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CAPÍTULO 1 PERSPECTIVA DO HUMANISMO NO DIREITO

1.5 HUMANISMO NA ESFERA DO DIREITO

1.5.1 Trajetória do humanismo jurídico

Relembrar algumas reflexões de estudiosos do humanismo constitui importante aporte teórico sobre o tema. Afinal, como aponta PAVIANI190, no aspecto geral de um conceito é possível ler a realidade:

Podemos afirmar que todos os homens são iguais e são sujeitos dos mesmos direitos e deveres fundamentais. [...] Disso tudo, decorrem características que pertencem ao

189 PAVIANI, op. cit., p. 27. 190

PAVIANI, Jayme. O humanismo latino no processo de globalização. In: Globalização e humanismo latino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 26-27.

humanismo em geral, dentre elas os direitos à vida, à educação básica, à moradia, ao trabalho, à liberdade de expressão, à recusa à violência etc.

Por outro lado, um conceito mais específico e autêntico do humanismo seria, como expressa PAVIANI, “liberto” dos vícios da metafísica.191

Vele destacar que não se cogita, ensina WOLKMER, de “humanismo caracterizado somente de princípios abstratos, mas sim de um humanismo autêntico”.192

Ainda conforme o autor, seria um “humanismo concreto, autêntico e emancipador, almejado por grandes parcelas do povo excluído” 193

. Quanto ao significado de um humanismo jurídico, prossegue WOLKMER194:

São valores que expressam a especificidade de nossa práxis cotidiana de busca pelo reconhecimento do outro, enquanto ser humano total e histórico, forjado no dia-a-dia econômico, social e político, ingredientes que conduzem à independência e à autonomia.

Pensar a perspectiva humanista entrelaçada com o Direito abre a possibilidade de motivar as organizações sociais e as instituições jurídicas com base na promoção e preservação efetivas da dignidade humana.

O entendimento do humanismo, numa visão geral, supõe que o homem é um fim e não um meio. Já o humanismo jurídico representa, na asserção de Tobeñas, um valor superior, a noção de que o homem é o ponto central do Direito, a razão constitutiva deste e sua causa final – o Direito, em definitivo, é para o homem.

Importante destacar que Direito195, aqui, será considerado enquanto valor construído pelo homem e instrumento posto a serviço do homem. Algo similar à concepção de Direito exposta por WOLKMER: “Conceber o direito ora como lugar de luta, resistência e combate, ora como instrumento de viabilização da justiça, do bem comum e da dignidade humana [...] que sirva a práticas sociais e políticas emancipadoras”. Esse o propósito do

191 PAVIANI, Jayme. Humanismo latino na história e na cultura brasileira. In: A influência do humanismo

latino na história e na cultura latino-americana. Congresso Internacional de Estados. São Paulo:

Cassamarca, 1999. p. 14.

192 WOLKMER, Antonio Carlos. Humanismo e cultura jurídica latino-americana. In: Humanismo e cultura

jurídica no Brasil. Florianópolis: Boiteux, 2003. p. 20.

193

Idem, p. 36.

194 Idem, p. 21.

195 Cf. DAL RI, Luciene. O “Direito” como cultura: a variabilidade do “direito” e o respeito à alteridade. In: As

interfaces do humanismo latino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 190. “O „direito‟ é caminho para a justiça, mas tê-lo em seu todo como mera interpretação desta, não o reconhecendo como valor não se enquadraria na grandeza de sua essência”.

Direito: o de ser caminho e instrumento para a consecução da dignidade humana e a efetivação da cidadania plural a partir de uma perspectiva humanista.

Aproximar as idéias humanistas do Direito é tarefa essencial, como frisa WOLKMER196, “pois permite transcender os limites históricos das inúmeras formas opressoras e abstratas de legalidade, reordenando-as criticamente para instrumentalizar o diálogo entre as regras institucionais e as regras humanas de dignidade, justiça e liberdade”. A importância de redimensionar o humanismo no seio do Direito é fundamental, além de tudo, por levar a um questionamento da dogmática legalista, humanizado-a.

