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Reflexos da recepção da obra de Madame de Staël no contexto da conduta moral

Se a obra está diretamente ligada ao seu contexto de produção e, se é verdade, como afirma Bourdieu (2002), que os textos circulam desligados desse contexto, a chegada de tal obra em outros contextos de destino propiciará diferentes interpretações, cuja manipulação, a transformação e o esfacelamento de seu sentido inicial darão origem a um novo (ou a novos) sentidos, dado o fenômeno da recepção literária. Envolvidos nisso estão múltiplos e diversos aspectos: o modo de circulação, o público a que se destina, as dinâmicas comerciais, a tradução, os interesses das classes que detém o poder de produtividade, as instâncias de legitimação, dentre tantos outros.

Considerando tudo isso, e a questão central de o texto circular sem o seu contexto de produção, sujeito a uma série de efeitos de transformação, é possível que se apontem veredas diversas para a recepção da obra de Madame de Staël no Brasil durante o século XIX? Que aspectos nortearão os novos sentidos para estes escritos no Rio de Janeiro do oitocentos? Longe de elucidarmos detalhadamente essas questões, buscaremos, aqui, pensá-las sob a esfera do uso desses textos no contexto da educação das mulheres cariocas do oitocentos. Nos valemos, primordialmente, de alguns estudos que aludem a essa temática.

O primeiro desses estudos é o de Augusti (1998), que nos apresenta um termo bastante viável à circulação de obras com caráter moralizador: “literatura prescritiva”, explicitado pela autora como uma expressão que faz alusão a um conjunto de obras que manifestam a intenção de “prescrever valores e padrões de conduta”. E, mediante a consulta a catálogos das livrarias e arquivos de bibliotecas oitocentistas, o estudo atesta que

a forte presença do que passei a chamar de ‘literatura prescritiva’ no mercado livreiro e, também, nos arquivos de algumas bibliotecas fluminenses de uso coletivo, vinham confirmar o interesse do público leitor em ter conhecimento sobre os comportamentos considerados adequados às mais diversas situações de convívio social. (AUGUSTI,1998, p. 8)

O riquíssimo material de pesquisa contido nas fontes utilizadas pela autora permite comprovar a manipulação de determinadas obras para uso e orientação moralizante. Os

61 catálogos dos livreiros, os textos das propagandas nos anúncios de jornais e a forma de categorização das obras nas bibliotecas revelam um intuito de cultivar padrões sociais aceitáveis nos jovens e, principalmente, nas mulheres.

O estudo de Augusti (1998) abrange toda e qualquer obra que venha a apresentar este intuito de forma clara. Desse modo, a pesquisa abrange, por exemplo, produções como Educação das meninas, de Fénélon, coletânea Fabulistas da mocidade ou fábulas selectas d’Esopo, Lafontaine, Florian, etc., e obras como O Jardim da Mocidade ou Bibliotheca Romantica e Moral, e Contos e Historietas proprios a formar o coração e a inspirar o amor da virtude. Dedicado ás Mãis de família e Leituras Juvenis e Moraes, para uso de meninas de 6 a 7 annos. Títulos como estes, de objetivo claro, apareciam, nos catálogos, em seções próprias deixando óbvia a finalidade instrutiva, a moralidade e a educação social. Essas obras listadas aparecem na seção “VII. Educação, Instrucção e Recreio da Mocidade”, do Catálogo N° 1 da Livraria Universal E. & H. Laemmert”.

No entanto, buscamos restringir ainda mais esse caminho na busca pelas obras de Madame de Staël tomadas com essa finalidade ou que se poderiam encaixar no termo “literatura prescritiva”, cunhado por Augusti (1998).

Conforme esta pesquisadora, é no texto Essai sur les fictions suivi de l'influence des passions sur le bonheur des individus et des nations (1795) que Madame de Staël empreenderá a “tentativa de mostrar que o romance é a mais útil das ficções” (AUGUSTI, 1998, p. 66). Como já deixamos registrado antes, essa obra circulava no Rio de Janeiro, o que atestam os anúncios do Jornal do Commercio. Consoante a pesquisadora, a noção de utilidade atribuída ao gênero romance, defendida por Madame de Staël em Influência das Paixões, parte do princípio de que o romance é um gênero que tem o poder de sensibilizar o indivíduo leitor e, através das emoções suscitadas, cultivar os preceitos morais benéficos a ele. Desse modo, Staël se diferencia dos moralistas por excelência, pois acredita que para educar os homens “é necessário sensibilizá-los, emocioná-los, e este papel a ficção cumpre exemplarmente na medida em que põe os conteúdos morais em ação” (AUGUSTI, 1998, p. 67).

