• Nenhum resultado encontrado

3.1 Madame de Staël em duas narrativas do Jornal das Famílias

3.1.2 Corina e a “Felicidade pelo casamento”

O tema do casamento é presença constante nas páginas do Jornal das Famílias. Ali encontram-se textos que exploram diversos aspectos dessa componente social e familiar sempre com um olhar progressista, muitas vezes criticando a deturpação do matrimônio e lançando sobre ele uma visão moralista e educativa. Tanto milita em favor do mesmo, que chega a ser chamado de “jornal casamenteiro” em narrativa, assinada por C. F., publicada em 1877.

A narrativa intitulada Felicidade pelo casamento sai nas páginas do jornal em 1866 e, de modo geral, narra o triunfo do amor e da felicidade doméstica por meio do casamento entre o narrador F. e a menina Ângela. No texto, o matrimônio forma o paradoxo com a solidão de F. e aparece, de um lado, como cura para o sofrimento deste em razão de uma decepção amorosa antiga, de outro, como livramento do frustrante destino de Ângela que estava prestes a casar com Azevedinho, um rapaz interessado somente no dote da moça.

Desse modo, a narrativa vai criticar o caráter cobiçoso e malévolo de Azevedinho em contrapartida ao feitio de moral aceitável de F. Triunfa a união dos mocinhos, baseada no amor e nas responsabilidades sociais, enquanto o outro, dada a sua reprovável índole, arranja casamento com uma tia rica que lhe leva às mãos uma fortuna. E, como demonstração da possibilidade do endireitamento moral do indivíduo, o narrador revela que “Em poucos meses Azevedinho viu-se obrigado a pôr termo aos seus caprichos, a fim de salvar alguma coisa e trabalhar para viver o resto da vida” (ASSIS, 1866, p. 204).

Salvas essas observações sobre a intencionalidade educativa do conto, o narrador nos revela um aspecto interessante das personagens, a saber, o hábito da leitura de romances e obras clássicas. Como sinalização do que Gilberto Pinheiro Passos chama de “chão cultural” (1996, p. 15), aparecem na narrativa a Bíblia, Pascal, Alfredo de Vigny e Lamartine, dos quais o narrador assume absorver ensinamentos:

Sobre a mesa tenho duas pilhas de livros. [...] Os três primeiros livros me chamam à contemplação ascética e às reflexões

72 morais; os três últimos despertam os sentimentos do coração e levam meu espírito às mais elevadas regiões da fantasia.

Temos, pois, um personagem-leitor que, dada a natureza das obras de que dispõe e traz à tona na narrativa, divide-se entre a reflexão moral e a afronta dos sentimentos. Some-se a esses títulos, a leitura de Chateaubriand e Madame de Staël. O que esses dois autores podem significar no texto machadiano?

A princípio, atentamos para a referência ao romantismo francês, amplamente divulgado no Brasil através da circulação de obras, traduções e intelectuais. O narrador comenta que:

Muitas vezes, alta noite, quando os meus olhos se cansavam de percorrer as páginas de Atalá ou Corina, abria-se a porta do gabinete e a sua figura meiga e veneranda, como a das santas, vinha distrair-me da cansada leitura. Cedia às suas instâncias e ia repousar. (ASSIS, 1866, p. 169)

A presença de Atalá, de François René de Chateaubriand, publicada inicialmente, em 1801, e Corinne ou l’Italie, de Madame de Staël, de 1807, sublinham, via ficção, a circulação dessas obras no contextos dos anos de formação de Machado e apontam para a recepção machadiana das ideias ali veiculadas.

Estes aspectos factuais reverberam o trânsito de obras no entorno de Machado de Assis bem como a presença desses livros nas mãos do autor brasileiro, mas para além deles, existem as aproximações, os empréstimos e conexões incrustrados no trabalho simbólico de ressignificação do texto machadiano. As heroínas que nomeiam aquelas duas narrativas têm em comum a pureza de sentimentos e a entrega ao nutrido amor pelos estrangeiros; atravessam as condições e pressões que lhes são impostas sem se corromperem e sem renunciarem ao sentimento forte que lhes arrebata o coração; são espíritos elevados e experimentam o bálsamo das paixões superiores; mas também são submetidas ao infortúnio da privação da realização de seus amores e, deste impasse, advém o trágico destino de ambas; morrem de tanto amar para inscreverem seus nomes na historiografia literária moderna como imagens românticas, cujas feições serão importadas e transformadas pela ação de contextos de recepção estrangeiros.

O narrador de Machado de Assis parece infligido pelo sofrimento das duas heroínas românticas, mas, nas páginas do Jornal das Famílias, encontra a salvaguarda da superação do trauma por meio do amor do casamento com Ângela. São outros tempos que exigem novas leituras daqueles clássicos do início do século e Garnier segue linhas de pensamento bem

73 definidas. Machado de Assis adapta a situação das duas “mártires” ao aliviar a carga de sofrimento de F., possibilitando-lhe, via casamento, a realização de seu pulsante amor, mesmo recorrendo à tragédia da morte romântica em Questão de vaidade e reincidindo em Helena, romance de 1876 em que a protagonista homônima padece e morre depois de uma série de erros e contrapelos que lhe afligem a consciência. Atalá e Corinne ou l’Italie são protagonizados por mulheres cujo caráter edificante de compostura moral é levado aos leitores do jornal pelo narrador-leitor, que se compõe modelo de homem para aquela sociedade. De modo que se dissemina aí o hábito da leitura daqueles clássicos estrangeiros. Machado de Assis faz uso frequente dessa estratégia, pois, como contabiliza Rodrigo de Avelar Breunig em dissertação defendida em 2006, cerca de 123 personagens-leitores figuram nos seus contos, uma ocorrência em 63% de um total de 207 narrativas. Breunig também observa que,

desde os fins do século XVIII, o Brasil queria cada vez mais ser um país francês. A literatura brasileira queria ser francesa. Os leitores brasileiros queriam ler literatura francesa. Nos 207 contos de Machado de Assis, não há nada que os personagens leiam tanto quanto literatura francesa: de todas as leituras de livros que, nesses contos, podem ser identificadas por assunto, autor ou título, a maior parte é literatura francesa; 16% de tudo que os personagens dos contos de Machado lêem é literatura francesa; se levarmos em conta apenas as leituras literárias (romances, novelas, drama, poesia), 30% do que eles lêem é literatura francesa (BREUNIG, 2006, p. 21)

Esses dados e procedimentos reiteram as leituras machadianas dos clássicos românticos que incidem no conto analisado, sob os paradigmas de Chateaubriand e Madame de Staël, tal a importância desses autores para a visão literária de Machado de Assis naquele momento, bem como para a literatura romântica brasileira, tudo isso, obviamente, vinculado às intenções dos periódicos. Aqui convém ressaltar que, após os estudos do projeto Circulação Transatlântica dos Impressos, fica evidente, muitas vezes, que a língua francesa funciona como veiculadora de ideias e procedimentos vindos de outras nacionalidades, como evidenciou Marcos Túlio Fernandes em estudo publicado em 2020 como resultado de sua tese de doutoramento.64

64Do Gespenst-Hoffmann ao bruxo do Cosme Velho: Travessias do fantástico e transformações no Brasil”.

74 Por fim, é importante mencionar que muitos pontos tematizados nas duas narrativas são retratados nos escritos de Madame de Staël, dentre eles: o caráter e a índole das pessoas, o casamento, a educação moral, a arte no universo feminino, as funções do belo sexo.