Os princípios do humanismo jurídico são a dignidade humana, a justiça, os direitos humanos, a liberdade, a igualdade, o bem-comum e a segurança individual e social.

O conceito de dignidade consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e fundamenta-se na universalidade e na indivisibilidade desses direitos. Em outras palavras, não há direitos civis e políticos sem que haja direitos sociais, econômicos e culturais. Sob o mesmo raciocínio, para que haja liberdade há de existir igualdade.

Numa perspectiva social, WOLKMER197 afirma que a noção de justiça, por sua vez, “está relacionada às necessidades concretas por igualdade de oportunidades e condições de vida boa e digna”. O mesmo autor considera direitos humanos como sendo “aqueles direitos essenciais relacionados às necessidades humanas no âmbito material, espiritual e cultural”.

Enquanto princípio do humanismo jurídico, liberdade seria o não estar preso às determinações de outrem, mas é preciso condicionar tal noção a outros princípios fundamentais, como os da ordem, da proteção e do respeito ao bem-comum. RAMIREZ198 assevera: “A liberdade é uma capacidade de eleição que unicamente o homem possui [...] é eleger o que convém a cada ser, ou seja, o que cada ser deve ser”.

196 WOLKMER, Antonio Carlos (Coord.). Humanismo e cultura jurídica no Brasil. Florianópolis: Boiteux,

2003. p. IX.

197

WOLKMER, Antonio Carlos, Seminário do Grupo de Pesquisa Direito, Estado e Humanismo. Realizada em: 09 nov. 2006, no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC, Lages (SC).

198 RAMÍREZ, Martín Agudelo. Humanismo jurídico: el derecho desde una actitud humanista. Bogotá: Leyer,

2001. p. 54. “La libertad es una capacidad de elección que únicamente posee el hombre [...] es elegir lo que conviene a cada ser, o sea, que cada ser debe ser”, por suas próprias escolhas”.

O bem-comum e a justiça têm íntima ligação com o humanismo, como destaca TOBEÑAS199:

Humanismo, justiça e bem-comum são idéias equivalentes, porque conduzem às mesmas metas e coincidem em deixar aberto o caminho aos princípios de dignidade, liberdade e igualdade jurídicas. Fundidos os três ideais, podem proporcionar-nos uma ordem comunitária, no que resplandecem a igual dignidade de todos os homens, direitos de liberdades iguais e uma participação proporcional – justa de todos os homens e de todos os grupos no bem-estar material e na cultura espiritual.

Igualdade, no humanismo jurídico, seria um mínimo de aproximação social na escala de hierarquização – ou, nas palavras de TOBEÑAS200, “um mínimo de nivelação social e jurídica que impeça que nenhum homem coloque-se na sociedade de tal maneira que sua personalidade absorva as demais”. Igualdade, assim, implica eqüidade.

Fragilizada e praticamente inexistente em muitas regiões do Brasil, a segurança social201 envolve a proteção da população tanto no que se refere à sua integridade física quanto em relação à propriedade. Embora o maior bem a ser protegido seja sempre o ser humano, a proteção social não se restringe a ele, albergando também os bens materiais.

Em sua estreita relação com o humanismo jurídico, o Direito se dirige ao homem concreto, real e diversificado. No mundo globalizado, a sociedade202 exige ser tratada na concretude de sua complexidade, na fluidez de seus avanços, e não de forma estática, tal qual se apresentam as normas jurídicas.

Reitera-se, assim, a necessidade primordial do entrelaçamento entre Direito e humanismo, para o que é imperioso que o primeiro alargue seu foco de modo a compreender a complexidade humana, adequando a ela seu ordenamento jurídico. Tal adequação – e não apenas no que se refere às normas – implica necessariamente humanizar seus quadros em todos os níveis.

