrau da carreira acadêmica, para a maioria se configura em imposição desnecessária, já que estes alunos nunca mais se dedicarão a semelhante mister em sua trajetória profissional. Registra JUNQUEIRA:378

Quando solicitamos aos estudantes uma monografia, estamos obrigando o aluno – e aqui volto a repetir, a maioria vai advogar ou exercer um emprego público na área jurídica – a escrever o único trabalho de toda a sua vida. Muito mais adequado e útil seria tornar a monografia uma oportunidade para que o aluno elaborasse um parecer substantivo sobre um tema jurídico.

Talvez fosse o caso de os dirigentes dos cursos de Direito pensarem em uma alternativa para estes alunos, como a do parecer sugerido pela autora acima.

O que os cursos jurídicos precisam definir é o perfil do profissional que pretendem formar. Por outo lado, o orientador de monografia de graduação em Direito padece duplamente em sua tarefa. Primeiro porque na maioria das vezes o orientador é um advogado, juiz ou membro do Ministério Público e nunca escreveu uma monografia – leciona num curso de Direito, mas não pertence ao ambiente acadêmico. E depois porque o orientador não consegue falar “a mesma linguagem” do aluno – o qual está acostumado com um tipo de redação e de repente vê-se às voltas com as exigências de um texto científico. Eis o entendimento de JUNQUEIRA379:

Ao aluno, só cabe ficar profundamente confuso por receber duas mensagens totalmente distintas e contrárias entre si: de um lado (na sua vida profissional), aprende a escrever parágrafos curtos, em que uma idéia apenas é trabalhada; de outro (na sala de aula), aprende que um parágrafo dever ser um conjunto de idéias articuladas e desenvolvidas; de um lado, aprende a utilizar o argumento de autoridade do „ilustre professor‟ e „grande mestre‟, de outro, vê essas fórmulas serem arduamente criticadas.

378 JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Faculdades de direito ou fábricas de ilusões? Rio de Janeiro: IDES: Letra

Capital, 1999. p. 34.

A realidade de muitos cursos de Direito brasileiros, especialmente no caso das IES particulares, é que seus docentes não são de fato acadêmicos, mas profissionais da área jurídica cuja maior preocupação não está na formação acadêmica, mas na transmissão do conhecimento teórico e prático que a profissão lhes proporcionou.

Se o foco da IES se direcionar à formação de profissionais do Direito, e não à formação de profissionais para atividades jurídicas, será inevitável romper com vários paradigmas pontuais que não respondem mais às necessidades discentes. A principal mudança há de ser no método da aprendizagem e deve envolver docentes e discentes na busca do mesmo objetivo. O professor precisa participar efetivamente da construção do conhecimento e incentivar a criatividade do aluno. As aulas necessitam ser reorganizadas e redimensionadas, abandonando a mera interpretação do texto legal – o que redunda na ilusão do aprendizado – e levando o estudante a pensar.

A meta é unir formação crítica e científica na compreensão do mundo jurídico e da sociedade em que os futuros bacharéis estarão inseridos, deixando de formar apenas técnicos “robotizados” para formar seres humanos integrais, capazes de atuar com ética em sua profissão. Que se preocupem, em suma, com o acesso efetivo à Justiça e com a realização da dignidade do ser humano. Eis a importância fulcral da formação humanística, mormente no contexto jurídico.