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O capítulo 24 do romance Esaú e Jacó, de 1904, é bastante significativo para a compreensão das ideologias nutridas no Brasil daquela época e para os feitios dos gêmeos Pedro e Paulo, protagonistas da narrativa. Aliás, o romance está repleto de alusões à situação política brasileira. Sem dúvidas, o capítulo de que falamos merece uma observação crítica mais demorada se nos debruçássemos sobre essa leitura político-ideológica amplamente possível e necessária do mesmo. Porém, o que nos chama a atenção nele é a presença de um retrato de Madame de Staël como mostras da circulação de objetos simbólicos na sociedade carioca e o seu papel na escrita machadiana.

Na concepção de Michel Espagne (2017, p. 138), “pode-se muito bem representar as transferências com base na circulação de objetos, como livros ou obras de arte”. Os retratos estão entre objetos estrangeiros que chegam à capital do império e são postos à venda em pequenos estabelecimentos nas ruas cariocas, como ocorre no capítulo 24 de Esaú e Jacó. Basta um sutil olhar para percebermos que a presença de retratos importados sendo comercializados não é algo gratuito. Que tipo de retrato circula? Quais as personalidades representadas neles? Sem dúvidas, esses fatores são fundamentais, uma vez que esses objetos são bens simbólicos que veiculam ideias, doutrinas, ideologias.

69 Banco de dados da BN Digital, Hemeroteca Digital. Disponível em

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=094170_02&pasta=ano%20186&pesq=%22n%C3%A3o% 20privo%20com%20as%20musas%22&pagfis=21551. Acesso em 27 de março de 2020.

82 Por esse ângulo, compartilhamos da lógica de que “tornar-se atento às transferências culturais envolve revisar, pelo menos de forma virtual, as estruturas da memória coletiva das bibliotecas e dos arquivos, à procura de itens importados, muitas vezes marginalizados” (ESPAGNE, 2017, p. 139). Ora, a importância da observação desses itens tem encontrado abrigo muito recentemente nos estudos literários, tendo ficado à margem das histórias oficiais. Ignorar esses elementos quer dizer deixar de fora uma gama de possibilidades de compreensão e de observação que contribuem de maneira bastante decisiva para o trânsito de significados históricos.

O narrador de Esaú e Jacó dedica um capítulo ao episódio dos retratos. Nesta parte, denominada “Robespierre e Luís XVI”, é narrada a entrada dos irmãos Pedro e Paulo em uma loja de vidraceiro onde se achavam “retratos velhos e gravuras baratas” (ASSIS, 2012, p.80). A umbilical rivalidade atrelada aos princípios ideológicos dos gêmeos reflete na escolha dos retratos comprados ali. Pedro, “dissimulado”, de orientação monarquista, opta por comprar um retrato de Luís XVI; Paulo, “agressivo”, de perfil revolucionário e republicano, escolhe um de Robespierre. Vê-se, a partir daí, que a presença dos retratos dos dois personagens da Revolução Francesa evoca a circulação de ideias daquele movimento no Rio de Janeiro da época. Os irmãos representam, metonimicamente, os dois lados da sociedade, dividida entre os que defendiam o regime monárquico e os republicanos. Como sabemos, Esaú e Jacó é ambientado justamente no período eufórico da Proclamação da República no Brasil. A diferença de preço entre os dois retratos é motivo de revolta por parte de Pedro, já que, custando oitocentos reis, a figura de Luís XVI, “o rei mártir”, era desvalorizada em prol da de Robespierre, que custara mil e duzentos. Estaria Machado insinuando uma maior valorização da ideologia republicana no Brasil?

A rinha dos irmãos de ideias políticas contrárias e pontos de vista extremamente diversos é, por demais emblemática, haja vista a presença sugestiva dos dois retratos carregados de sentido. O antagonismo dos gêmeos é esquecido na presença de um outro retrato trazido pelo lojista:

Foi a um canto e trouxe um retrato de Madame de Staël, com o famoso turbante na cabeça. Ó efeito da beleza! Os rapazes esqueceram por um instante as opiniões políticas e ficaram a olhar longamente a figura de Corina. O lojista, apesar dos seus setenta anos, tinha os olhos babados. Cuidou de sublinhar as formas, a cabeça, a boca um tanto grossa, mas expressiva, e dizia que não era caro (ASSIS, 2012, p. 81).

