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Poder nas organizações: Da dominação de poucos à ação de todos

3.2. Contrato e autoridade

Apesar da constituição da ação satisfazer a busca de Hannah Arendt pelo con- ceito verdadeiramente humano de política, segundo Avritzer (2006), a autora enxerga uma lacuna na capacidade grega de institucionalizar essa ação – individual e humana. Essa lacuna se traduz na incapacidade grega de perpetuar a ação para além dos limites da imprevisibilidade humana. Ou seja, a ação humana não con- segue sozinha permanecer para além das próprias relações em que ela se sustenta, motivo pelo qual a filósofa se volta para a busca de uma solução histórica que permita transpor esses limites.

As fundamentações de Hannah Arendt não rejeitam ou confrontam essa im- previsibilidade humana. Pelo contrário, de certo modo a exalta, observando ser característica de nossa existência. Promove, até mesmo, um diálogo entre as teorias evolucionistas (para quem a seleção de algumas das inúmeras mutações ocasionais promove novas criações) e criacionistas (que preterem a explicação natural para enfocar a vida como dom de Deus) ao contemplar a constituição de nosso mundo.

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É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo o início e a toda a ori- gem. Assim, a origem da vida a partir da matéria inorgânica é o resultado infinitamente improvável de processos inorgânicos, como o é o surgimento da Terra, do ponto de vista dos processos do universo, ou a evolução da vida humana a partir da vida animal. O novo acontece sempre à revelia da es - magadora força das leis estatísticas e da sua probabilidade que, para fins práticos e quotidianos, equivale à certeza; assim, o novo surge sempre sob o disfarce do milagre. (ARENDT, 2009, p. 190-191)

Observando que ninguém pode reificar a si mesmo, a autora busca a chama- da institucionalização na força do poder legislativo romano, que tinha um papel muito maior na vida política de Roma do que para os gregos (para quem as leis eram produto da fabricação e não da ação). Essa institucionalização permitiria à ação sobreviver para além dos seus atores e da imprevisibilidade que a renovação de gerações proporciona.

A força da promessa presente na vida política de Roma era evidenciada na inviolabilidade dos contratos,5 tendo a faculdade de aplacar as dúvidas da imprevi-

sibilidade que a liberdade em uma comunidade de iguais proporciona.6 Deixados

em seu rumo natural, os negócios humanos só poderiam seguir a lei da mortalida- de, e é a ação humana quem interfere nesse curso inexorável da vida e interrompe o destino natural do processo da vida biológica. A institucionalização dessa ação promovida pelos contratos, por sua vez, permite a continuação dos efeitos da ação para além dos atores que interagem.

A missão de se alcançar essa continuidade é creditada ao poder, oriundo da convivência entre os homens, que o faz pela da preservação da esfera pública:

É o poder que mantém a existência da esfera pública, o espaço potencial da aparência entre homens que agem e falam [...] sem o poder, o espaço da aparência produzido pela ação e pelo discurso em público desaparecerá tão rapidamente como o ato ou a palavra viva. (ARENDT, 2009, p. 212-216)

5 Cuja descoberta a autora credita a Abraão no Antigo Testamento (ARENDT, 2009, p. 255) 6 Hannah Arendt rejeita a individualização do conceito de liberdade, orientado pelo Liberalismo a uma satisfação autossuficiente, desconectada do projeto comum. No mundo antigo, a liberdade é um conceito coletivo, alcançável coletivamente.

Importante notar que esse “contratualismo” de Arendt é diferente, por exem- plo, da teoria de Hobbes (1974), que defende a abdicação de todos os indivíduos da faculdade de exercer sua força e poder em benefício de um poder público co- mum, carregado da autorização de promulgar ordens em nome de cada um dos in- divíduos. Apesar de considerar a igualdade entre homens do ponto de vista de seu nascimento,7 a premissa de “estado natural” de filósofos como Thomas Hobbes

constitui indivíduos com interesses privados irredutivelmente conflitantes, que lançam mão do contrato social para criar o caráter político do homem visando a paz e estabilidade entre eles. Essa premissa de estado natural é fundamentalmente diferente do caso do pensamento grego, adotado por Hannah Arendt, de que o homem já é por natureza político, e lança mão do contrato para vincular o futuro a um anseio do presente, em uma sociedade de iguais também no exercício da cidadania. O contrato é manifestação potencial do poder como forma de manter a continuidade da ação.

Esse mesmo poder não pode ser armazenado ou mantido, só existe como efe- tivação de ato e palavra em sinergia. Até ser efetivado, ele existe como algo poten- cial, potencialidade presente pela convivência entre os homens, que desaparece no momento em que eles se dispersam. Nessa perspectiva, o indivíduo isolado jamais poderia ser detentor de poder, mas sim de força. Essa força, sozinha, nunca pode- ria estabelecer relações de poder, mas sim de violência: é possível dividir o poder sem diminuí-lo, ao passo que a força é indivisível.

A solução de institucionalização através dos contratos vem acompanhada de outro elemento fundamental da influência romana: Roma teve um momento de ação com fundação que foi essencial para o estabelecimento e exaltação da identidade de um espírito público. A fundação da cidade e o estabelecimento de suas leis foram atos decisivos, aos quais todos os sucessivos atos deveriam ser re- lacionados para sancionar a sua validade. Essa fundação é também uma forma de preservar a tradição e os negócios humanos.

A disponibilidade dos indivíduos para a aceitação das bases institucionais do poder depende do estabelecimento também da autoridade. A autoridade na relação entre duas pessoas não reside no senso comum nem mesmo no poder de quem co- manda, e sim na hierarquia em si, cuja validade e legitimidade ambos reconhecem e aceitam. A autoridade prescinde portanto do uso de qualquer forma externa de coerção: “O uso da força é sinal de que a autoridade falhou” (ARENDT, 1961, p.

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93). Para a autora, a autoridade foi instituída com a fundação, e concedeu ao mundo a permanência e durabilidade de que os seres humanos dependiam justamente por serem mortais. Essa separação entre a autoridade e o poder foi também reconhecida como artifício institucional romano para garantir a supremacia do povo, verdadeiro detentor do poder, sobre o Senado, a quem era outorgada a autoridade.