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4 MADAME DE STAËL NA CRÍTICA MACHADIANA: DIÁLOGO,

4.1 Madame de Staël na estante machadiana

Alguns estudos têm se dedicado às investigações sobre o acervo bibliográfico de Machado de Assis. Por um lado, essas pesquisas tentam esclarecer alguns pontos de sua obra mediante a intertextualidade relacionada à factualidade da presença de autores diversos no que restou de acervo; por outro lado, a partir da catalogação feita por Jean-Michel Massa (1961), os olhares para a biblioteca do escritor têm destacado a importância da análise desses elementos e estimulado outros estudos. No entanto, por outro viés, acabaram por revelar o descaso para com o acervo, o que se percebe pelas mutações (perdas e possíveis enxertos) porque passou a biblioteca do Bruxo.

Sem nos atermos a isso, voltamo-nos às pesquisas que, por intermédio da catalogação, registraram a presença de obras de Madame de Staël naquele acervo. Em 1961, o pesquisador francês Jean-Michel Massa publicou na Revista do Livro, n° 21 e 22, o estudo La bibliothèque de Machado de Assis, onde apresenta uma catalogação das obras baseada em domínios linguísticos. A esmagadora maioria das obras encontra-se em língua francesa, são originais do idioma e traduções francesas de obras de outras línguas.

Catalogadas sob os números 646 e 647, no domínio francês do século XIX, estão as seguintes obras de Madame de Staël, assim categorizadas: “646. STAEL, Madame de. Corinne ou l’Italie. Nouvelle édition. Paris, Garnier, (s.d.). [Livraria enciclopédica Fauchon e Cia].” e “647. STAEL, Madame de. De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales par (...). Paris, Charpentier, 1860. [Garnier].” (MASSA, 1961, p. 235). O

86 estudo de Massa foi também publicado em 2001, em A biblioteca de Machado de Assis, sob organização de José Luiz Jobim, pela Topbooks em coedição com a Academia Brasileira de Letras.

Uma nova catalogação voltaria a ser elaborada em 1990 pela pesquisadora Glória Vianna, que verificou mutações no acervo. O estudo de Vianna mostrou que 77 dos exemplares catalogados por Jean-Michel Massa não foram localizados, o que configura extravio ou perda dos livros. Além disso, a pesquisa aponta que

o fato de verificarmos que 89 volumes da Biblioteca de Machado haviam sido carimbados com o nome de E. Leitão de Carvalho, esposo da herdeira do escritor, gerou muita inquietação, pois tal observação poderia levar-nos a supor que a biblioteca fora enxertada com os livros do Sr. Leitão de Carvalho... Mas, curiosamente, dentre os 89 volumes nos quais encontramos o referido carimbo, cinco estavam dedicados a Machado de Assis (VIANNA, 2001, p. 105)

Dentre os exemplares não localizados, não estão as obras de Madame de Staël, pois, mediante pesquisa ao acervo da biblioteca de Machado no site da Academia Brasileira de Letras73, verificamos a presença dos dois livros, ainda catalogados com os mesmos números de registro apresentados por Massa (1961).

Em pesquisa mais recente, Luciana Antonini Schoeps, da Universidade de São Paulo, alerta “para o fato de esta última catalogação pública da biblioteca machadiana estar completamente defasada, sendo urgente a publicação de um catálogo atualizado das obras pertencentes a Machado” (SCHOEPS, 2013, p. 65-66).

Esta última pesquisa volta-se para a biblioteca machadiana objetivando desvendar a relação existente entre leitura e escrita, partindo do pressuposto de que aquele espaço configura-se “lugar privilegiado do encontro entre leitura e escrita, a fim de melhor compreender a interdiscursividade inerente à escritura machadiana” (SCHOEPS, 2013, p. 67). Como campo de análise da interdiscursividade no texto de Machado de Assis, conforme pondera a pesquisadora, devemos levar em consideração as transformações sofridas pelo acervo e ainda o fato de que, assim como a ausência de uma obra não pode significar que Machado não tenha lido ou tido contato com esta, “da mesma forma, sua presença não prova nada além de um eco, uma reminiscência, uma pista, um ar familiar que vem confirmar sua presença ou sua lembrança na obra de Machado de Assis” (MASSA, 2001, p. 32).

73 Biblioteca Acadêmico Lúcio de Mendonça, Portal da Academia Brasileira de Letras. Disponível em

87 No caso da presença das obras de Madame de Staël, observamos referência direta ao romance Corinne ou l’Italie, livro presente em sua biblioteca de acordo com Massa (1961). A citação direta e a reincidência de alusões à personagem principal nos levam a acreditar que Machado leu o romance. Já com relação à outra produção staeliana exposta na biblioteca, segundo Massa, a obra crítica De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, não localizamos nenhuma menção de Machado, o que reitera a concepção de Jean-Michel Massa sobre a vulnerabilidade quanto a certas conclusões de leituras baseadas na presença ou não de obras em sua biblioteca.