83 A intervenção do famoso retrato de Madame de Staël no meio da discussão entre os irmãos, fazendo-os ignorar naquele instante suas diferenças, reitera o aspecto mediador das ideias da pensadora. Tanto na política, nos assuntos nacionais como na literatura, salvas suas crenças defendidas, Staël prega o diálogo entre os rivais e entre as nações de modo a anular o poder separatista e excludente das opiniões contrárias. O poder que o retrato emana naquele ambiente anula todas as divergências, sugestivamente através da beleza. Em obras como Corinne ou l’Italie (1807) e De l’Allemagne (1813), a autora discute o conceito do belo e difunde ideais de conciliação, diálogo e comunicação entre nações, agindo como uma mediadora de ampla relevância no que se refere à transnacionalidade da cultura e da literatura. Percebemos também que o narrador une a figura de Madame de Staël à de sua personagem, a italiana Corinne, do romance Corinne ou l’Italie, o que dá a entender que, para Machado, a autora fala dela mesma ao criar sua personagem, como quase sempre se assume pelos seus biógrafos e críticos. A alusão também provavelmente está relacionada com o perfil romântico de Flora, por quem os dois irmãos competem: “quem a conhecesse por esses dias, poderia compará-la a um vaso quebradiço ou à flor de uma só manhã, e teria matéria para uma doce elegia” (ASSIS, 2012, p. 93).

Além dos três retratos mencionados, ainda aparecem nesse capítulo um da deusa romana Diana, um de D. Pedro I e um de D. Miguel de Bragança, que é vendido no capítulo seguinte a um outro cliente. Estão aí muito bem representadas as culturas latina, portuguesa e francesa. Isto evidencia que

a mobilização de um elemento de memória estrangeira não é fortuita. Quando se busca nos estratos da memória um elemento estrangeiro ao contexto de recepção, geralmente é para atender a um grupo de objetos relevantes desse mesmo contexto de recepção. (ESPAGNE, 2017, p. 139).

As palavras de Michel Espagne (2017) nos remetem ao uso que Machado de Assis faz de outra referência a Madame de Staël e à sua personagem em crônica do dia 8 de janeiro de 1893, na coluna “A Semana”, da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, o cronista lamenta uma deliberação do governo municipal em desfavor de pequenas vendas de calçada. Como a prefeitura ordenasse a retirada delas, Machado comenta “a desolação da rua Primeiro de Março” como “um dos espetáculos mais sugestivos deste mundo”. Fazendo um resgate memorável das ruas, o cronista faz alusão a Germane de Staël:

Em verdade, a posse das calçadas é antiga. Há vinte ou trinta anos, não havia a mesma gente nem o mesmo negócio. Na velha

84 Rua Direita, centro do comércio, dominavam as quitandas de um lado e de outro, africanas e crioulas. Destas, as baianas eram conhecidas pela trunfa, — um lenço interminavelmente enrolado na cabeça fazendo lembrar o famoso retrato de Mme. de Stäel. Mais de um lord Oswald do lugar, achou ali a sua Corina. Ao lado da igreja da Cruz vendiam-se folhetos de vária espécie, pendurados em barbantes. Os pretos minas teciam e cosiam chapéus de palha. Havia ainda... Que é que não havia na Rua Direita? (ASSIS, 1893, p. 1)70

Nesta menção, Machado transfere à crônica de “A Semana” o par romântico do romance Corinne ou l’Italie, lord Oswald e Corina, assim como a sua autora Madame de Staël. Com quase um século de distância entre a crônica e a publicação de Corinne, o cronista atualiza o sentido da obra ao conferir atmosfera romântica à rua, rememorando os namoros ali começados. Dessa vez, nosso autor não apresenta um retrato físico, uma mercadoria, um objeto; mas faz associação das baianas ao retrato de Staël, dada a semelhança das trunfas daquelas com o turbante desta última. A formosura brasileira das baianas é comparada à beleza da baronesa num movimento de aproximação das imagens, geradas em contextos e momentos tão diversos. Aqui as culturas entram em contato fundindo-se, no texto de Machado, de modo a reverberar a sua condição de leitor do romance francês staeliano, dado que o artefato da moda, a trunfa, torna-se o pivô da aproximação entre as culturas. É a atitude de memória imagética do escritor carioca que projeta a relação de transferência cultural.

Por fim, cumpre-nos lembrar que a venda de retratos de autores estrangeiros parece uma estratégia bem frequente daquela época. Nos anúncios dos jornais cariocas de então, comumente nos deparamos com oferecimentos desses objetos à venda. Só para exemplificarmos, podemos citar anúncio no Jornal do Commercio (RJ) de outubro de 1891 no qual junto à obra De l’Allemagne, oferece-se um “esplendido retrato da autora”71, como ocorre também em outro anúncio no mesmo jornal em que se encontram à venda as obras completas de Staël em francês com o retrato da autora.72

70 JORNAL GAZETA DE NOTÍCIAS (RJ), 08 de janeiro de 1893, Edição 0007. Hemeroteca Digital da Biblioteca

Nacional.

71 JORNAL DO COMMERCIO, 2 de outubro de 1891, p. 9. (Acervo BN Digital) 72 JORNAL DO COMMERCIO, 2 de outubro de 1878, (Acervo BN Digital)

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4 MADAME DE STAËL NA CRÍTICA MACHADIANA: DIÁLOGO, EVIDÊNCIAS E