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CAPÍTULO 2 ENSINO DO DIREITO DO BRASIL

2.1 RESGATE HISTÓRICO DO ENSINO DO DIREITO NO BRASIL

2.1.2 Perfil do egresso do curso de Direito na República Nova

As duas primeiras décadas da República são marcadas por uma crise na educação. Diz RODRIGUES: “O modelo até então existente, que dava ênfase à formação das elites, foi colocado em xeque. Em seu lugar propunha-se a instituição de um sistema nacional de educação [...] formando um todo articulado”.259

A manutenção de grande parte do status quo imperial na República Velha levou à frustração dos ideais republicanos260 mais autênticos e foi um dos fatores que contribuíram para a Revolução de 1930 e as mudanças que veio a desencadear, inclusive no terreno educacional. A Constituição de 1934 contemplou importantes avanços na educação brasileira, conforme sintetiza PILLETI: “a) gratuidade e obrigatoriedade do ensino do 1º grau; b) direito de todos à educação; liberdade de ensino; obrigação do estado e da família no tocante à educação; e c) ensino religioso de caráter multiconfessional”.261

O mesmo autor

relaciona ainda as competências educacionais no período da República Velha, afirmando que “continuou a dualidade de sistemas herdados do ato adicional de 1834, e consagrada na Constituição de 1891: a) sistema federal: ensino das elites (secundário e superior); b) sistemas estaduais: educação popular (primário e profissional)”.262

Até 1930, várias reformas foram realizadas no ensino superior, inclusive e especialmente no ensino do Direito, mas nenhuma alterou a estrutura do antigo modelo. Importantes intelectuais, políticos e literatos daquele período receberam formação jurídica, mas não se cuidava de formar profissionais do Direito – e os reflexos de tal realidade são perceptíveis ainda hoje. A forma de ensinar ainda é basicamente a mesma dos tempos do

259 Idem, p. 62.

260 Ideais republicanos: “Federação, democracia, convivência social, progresso econômico, independência

cultural”. Idem, ibidem, p. 68.

261

PILLETI, Nelson. História da educação no Brasil. Rio de Janeiro: Ática, 2000. p. 68.

Império: o professor fala e o aluno escuta, decora e, se tem sucesso nesse armazenamento mecânico de informações truncadas, será aprovado e receberá o diploma de bacharel.

Ao longo dos séculos, em todo o mundo, as escolas de Direito vêm formando operadores do Direito com a visão do positivismo jurídico. A valorização deste ensinamento técnico-dogmático tem conseqüências pontuais, especialmente em relação à crise paradigmática vivenciada pela sociedade contemporânea, preocupada com a celeridade processual, a efetividade do processo, o acesso à Justiça e a efetiva concretização da dignidade do ser humano. A lição é de SCAFF263:

A supervalorização do ensino dogmático frente ao zetético demonstra que tipo de profissional as Escolas de Direito estão lançando no mercado. Faço observar que não estou mencionado disciplinas dogmáticas x disciplinas zetéticas. Minha observação é muito mais de conteúdo que de forma. É plenamente possível se ministrar aulas de Direito Civil sem se vincular a um dogmatismo. [...] O que usualmente se encontra em nossas Escolas de Direito não é um curso, mas pelo menos dois. O primeiro, quando as disciplinas zetéticas são ensinadas: Filosofia, Sociologia, História, Teoria Geral do Direito etc., e outro curso, quando introduzidas as disciplinas dogmáticas, como Direito Penal, Civil, Comercial etc. Dá que os meninos e meninas que ingressam nessas Escolas, usualmente tomados de uma ira santa de modificar o mundo, são transformados em meros decoradores de artigos e parágrafos, sem nenhuma conexão com aquele desejo inicial de transformar a realidade posta e imposta.

Nesta perspectiva, faz-se necessária uma reflexão histórica, ainda que singela, sobre a realidade acima explicitada. Como ponto de partida é importante resgatar a importância da História do Direito enquanto disciplina formativa dos futuros juristas. Nas palavras de HESPANHA264:

Muito se tem escrito sobre a importância da história do direito na formação dos juristas. Que ela serve para a interpretação do direito actual; que permite a identificação de valores jurídicos que duram no tempo (ou, talvez mesmo, valores jurídicos de sempre, naturais); que desenvolve a sensibilidade jurídica; que alarga os horizontes culturais dos juristas. [...] A opinião adoptada neste curso é a de que a história do direito é, de facto, um saber formativo; mas de uma maneira que é diferente daquela em que o são a maioria das disciplinas dogmáticas que constituem os cursos jurídicos.

263 SCAFF, Fernando Facury. Ensino jurídico: o controle público e social da atividade educacional, OAB

recomenda: Um retrato dos cursos jurídicos. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2001. p. 64. Diz ainda: “Deixamos sua ira santa, seu desejo de transformar a sociedade, ir pelo ralo das ilusões, e colocamos no mercado profissionais que estão muito mais voltados para a perseguição do lucro pessoal e a genuflexão aos clientes públicos e privados que desejam encontrar alternativas para escapar da aplicação do Direito. Acabam por ser meros repetidores do status quo ao invés de trabalharem para a ultrapassagem de paradigmas velhos e descabidos, que não mais condizem com nossa realidade”.

