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A crítica em diálogo: o exemplo de uma mulher nas “Semanas” machadianas

4 MADAME DE STAËL NA CRÍTICA MACHADIANA: DIÁLOGO,

4.2 A crítica em diálogo: o exemplo de uma mulher nas “Semanas” machadianas

presente na obra De l’Allemagne (1813) e já sabemos que este livro circulava nas livrarias cariocas daquela época. É curioso ainda pela sua grande importância na produção crítica de Madame de Staël. Desse modo, retornamos mais uma vez ao que nos esclarece Jean-Michel Massa sobre as suposições da ausência ou presença de uma obra numa biblioteca particular. Afinal, nosso Machado foi frequentador costumeiro de livrarias, bibliotecas, gabinetes, saraus e rodas de conversa, locais onde, sem nenhuma dúvida, mantinha contato com muitas obras ausentes de seu acervo.

Por fim, situamos aqui um outro estudo interessante sobre a biblioteca de Machado de Assis. Na teia da interdisciplinaridade que norteia as transferências culturais, vale recorrer à leitura do artigo “Biblioteca de Machado de Assis como fonte de estudo: organização, particularidades e as influências literárias na produção machadiana”, de Celso Lima Latini (2008). Mesmo não concordando com o uso do termo “influência” presente no título, o estudo traz um olhar diferente do das análises literárias, posto que sob a perspectiva da Biblioteconomia e infere que “Machado de Assis é, a exemplo dos grandes intelectuais do século XIX, um produto bem acabado do século das luzes” (LATINI, 2008, p. 5), destacando, a propósito, a vasta presença de filósofos iluministas no Domínio Françês na biblioteca de Machado de Assis, via catalogação de Massa.

4.2 A crítica em diálogo: o exemplo de uma mulher nas “Semanas” machadianas

Neste tópico, vamos arrolar textos de natureza apreciativa aos quais Machado submeteu o seu julgamento, mas apenas aqueles nos quais registramos alusões explícitas às opiniões, às ideias de Madame de Staël e/ou aos que fazem alguma referência de cunho criterioso à autora francesa. Para isso, remetemos a alguns textos das colunas “Semana Litteraria” e “A Semana”, respectivamente publicadas no Diário do Rio de Janeiro e na Gazeta de Notícias. A escolha por essas seções se justifica pelo fato de ter sido nela que apareceram os textos de Machado se referindo a Madame de Staël.

Desde cedo, Machado de Assis começa a escrever textos críticos, muitos deles, hoje extremamente atuais e reconhecidos: desde “O passado, o presente e o futuro da literatura” (1858), passando pela crítica teatral, “O ideal do crítico” (1865), até o famoso “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade” (1873), e “A nova geração” (1879), para citar poucos. O crítico literário Machado de Assis correu sua pena nas diversas colaborações em periódicos oitocentistas, desde jovem, com um olhar perscrutador e embasado. O contato

89 constante com as obras fez dele um exímio analista no qual se destacou a sua defesa pela constituição de uma literatura madura no Brasil. Além dos julgamentos estéticos, Machado se utilizou, principalmente em suas crônicas, de um olhar irônico e atento sobre os assuntos da sociedade de sua época. Muitas vezes se apoiando ou refutando concepções de outros autores, a crítica machadiana conserva um aspecto dialógico com toda uma tradição à qual ele se refere e com a qual ele, obviamente, mantivera contato. Perscrutando esse mosaico de diálogos no interior de sua crítica, extraímos algumas referências às ideias de Madame de Staël, no intuito de confirmarmos o diálogo literário e cultural com a autora, empreendido por Machado.

Madame de Staël produziu diversos textos críticos que disseminaram em muitas partes do mundo uma visão ampla de literatura, de nacionalidade e do papel da mulher no mundo moderno. Vários desses textos circulavam no ambiente letrado brasileiro do século XIX e, tendo Machado entrado em contato com essas ideias, passa a interpretá-las e aplicá-las também em sua crítica.

O primeiro registro que selecionamos diz respeito a um texto publicado no Diario do Rio de Janeiro, de 16 de janeiro de 1866, na coluna “Semana Litteraria”, a qual iniciava sua colaboração naquele mesmo ano.

Neste texto, Machado analisa o romance O culto do dever, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1865. Na apreciação da narrativa de Macedo, Machado destaca pontos fundamentais sobre a sua concepção de obra de arte no contexto da produção literária brasileira do momento, ancorado nos anseios futuros de uma arte legitimamente nacional.

Neste ínterim, o crítico traz à tona princípios arrolados por ele como essenciais aos escritores brasileiros, e discute temas pertinentes ao fazer literário que estavam bastante atrelados à crítica romântica do momento. Assim sendo, Machado demonstra preocupação com a autoria da obra, apoia-se na ideia de que a ficção não deve corresponder à realidade, mesmo que colha o assunto nela, e defende uma crítica que se preocupe na análise do caráter das personagens transfiguradas do mundo corriqueiro pela “varinha mágica da arte” e “pintadas pelo poeta” (ASSIS, 1866, p. 2)74.

