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Controlar a publicidade comercial

No documento Mídia e políticas públicas de comunicação (páginas 197-199)

Como premissa é importante reconhecer que os efeitos da publicidade comercial sobre a es- fera pública, sobre os padrões de sociabilidade e sobre a própria democracia são extremamente relevantes. Ferramenta indispensável para a re- produção do capitalismo atual, proporcionando a demanda necessária à expansão econômica que desloca os problemas e contradições do sistema, a publicidade promove o consumo como atividade humana primordial, isto é, o insulamento na esfera privada, a passividade e o individualismo – todos comportamentos con- trários ao exercício da cidadania e à participa- ção política. Mais do que isto, o discurso publi- citário tende a monopolizar o espaço público, seja garantindo sua primazia (pensemos no es-

3. Sobre o papel da publicidade no capitalismo atual, ver André Gorz – Métamorphoses du travail: quête du sens. Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1998. Para a necessidade imperiosa de expansão econômica, István Mészaros – Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Campinas: Editora da Unicamp, 2002, p. 176. A colonização do espaço público pela publicidade é ilustrada na interessante reportagem de Naomi Klein – Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2002.

4. Torben Vestergaard e Kim Schrøder – A linguagem da propaganda. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 194.

5. Daniela Santiago e Rousiley C. M. Maia – “Entre o mercado e o fórum: o debate anti-tabagismo na cena midiática”. Paper apresentado no XIV Encontro Anual da Compós. Niterói, 2005.

6. Um total de 29 matérias da amostra aborda o banimento ou regulamentação de publicidade de algum setor da economia. A maior parte delas se refere a bebidas alcóolicas. Nenhuma sobre a propaganda dirigida ao público infantil. Um complica- dor, no caso brasileiro, é que um dos principais porta-vozes dos direitos das crianças, no cenário público, é hoje a Fundação Abrinq, vinculada historicamente a um setor – a indústria do brinquedo – que não tem interesse em colocar o problema da publicidade para crianças em pauta.

tatuto diferenciado dos outdoors “legais” e das pichações “vândalas”), seja impondo-se como padrão de enunciação dominante3 .

Como fonte principal de renda da mídia comer- cial, a publicidade permite um barateamento dos produtos, com jornais diários sendo vendidos a preço ínfi mo ou televisão “grátis” (embora o con- sumidor pague na outra ponta, uma vez que os custos da propaganda estão embutidos nos bens e serviços que compra). Mas submete os veícu- los à sua lógica; eles passam a ter como objetivo, como disse certa vez Régis Debray, vender um público aos anunciantes. Mesmo quando a mítica “muralha da China” entre a redação e o setor co- mercial permanece de pé, a perspectiva de obter publicidade contamina decisões editoriais – é o que explica que seja mais fácil um jornal manter um caderno dedicado a automóveis, por exem- plo, do que a educação ou saúde pública. No que se refere ao entretenimento, é sabido que fi lmes e programas de televisão são adequados à expecta- tiva de merchandising.

Pelos próprios fi ns a que se destina, o discurso publicitário possui um caráter eminentemente manipulativo – a rigor, a própria expressão “propaganda enganosa” é um artefato ideológi- co, que elude o fato de que toda propaganda precisa ser, em alguma medida, enganosa. Na busca de uma adesão fácil, sem arestas, do pú- blico, a publicidade tende a reproduzir os pre- conceitos deste mesmo público. Assim – e uso a propaganda comercial brasileira como exemplo –, proliferam representações estereotipadas das mulheres, dos idosos, dos habitantes das dife- rentes regiões do país, enquanto outros grupos, como os negros, quase não aparecem. O reforço do preconceito é, muitas vezes, sutil, estando

fora do alcance de qualquer regulamentação (ainda mais quando se dá ao setor o privilégio de se “auto-regulamentar”). A tal ponto que, há cerca de 30 anos, uma pesquisa na Dinamarca sugeriu, como única solução possível para isso, “que se proíba toda e qualquer representação de seres humanos em anúncios”4 .

A permanência do discurso publicitário em quase todos os espaços sociais, apesar de seus reconhecidos efeitos danosos, já indica a im- portância que ele possui no sistema econômico vigente. É possível ver as restrições à propaganda de cigarro como uma vitória da esfera pública discursiva contra uma indústria poderosa, como fazem alguns5. Mas é um exemplo que demons-

tra, ao contrário, a força da defesa do “direito” de publicidade, que resistiu por décadas e ainda re- siste, mesmo com os reconhecidos malefícios aos consumidores e o elevado custo social do fumo. Outro caso sensível é o da propaganda dirigida às crianças, que exigiria forte regulamentação, quando não o banimento puro e simples6 . Sub-

jaz à discussão um discurso que equivale publi- cidade e liberdade de expressão, com restrições à primeira sempre prejudicando a segunda. É uma equivalência que, em última análise, torna a liberdade de expressão integralmente depen- dente do poder econômico.

Em suma, a publicidade, na qualidade de prin- cipal sustentáculo da mídia, contribui para o entrelaçamento entre produção de informação e poder econômico; e, por sua influência so- bre o público, incentiva padrões de comporta- mento que são nefastos à participação política democrática. Há muito tempo ela se despiu de sua função original, de dar a público a existên- cia de bens e serviços, adquirindo um caráter

manipulativo. Se a idéia de uma sociedade sem publicidade comercial parece demasiado utópica, ao menos é possível pensar em regulá- la, de maneira a evitar alguns de seus efeitos mais deletérios e reduzir sua influência nos meios de comunicação.

Gerar um setor forte e independente

No documento Mídia e políticas públicas de comunicação (páginas 197-199)