199

Cf. TOBEÑAS, op. cit., p. 93-94. “Humanismo, justicia y bien común son ideas equivalentes, porque conducen a unas mismas metas y coinciden en dejar abierto el paso a unos principios de dignidad, libertad e igualdad jurídicas. Fundidos los tres ideales, podrán proporcionarnos una orden comunitario, en el que resplandezcan la igual dignidad de todos los hombres, unos derechos de libertad iguales y una participación proporcional – justa de todos los hombres y de todos los grupos en el bienestar material y la cultura espiritual”.

200 Idem, p. 98. “Un mínimum de nivelación social y jurídica que impida que ningún hombre colocarse en la

sociedad de tal manera que su personalidad absorba a la de los demás”.

201

Cf. TOBEÑAS, op. cit., p. 95. “O que existe é que a certeza e a segurança, no campo das relações sociais e jurídicas, são exigências subordinadas ao valor supremo da justiça e que devem ser contidas dentro de adequados limites, para que não acabem despersonalizando a vida social e de relação”.

202 Cf. RAMÍREZ, op. cit., p. 66. É necessário que as realidades humanas se vinculem ao jurídico sem ser

sacrificadas à custa do elemento força nem tampouco pela coação institucionalizada, ainda que a referida vinculação se constitua em garantia de permanência da comunidade política.

Mesmo de forma ainda tímida, o humanismo na cultura jurídica203 brasileira mostra-se hoje mais claramente, representando o caminho efetivo para inovar e modernizar o Direito pátrio.

Como visto, o humanismo teve suas primeiras manifestações na filosofia helênica e no pensamento romano – no qual, embora ainda preponderante a idéia de que o homem estava submetido ao cosmos, percebia-se já a preocupação com o humano. Foi de onde se originou o primeiro conceito de humanitas.

Mais tarde, com o cristianismo, adquiriu consistência a noção de que a individualidade do homem é superior ao próprio mundo, conceito que foi renovado a partir da Renascença e dos diversos sistemas filosóficos que se seguiram. Ao contrário do que se pensava no passado204, não foi o humanismo um produto do Renascimento e nem foi este o nascedouro da idéia do homem enquanto indivíduo – o que fez o Renascimento foi acrescentar ao conceito que temos hoje de humanismo mais uma faceta.

No período histórico do teocentrismo, foi Santo Agostinho o verdadeiro forjador do que conhecemos como humanismo filosófico. Excluídas na Renascença a origem divina do homem e sua dependência em relação aos desígnios divinos, restou o humanismo fundamentado unilateral e exclusivamente, por obra de Descartes e na razão humana. Surge daí a concepção de humanismo moderno, seguindo-se uma série de novas escolas e manifestações humanísticas com pouco de comum entre si além da tentativa de fazer do homem o tema principal da especulação filosófica.

Destacar a presença do humanismo na cultura jurídica brasileira é importante para dimensionar os vários âmbitos de sua influência e quais aspectos dessa influência são observáveis no Direito e no ensino do Direito em nosso país.

203

Cultura jurídica explica WOLKMER “[...] Deixando de lado a concepção elitista de cultura – associada à acumulação de conhecimentos, à uniformidade de padrões transmitidos e à racionalidade individualista – busca-se a introduzir a noção e cultura à práxis humana e às manifestações intelectivas da consciência criadora de um povo. Pode-se, com efeito, particularizar uma certa prática de cultura, atribuindo maior significado à cultura popular ou à erudita, à cultura das classes dominantes subalternas ou das classes dominantes. Reconhecendo uma “circularidade” de influências recíprocas entre os dois níveis.[...] A opção comprometida do jurista historiador por uma narrativa na compreensão de cultura como instrumental de significações capaz de sublinhar a historicidade das contradições entre alienação/dependência/exploração e libertação/emancipação, quer no que se refere aos indivíduos, que no que se refere às instituições sociais”. Assim entendemos cultura jurídica “[...] como as representações padronizadas da (i) legalidade na produção das idéias, no comportamento prático e nas instituições de decisão judicial, transmitidas e internalizadas no âmbito de determinada formação social”. In: WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 3-4.