Como expõe Augusti (1998), existe, portanto, em Influência das Paixões, um debate sobre a eficácia instrutiva e moral no conjunto das obras, sendo que, para Madame de Staël, as ficções, a saber, o romance é o gênero literário que consegue influir, por meio das emoções humanas, no caráter pessoal; ao passo que as obras didáticas, como os manuais de conduta,

62 [...] não saberiam entrar em todas as nuances da delicadeza, detalhar todas os recursos das paixões. Pode-se extrair de bons romances uma moral mais pura, mais elevada que de qualquer obra didática sobre a virtude; este último gênero, tendo mais aridez, é obrigado a uma maior indulgência: e as máximas que devem ser de aplicação geral não atingem jamais esse heroísmo de delicadeza, cujo modelo pode ser oferecido, mas de que seria razoavelmente impossível fazer um dever (STAËL, 1979, p. 27 apud AUGUSTI, 1998, p. 68-69. Tradução da autora)

Cientes da circulação de Essai sur les fictions suivi de l'influence des passions sur le bonheur des individus et des nations, pode-se deduzir que havia, portanto, por parte de determinada classe social e intelectual, a preocupação com a natureza moral das obras disponíveis nas livrarias, gabinetes de leitura e bibliotecas. O ensaio de Madame de Staël possivelmente influiu sobre a concepção de romance no século XIX, como também pode haver norteado o uso dos romances para fins de orientação moral. Como vemos, essa questão diz respeito, pois, de um fenômeno de recepção em que o contexto de chegada do texto atua como transformador, instigando mutabilidades na vida social dos indivíduos. No caso carioca, as obras tinham um destino claro: os jovens e, principalmente, as mulheres.

Madame de Staël não fala exclusivamente para mulheres. Sua obra, aliás, está muito direcionada aos homens, dado o seu lugar de decisão nos assuntos coletivos. Ela aponta que

as ficções existem para seduzir; e quanto mais o resultado ao qual gostaríamos que elas tendessem é moral ou filosófico, mais devemos enfeitá-las de tudo aquilo que pode emocionar e conduzir ao resultado sem indicá-lo previamente (STAËL, 2012, p. 67)

Isso nos leva a pensar em aspectos formais e estruturais de romances brasileiros do oitocentos. Machado de Assis quase sempre se dirige a uma “leitora”, a uma “amiga”; grande parte de seus contos, especialmente os seus primeiros, foram publicados em periódicos destinados a mulheres, moças e mães. O seu editor, B. L. Garnier, mantinha uma linha editorial no sentido de falar a esse público, como em o Jornal das Famílias, que disponibilizava às leitoras “seções úteis ao cumprimento de seus papéis: Economia Doméstica, moda, poesia e narrativas com personagens femininas premiadas por seguirem as normas e punidas por transgredi-las” (PINHEIRO, 2004, p. 115). Desse modo, poderíamos salientar que Machado de Assis, aderindo ao “programa” de Garnier, “captou” esse atributo das ficções, defendido por Staël, se utilizando de tal convicção no intuito de falar à sua “leitora amiga” levando a ela as concepções de conduta, mediante um texto “sedutor”, que

63 toca às emoções, causando-lhe a “aversão pelo vício e amor à virtude” (AUGUSTI, 1998, p. 69). Assim sendo, Machado retrataria, em D. Benedita, da coletânea Papeis Avulsos (1882), a veleidade e a indecisão como vícios da personagem principal, que é “punida” pelo destino ao ver-se envelhecer e não ter materializado a ideia do casamento, caminho para a felicidade dela, virtude da mulher. Esse quadro reincide em A Flor Anônima (1897), ao passo que o “prêmio” de Ângela é a realização pessoal por meio do casamento com o jovem que narra a história, em Felicidade pelo casamento (1866).

Conforme Assumpção (2015, p. 32), o artigo 1° dos “Estatutos da Biblioteca Fluminense” postula que “A associação denominada Bibliotheca Fluminense, tem por fim estabelecer na cidade do Rio de Janeiro uma biblioteca que sirva para a leitura e instrucção de seus membros”. Com este objetivo, a biblioteca, dentre os seus 34.000, volumes em 1866, ano de publicação do Catálogo dos Livros da Biblioteca Fluminense, dispunha do romance Corinne ou l’Italie, de Madame de Staël, em francês (edição de 1841) e em português (edição de 1834) (ASSUMPÇÃO, 2015, p. 31 e 66).