Machado deixa claro que está de acordo com relação aos princípios morais de Macedo. Segundo o crítico, é sobre a tônica do dever moral que o romance está assentado, mas nos induz a pensar que as qualidades do romance se encerram na sua moralidade e que o

90 apego do autor a este caráter desfavoreceu a imaginação poética na obra, pois, como explica Machado:

o autor tem diante de si uma tela vasta e própria para traçar um grande quadro e preparar um drama vivo. Por que o não fez? O autor dirá que não podia alterar a realidade dos fatos; mas esta resposta é de poeta, é de artista? Se a missão do romancista fosse copiar os fatos, tais quais eles se dão na vida, a arte era uma coisa inútil; a memória substituiria a imaginação; O Culto do Dever deitava abaixo Corina, Adolfo, Manon Lescaut. (ASSIS, 1866, p. 2).

Para nós, é importante perceber que a menção às personagens e obras refletem a intenção crítica de Machado. No tocante à alusão a Corinne, a personagem de Madame de Staël, convém observar que Machado a utiliza como o modelo poético para os romancistas brasileiros. Sua devoção à personagem staeliana está ligada ao trabalho poético da autora francesa ao favorecer a imaginação em detrimento de uma cópia da vida comum; o “drama vivo”, como quer Machado, pode ser encontrado na trama de Corinne ou l’Italie. Ele leu o romance, experienciou a dor de Corinne, adentrou ao universo dramático de Staël e adotou o romance como um quadro bem traçado, uma referência para os seus compatriotas ao mesmo tempo em que viu em Corinne um paradigma para as heroínas românticas.

As reflexões são curiosas ainda mais quando lembramos o fato de que a personagem de Staël é costumeiramente associada à própria autora. Corinne é um romance resultante de uma viagem da autora à Itália e a trama foi colhida de sua própria vivência. Mesmo assim, dada a dimensão imaginativa da obra, o julgamento de Machado a eleva a exemplo para os ficcionistas brasileiros contemporâneos seus. Uma Helena poderia ter saído dessa experiência de leitura e, mesmo que os fatos não nos confirmem isso, está claro que o autor quis imprimir aquela feição de “drama vivo”, que encontrou em Corinne.

Se na crítica ao livro de Macedo aflorou-se e reivindicou-se por parte de Machado o predomínio da imaginação poética que daria ao livro alma mais elevada, se valendo da comparação com o romance de Staël, no registro que traremos agora, fica evidente a defesa da educação intelectual às mulheres e, mais, a justiça com relação ao julgamento das obras literárias escritas por mulheres dotadas do espírito poético, do gênio.

Ao escrever sobre o drama Cancros Sociais, de Maria Ribeiro, Machado faz da reivindicação à educação intelectual feminina o mote da crítica, defendendo a concepção de que a obra deveria ser julgada mediante a verdade sob o signo da imparcialidade crítica.

Utilizando uma epígrafe atribuída a Madame de Staël, a autora lamentava que “Quand une femme publie un livre, ele se met tellement dans la dépendence de l’opinion que les

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dispensateurs de cette opinion lui font sentir durement leur empire” (Quando uma mulher publica um livro, ela se torna tão dependente da opinião que os dispensadores dessa opinião a fazem sentir duramente sua imposição. Tradução grifo nosso). No entanto, Machado contesta a opinião de Maria Ribeiro, utilizando como exemplo o sucesso de Corinne, de Madame de Staël, e Indiana, de George Sand, e explanando que “a opinião coroa as escritoras que o merecem” (ASSIS, 1866, p. 2)75. Esta concepção crítica assume importância ímpar no desenvolvimento da crítica literária brasileira do século XIX, principalmente na produzida por Machado de Assis.

Naquele momento, as convicções de Madame de Staël eram muito presentes; a escritora apontara-se como precursora da crítica moderna. E, no Brasil, a chegada de obras como De la littérature, De l’Influence des passions e De l’Allemagne garantiam a circulação de suas ideias no meio crítico, sendo recepcionadas por autores como Machado de Assis.

Inserida nessa perspectiva dialógica entre Staël e Machado, nota-se ainda, como aponta Mussulini (2018), que o autor brasileiro “estabeleceu um padrão de referência: Madame de Staël”, e que, em diversas outras alusões à intelectual franco-suíça, ela representava um apelo à autoridade, não só como exemplo de intelectualidade feminina, mas também como modelo de escrita (MUSSULINI, 2018, p. 69). A pesquisadora ainda destaca que a aproximação entre os dois pensadores se mostra também em suas convicções sobre as relações entre a literatura nacional e a estrangeira, o que está intimamente ligado à noção de nacionalidade.