Semelhante a Schoeps (2013), que propõe uma relação de confluência entre a biblioteca “real” e a biblioteca “ficcional”, Mussulini (2020) também aborda a dupla face do acervo machadiano. Para a primeira, a importância da biblioteca real decorre do “que ela tem de virtual, para o que ela potencialmente nos aponta como sendo uma relação material e discursivamente mais fluida entre leitura e escrita” (SCHOEPS, 2013, p. 67); já Dayane Mussulini se refere a uma biblioteca “física” e uma “intelectual”, que “estabelecem relações entre si em diversos níveis”, sendo que esse acervo de dupla realidade é revelador “não só de suas leituras, mas também de seu desdobramento enquanto escritor” (MUSSULINI, 2020, p. 15-193). A autora defende a importância das pesquisas sobre a biblioteca dos escritores ao proferir que

conhecer a biblioteca de um poeta, ficcionista, crítico ou jornalista pode ser de interesse capital para compreender os caminhos que ele trilhou. Desse modo, tal prática colabora para construir a história da leitura e da formação intelectual do escritor, revelando também momentos significativos de sua biografia, bem como funciona para remontar a gênese da obra, propondo matrizes e materializando instantes da escritura (MUSSULINI, 2020, p. 14).

Rutzkaya Queiroz dos Reis (2008), por sua vez, é quem vai utilizar o termo “uma biblioteca mundial” referindo-se às alusões na poesia de Machado.

A presença de Madame de Staël na biblioteca do autor brasileiro se destaca no âmbito da ideia que propomos por uma série de razões que se justificam pelo que bem cogitou Lopez (2007, p. 33): as bibliotecas dos escritores, “como somatório de títulos, contribuem para a história da leitura; como espaço da criação, ligam-se implícita ou explicitamente à gênese de obras, ao nos propor matrizes e, na marginália, materializar instantes da escritura”. É muito curiosa, porém, a ausência de outras obras de Staël nas estantes machadianas, pois, como veremos mais adiante, Machado, em uma de suas críticas teatrais, faz alusão a uma passagem

88 presente na obra De l’Allemagne (1813) e já sabemos que este livro circulava nas livrarias cariocas daquela época. É curioso ainda pela sua grande importância na produção crítica de Madame de Staël. Desse modo, retornamos mais uma vez ao que nos esclarece Jean-Michel Massa sobre as suposições da ausência ou presença de uma obra numa biblioteca particular. Afinal, nosso Machado foi frequentador costumeiro de livrarias, bibliotecas, gabinetes, saraus e rodas de conversa, locais onde, sem nenhuma dúvida, mantinha contato com muitas obras ausentes de seu acervo.

Por fim, situamos aqui um outro estudo interessante sobre a biblioteca de Machado de Assis. Na teia da interdisciplinaridade que norteia as transferências culturais, vale recorrer à leitura do artigo “Biblioteca de Machado de Assis como fonte de estudo: organização, particularidades e as influências literárias na produção machadiana”, de Celso Lima Latini (2008). Mesmo não concordando com o uso do termo “influência” presente no título, o estudo traz um olhar diferente do das análises literárias, posto que sob a perspectiva da Biblioteconomia e infere que “Machado de Assis é, a exemplo dos grandes intelectuais do século XIX, um produto bem acabado do século das luzes” (LATINI, 2008, p. 5), destacando, a propósito, a vasta presença de filósofos iluministas no Domínio Françês na biblioteca de Machado de Assis, via catalogação de Massa.

4.2 A crítica em diálogo: o exemplo de uma mulher nas “Semanas” machadianas

Neste tópico, vamos arrolar textos de natureza apreciativa aos quais Machado submeteu o seu julgamento, mas apenas aqueles nos quais registramos alusões explícitas às opiniões, às ideias de Madame de Staël e/ou aos que fazem alguma referência de cunho criterioso à autora francesa. Para isso, remetemos a alguns textos das colunas “Semana Litteraria” e “A Semana”, respectivamente publicadas no Diário do Rio de Janeiro e na Gazeta de Notícias. A escolha por essas seções se justifica pelo fato de ter sido nela que apareceram os textos de Machado se referindo a Madame de Staël.

Desde cedo, Machado de Assis começa a escrever textos críticos, muitos deles, hoje extremamente atuais e reconhecidos: desde “O passado, o presente e o futuro da literatura” (1858), passando pela crítica teatral, “O ideal do crítico” (1865), até o famoso “Notícia da atual literatura brasileira: Instinto de nacionalidade” (1873), e “A nova geração” (1879), para citar poucos. O crítico literário Machado de Assis correu sua pena nas diversas colaborações em periódicos oitocentistas, desde jovem, com um olhar perscrutador e embasado. O contato