264

HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia – Síntese de um milênio. Portugal: Europa- América, 2003. p. 15.

Usando tal enfoque como argumento de discussão, depreende-se ser comum entre os juristas o entendimento de que a disciplina de História do Direito é formativa. Mas o porquê desta afirmação nem sempre é declarado. A questão é que tal disciplina é de saber formativo, mas não da mesma forma que as demais disciplinas dogmáticas. HESPANHA265 observa que as “disciplinas dogmáticas visam criar certezas acerca do direito vigente, a missão do direito, por outro lado, é antes a de problematizar o pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou seja, o de que o direito de nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo”. A própria história enfatiza que o Direito existe num dado contexto, numa determinada sociedade.

Para que a disciplina cumpra seu papel no meio acadêmico é preciso que seja estudada de maneira a se impor por sua essência – que é a crítica –, levando os estudantes a conhecer o porquê da História do Direito e a reinterpretá-la conforme a época analisada. Noutras palavras, o passado tem que ser compreendido no passado.

Nesta óptica, não é possível reinterpretar os conceitos – como o da lei, por exemplo – da forma como são entendidos hoje e simplesmente jogá-los na história. Este seria um saber precário, mas tal prática tem sido costumeiramente adotada pelas escolas de Direito. Alerta HESPANHA266 que “a história do direito não pode ser feita de qualquer maneira. Pois, sem que se afine adequadamente a sua metodologia, a história jurídica pode sustentar – e tem sustentado – diferentes discursos sobre o direito”. Infelizmente, no entanto, a História do Direito é repassada muitas vezes de forma enfadonha e acrítica, não despertando interesse algum nos acadêmicos, que terminam por classificá-la como aborrecida e sem importância na prática profissional – o que revela a inadequação do método de ensino da disciplina.

Realizada tal reflexão, adentremos no âmbito da Revolução de 1930 e vejamos de que maneira este momento histórico afetou o ensino do Direito.

Uma das providências mais importantes do novo governo foi a criação do Ministério da Educação, que centralizou fortemente as decisões e terminou por emperrar o sistema educacional, desviando-se do foco principal – o da formação do ser humano, com vistas à cidadania. Um fato positivo, no entanto, ocorreu em 1931, quando “através do

265

Op. cit., p. 15.

Decreto nº 19.851 [...] foram promulgados os Estatutos das Universidades Brasileiras. [...] Começaram a ser criadas e a funcionar, de fato, as universidades brasileiras”.267

Com o golpe de Estado de 1937 e a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas, que se converte em ditador, inúmeras reviravoltas e mudanças se sucedem no terreno político e legislativo, mas foi um período de estagnação no ensino do Direito. Um dos poucos destaques é a disciplina do Direito Público Constitucional, que conforme VENANCIO FILHO268 se dividiu em duas:

Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, através do Decreto-lei 2.639, de 27 de setembro de 1940, [...] que tinha um objetivo definido, o de permitir que o Direito Constitucional fosse ensinado por professores ligados ao regime autoritário de 1937, e, portanto, capazes de transmitir os seus princípios de teorias. Entretanto, o fato não pode ser examinado parcialmente, e a ênfase dada ao estudo do Direito Público representou uma tímida tentativa de contrabalançar o caráter preponderantemente privatista dos nossos cursos jurídicos.

Após 1937, o curso de Direito “adquiriu uma vocação conservadora e, restaurando o Direito Romano, [...] se não perdeu a sua expectativa científica, perdeu a sua vocação modernizadora, que ficou esvaziada, pelo menos em tese, na sua proposta profissionalizante”.269

Destaca-se ainda a vinda da Itália de dois professores para o Brasil neste período, os quais “influenciaram o ensino e a pesquisa jurídica, que são Túlio Ascarelli (influenciou o aparecimento dos estudos científicos do Direito Tributário) e Enrico Liebman (contribui de forma ponderável para o que tem sido chamado „escola Paulista de Direito Processual‟)”.270

Com o final da Segunda Guerra e a queda de Getúlio Vargas é promulgada da Constituição de 1946, restabelecendo o regime democrático no país – e, com ele, a independência do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, a autonomia dos estados da Federação e a garantia dos direitos civis. No que tange ao ensino, porém, continuou vigorando a legislação do Estado Novo, que se manteve até 1961. A Constituição de 1946 inseriu o inciso VII no artigo 166, garantindo a liberdade de cátedra e permitindo aos professores mais liberdade para ensinar. Também “reintroduziu princípios que haviam sido suprimidos pela

267 Idem, ibidem, p. 79.

268 VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de ensino jurídico no Brasil.

Perspectiva: São Paulo: 1977. p. 310.

269

BASTOS, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. p. 219.

Carta ditatorial de 1937”271

, entre eles o “da educação como direito de todos”272, de grande importância social.

A seguir se realizará um recorte das normas referentes ao ensino superior, no que tange especificamente ao campo do Direito, a partir da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.