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Poder nas organizações: Da dominação de poucos à ação de todos

3.3. A refundação de um verdadeiro poder

Arendt observou a forma indiscriminada como os conceitos de poder e violên- cia têm se confundido até mesmo no mundo político,8 e mostra que a acepção de

poder assimétrico alimenta os teóricos políticos tanto de direita quanto de esquer- da, para quem “a violência nada mais é do que a flagrante manifestação do poder” (ARENDT, 1985, p. 16).

Essas definições acompanham o nascimento do Estado Absolutista, como quem detém a legitimidade da aplicação da violência de homens por outros ho- mens. Foi na burocracia que esse Estado encontrou seu maior instrumento, per- mitindo esconder a responsabilidade de sua tirania por meio da justificativa das regras e controles absolutos. No entanto, mais uma vez foi no resgate da tradição política da Antiguidade que a autora desvelou as influências dos revolucionários do século XVIII para desenho de uma república onde o poder do povo sustenta as regras do Direito.

É o apoio do povo que confere poder às instituições de um país, e esse apoio nada mais é que a continuação do consentimento que deu origem às normas legais. De acordo com o governo representativo, é o povo que detém o poder sobre aqueles que o governam. Todas as instituições polí- ticas são manifestações e materializações do poder; estratificam-se e dete- rioram-se logo que o poder vivo do povo cessa de apoiá-las. (ARENDT, 1985, p. 17)

A autora revela, então, que o poder não precisa da justificação, e sua legitimi- dade provém da autoridade, conforme mostrado anteriormente. Esse poder deriva

8 Partindo das definições de autores clássicos como Mills, que afirma que “toda política é uma luta pelo poder; o tipo de poder mais definitivo é a violência” (apud ARENDT, 1985, p. 14), e Voltaire, para quem o poder “consiste em fazer os outros agirem como eu quero” (idem, p. 15).

da ação coletiva entre os homens, que se inicia com a fundação da comunidade política: quando os atos – fundados na comunicação e troca de opiniões9 – são

usados para criar realidades pelo mútuo consentimento. Para que essa fundação seja possível em uma sociedade que já está estabelecida, é necessário recorrer à refundação dela.

A oportunidade de recomeçar e “refundar” as bases sociais do poder político só é possível graças ao conceito da natalidade. A fragilidade das instituições hu- manas e suas leis repousa na existência da natalidade, que é a realização do início da ação. Sem a existência da natalidade, estaríamos condenados a uma simples continuidade natural (ao ciclo concêntrico dos processos vitais). Essa consciência de renovação desencadeia uma faculdade sempre presente de também desfazer aquilo que fazemos (sem a qual seríamos vitimas de uma necessidade automática regida pelas leis naturais inexoráveis), e consequentemente da possibilidade de instaurarmos um novo começo: a refundação.

Uma refundação que se fundamente da manifestação humana coletiva não pode encontrar limites. O poder corresponde à condição humana da pluralidade e, assim como a ação, é ilimitado. A única condição material para o poder é a exis- tência de outras pessoas, e onde quer que os seres humanos ajam em concerto em uma atividade contemplativa para além das necessidades vitais e materiais, o po- der se constituirá de forma legítima. Qualquer ação contrária a ele não será um ato de resistência, mas um ato da força, que um ou mais homens podem exercer pela violência. A violência pode destruir o poder, mas jamais substituí-lo. A tentativa frustrada de substituir o poder pela violência, Hannah Arendt define (a partir de Montesquieu) como tirania. Para a autora, nada é mais difundido na modernidade do que a máxima de que “o poder corrompe”, fruto da dissolução da confiança que temos no poder. No entanto, o poder só corrompe, de fato, “quando os fracos se unem para destruir os fortes” (ARENDT, 2009, p. 215).

Hannah Arendt cita o movimento operário na modernidade como único tipo de organização na qual os homens agiam e falavam como homens e não como membros da sociedade (ARENDT, 2009, p. 231). Nesse sentido, além de defen- derem seus interesses econômicos, travaram uma batalha inteiramente política, adquirindo uma distinção própria. Ainda segundo a autora, a mola propulsora des- sa refundação de um novo espaço público não foi a atividade do labor em si nem a

9 Habermas denominou mais tarde essa noção arendtiana de poder de “poder comunicativo” no seu arcabouço da Teoria da Ação Comunicativa.