Para considerarmos uma concepção geral, notamos que, a partir do discurso dos anúncios nos jornais, os editores e comerciantes de livros contribuem para a impregnação da ideia de utilidade moral e conduta familiar às obras de Madame de Staël. Vejamos uma mostra disso. A edição 0021854 de 1838 do Jornal do Commercio, em sua página 4, divulga: “Maximas Moraes e politicas, bons sentimentos delicadamente expressados, colhidos na leitura de M. M. de Chateaubriand, Staël, Arlincourt, de Maistre e outros: eis o objeto desta obra [...]”. Em outro anúncio, se oferece uma valsa, chamada “Cupidinho das Meninas”, junta com uma edição da “Marmota de Hoje que trata de Mme. de Stael”55;

Na contramão da circulação de obras de Madame de Staël e na apropriação destas com finalidade educativa e moral, Neves (2002, p. 7) constatou que houve proibição na circulação de uma obra da escritora francesa. Trata-se da Revolução Francesa. Analisando a documentação e pedidos de liberação de obras da Mesa do Desembargo do Paço, Neves observou que, dentre os muitos livreiros e editores franceses que trabalharam no Brasil, estava Dalbin:

Um outro francês que também se especializou no comércio de livros foi Pierre Constant Dalbin, natural de Versalles, chegado da França em 1816. Segundo o Registro de Estrangeiros, permaneceu no Brasil até 1821, mas ainda em setembro de 1822 encontra-se um pedido de liberação de livros seus na Mesa do Desembargo do Paço (NEVES, 2002, p. 6.)

54 JORNAL DO COMMERCIO, 1 de outubro de 1838. (Acervo BN Digital) 55 JORNAL DO COMMERCIO, 25 de maio de 1852, p. 3. (Acervo BN Digital)

64 A Revolução Francesa encontra-se entre as obras reclamadas por Dalbin à Mesa do Desembargo do Paço, conforme atestou a pesquisadora:

Em outro documento, datado de setembro de 1822, aproveitando um momento de relativa liberação da censura, Dalbin reclamou ao Desembargo do Paço uma série de livros, possivelmente apreendidos desde que iniciara suas atividades. A relação que elaborou então incluída (sic) vários títulos proibidos, como as Cartas Persas de Montesquieu, a História do Brasil de Beauchamps, as Cartas de Emília sobre a Mitologia – considerado imoral devido a passagens obscenas e indecentes – a História Natural de Diderot, a Revolução Francesa de Mme. de Staël, e outros. (NEVES, 2002, p. 7)

Na listagem dos anúncios do Jornal do Commercio, que apresentamos acima, verificamos que esta obra de Staël aparece nesses anúncios. Fato esse que comprova a circularidade da obra posteriormente. Então, em tempos que antecedem os movimentos de Independência do Brasil, as Considérations sur la Révolution Française têm circulação vetada pelos órgãos de censura portugueses; ao passo que, anos após a Independência, a obra circula normalmente, conforme atestam os anúncios das edições de 28 de agosto de 1832, 19 de novembro de 1884, 15 de fevereiro de 1889 e 22 de abril de 189056, e “Catálogo dos Livros da Livraria Fluminense” (1866), tal como expressamos antes.

Essas constatações presumem o fato de como o momento político e ideológico, inserido no contexto de recepção literária, influi sobre a circulação de determinadas obras, assumindo uma posição central na historiografia literária nacional. Dentre outros encaminhamentos, uma reflexão sobre a história literária brasileira não prescinde ou não deve prescindir da averiguação do papel de livreiros e editores nesse momento histórico, uma vez que

esses livreiros franceses no Brasil trouxeram, em geral, uma literatura proibida, relacionada às ideias do liberalismo e do constitucionalismo, e contribuíram assim para a elaboração de uma cultura política nova às vésperas da independência. (NEVES, 2002, p. 7)

Entendendo dessa maneira, esses profissionais, cuja historiografia tradicional pouquíssimas vezes os menciona, desempenharam uma função no clima literário em formação

65 no século XIX que não deve ser negligenciada pelos estudos literários. Mais que isso,o seu papel reflete, portanto, nos caminhos culturais e nos acontecimentos históricos do Brasil.

Os desencontros entre proibição e circulação das obras de Madame de Staël revelam, de outro modo, diferentes leituras mediante contextos diversos. Ora, algumas obras de Madame de Staël servem ao ambiente nacional enquanto orientadoras da conduta moral feminina; ora, encontramos o registro da proibição de ideias da autora mediante o fomento de convicções políticas contrárias ao governo brasileiro de determinada época. Melhor do que falar em recepção dessa obra é falar em momentos de recepção, já que são objetos culturais de grande efeito e que, como vimos, circulam durante todo um século no Brasil.

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3 O LUGAR DE MME. DE STAËL NOS ESCRITOS MACHADIANOS: (FICÇÃO, CARTAS E CRÔNICAS)

Em diversos momentos de sua obra e de sua vida, Machado se refere a Madame de Staël. Essa espécie de lugar garantido pela baronesa de Staël-Holstein aponta o aspecto dialógico da escritura machadiana. Nesta parte, nos deteremos em identificar e analisar como se configura tal lugar da autora no pensamento do Bruxo do Cosme Velho.