O artigo de Dayane Mussulini está balizado pela reivindicação machadiana à formação intelectual da mulher no Brasil, o que tematiza outro texto crítico escrito na “Semana Litterária”. Na edição de 10 de abril de 186676, Machado volta a defender a instrução intelectual feminina ao escrever sobre a coletânea de versos Ecos da minha alma, de Adélia Josefina de Castro e Fonseca. Machado lamenta a pouca presença de mulheres protagonistas no ambiente literário e aponta a razão da quase total exclusividade masculina:

Se não as há em abundância, também não são raras as escritoras em nosso país; e se não tivemos uma Stäel, nem por isso deixa de haver talentos notáveis. Estamos certos de que os resultados seriam mais brilhantes, se acaso fosse mais larga a educação intelectual; havia lugar para se manifestarem os verdadeiros

75 ASSIS, Machado de. DIARIO DO RIO DE JANEIRO, 1866, p. 2. Acervo da Hemeroteca Digital, BN

DIGITAL. Disponível em

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=094170_02&pasta=ano%20186&pesq=%22une%20femm e%20publie%20un%20livre%22&pagfis=20401. Acesso em 11 de maio de 2020.

92 talentos, quando os houvesse; e em caso contrário os estudos adequados, regulares, próprios, não seriam nocivos ao espírito das esposas e das mães de família. (ASSIS, 1866, p. 2)

Novamente Machado recorre ao exemplo de Madame de Staël para argumentar que há “talentos notáveis” no Brasil e que, sendo Staël uma mulher e tendo alcançado as glórias da literatura, é possível que as escritoras brasileiras, seguindo aquele exemplo e recebendo uma formação adequada, tal como os homens, podem tornar-se grandes intelectuais. Não havendo talento para as artes, Machado insiste que os estudos regulares lhes seriam benéficos.

Assim como defende Madame de Staël, Machado acredita que “a contemplação do belo não é incompatível com a prática da moral” (ASSIS, 1866, p. 2). Isto é, os dois intelectuais partilham da ideia de que a literatura e a moral devem caminhar juntas no intuito do aprimoramento humano.

Ancorado na máxima de Staël de que “o gênio não tem sexo”, como está comprovado em texto de “A Semana”77, desta vez na Gazeta de Notícias, em que o brasileiro cita o excerto da francesa, Machado enaltece a complexidade do drama de Maria Ribeiro em detrimento de uma “simplicidade antiga” em peça de José de Alencar ao poetizar o tema da escravidão. Já na crítica a Ecos da minha vida, Machado de Assis, em tom irônico, induz que o público que ignora a obra de Adélia Josefina de Castro e Fonseca é o mesmo que reconhece os vibrantes elogios nos versos oferecidos a ela por Gonçalves Dias. Ambas as comparações são mostras do talento feminino e da capacidade poética e intelectual das mulheres defendida por Machado.

No final de sua crítica, o autor destaca a sensibilidade de Ecos da minha vida, cotejando que “a autora deste livro não esqueceu que sensibilidade devia ser o primeiro elemento dos seus escritos; fê-lo: é um livro sincero, sobre ser um livro de talento” (ASSIS, 1866, p. 2). Por sinal, a sensibilidade e o talento somados à ideia são dotes da natureza (STAËL, 1945, p. 20) que Madame de Staël empresta à sua Corinne:

[...] porém haveria alguém que se pudesse comparar a Corina? Poder-se-iam aplicar leis e regras gerais a uma pessoa que reunia em si tôdas as qualidades, ligadas ao talento e à sensibilidade? Corina era um milagre da natureza; não devia Oswald sentir-se lisonjeado por haver interessado uma tal mulher? (STAËL, 1945, p. 95).

93 Sendo assim, os pressupostos da imaginação, da sensibilidade da obra, do talento feminino e da necessidade de cultivá-lo em nosso meio são balizas da crítica de Machado de Assis tanto na “Semana Literária” quanto na “Semana”. Conforme registramos, ele constrói seu pensamento associado ao paradigma de Madame de Staël, recorrendo, notadamente, ao exemplo de Corinne. É importante frisar, além do mais, com Dayane Mussulini, que,

a parentemente, o autor se mostrou favorável à permanência das mulheres no meio intelectual, garantindo que havia muito a ganhar com isso. Aliás, esse é um pensamento também compartilhado por Madame de Staël, que sinalizava, tal como o cronista, para a falta de instrução formal das mulheres daquela época fator agravante de sua condição e de seu afastamento da prática literária (MUSSULINI, 2018, p. 74).

Posto isso, verificamos que a presença de Staël nesses textos, mediante a convocação dialógica de Machado com a obra francesa, ocorre em pelo menos dois níveis: um que estabelece os aspectos poéticos necessários aos princípios críticos de uma obra literária, e outro que recorre à necessidade da imersão da mulher no meio literário e intelectual. Nos casos analisados, estes dois pontos são argumentos que norteiam a troca de ideias via diálogo crítico.