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rebelião utópica contra as necessidades da vida, mas sim as injustiças e hipocrisias típicas da sociedade de classes.

De fato, o ponto de partida de Hannah Arendt para o seu resgate do poder como capacidade de agir em concerto está nas bases totalitaristas que emergiram no final do século XIX e se consumaram com os campos de concentração do sécu- lo XX. Essa forma de organização rompe com todas as bases clássicas de sociedade e impõem imensos sacrifícios à vida humana sem uma causa que pudesse justificar o esforço do empreendimento (ARENDT, 1989). O processo que se inicia com a compreensão desses eventos históricos que cristalizam as formas totalitárias de go- verno, termina por descaracterizá-los como poder para categorizá-los como nada mais que violência.

4. O

N D E E S T Á O P O D E R

,

A F I N A L

?

O poder assimétrico tem sido estudado a partir de Weber, tanto em sua leitura mais interpretativista, como na leitura mais funcionalista feita por Parsons (1960) e seus seguidores – particularmente norte-americanos – em estudos sobre burocra- cia. Muitos autores abordam ainda a questão do poder de forma velada, incluída em análises de cultura e liderança, por exemplo, como se o poder fosse manifesta- ção natural dos sistemas burocráticos. Mesmo sob a ótica do poder assimétrico, a manifestação do poder não pode ser entendida como algo “neutro” (como no caso de papéis predefinidos) nem é uma prerrogativa de pessoas “más” (que resistiriam a uma autoridade determinada). Da mesma maneira, a política não pode ser con- siderada apenas um instrumento de subversão nem rótulo das pessoas que dela se utilizam para se mover em cenários organizacionais.

Há uma questão muito importante sobre os limites do poder que, segundo Vieira e Vieira (2003, p. 104) refere-se ao “discurso da presunção da verdade, usa- do por quem lança mão das relações múltiplas de poder para o convencimento de posições que nem sempre representam a natureza real dos fatos. São verdades não legitimadas pelos fatos e pela própria percepção da realidade que se contrapõem ao exercício do poder de convencimento”.

Já o poder simétrico, fundamentado por Hannah Arendt e encontrado princi- palmente em estudos críticos que se baseiam na ciência política, deve ser observa- do sempre em uma perspectiva coletiva. Assim, o poder simétrico seria analisado a partir de manifestações coletivas contra a ordem estabelecida em uma organização,

ou manifesto em organizações que fogem da caracterização geral a elas atribuída (como burocracias, por exemplo). Na verdade, as teorias que conceituam poder simétrico ou assimétrico não excluem nenhum contexto específico para manifes- tação do poder, ou seja, são independentes do objeto de estudo de aplicação da teoria. A aceitação de uma ou outra forma de poder depende do modo como se conceituam para os atores as relações sociais existentes. No entanto, não é possível uma análise sob a perspectiva do poder simétrico que parta de abordagens oriun- das das escolas de negócios, onde a perspectiva do poder é fundamentalmente a assimétrica. O poder simétrico, como capacidade ou realização coletiva, só pode se manifestar em um ambiente social de iguais, em que os indivíduos reconheçam a sua pluralidade, mas nunca a ascendência unilateral de um sobre outro. Essa premissa é incompatível com a grande maioria das organizações modernas que se estruturam hierarquicamente e estabelecem na orientação dos resultados a quali- ficação dos seus atores.

O poder na concepção coletiva não é propriedade de um indivíduo, mas emana de um grupo e permanece apenas enquanto esse grupo permanecer unido. Surge do debate reflexivo e da discussão entre seus membros, que delegam a autoridade para um ou mais membros quando amparados por esse poder maior. Assim, toda organização que deseje em seu estabelecimento uma relação de igualdade entre seus membros, que fundamentem a autoridade para os atos individuais a partir da delegação de poder de todos os membros, devem excluir de suas relações as carac- terísticas conflituais do poder. Essas organizações não poderiam permitir o contro- le de uns membros por outros nem estabelecer dependência entre seus membros em função da simples relação entre eles; e não poderiam legitimar a distribuição desigual de vantagens e recursos entre os seus atores. Essas organizações são flui- das, e se manifestam por uma racionalidade orientada a valores, diversamente da lógica tradicional do mercado, por exemplo.

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