• Nenhum resultado encontrado

Os primeiros amores não são os mais fortes, quem diz é a Staël. O registro encontra-se em Corinne ou l’Italie, no livro 18, no capítulo 5, intitulado Fragments des Pensées de Corinne. Corinne está em Florença extremamente angustiada e desenganada com o abandono daquele que ela mais amou na vida, o Lord Oswald. O curto capítulo se constitui de 30 rápidos parágrafos, são realmente fragmentos de pensamentos nos quais Corinne expressa a desgraça vivenciada pelo coração enfermo cogitando a sua morte e lamentando o seu desventurado estado de desencanto e de ausência de entusiasmo.

Machado de Assis parece ter lido com bastante afeição este capítulo de Corinne, tendo colhido do seguinte fragmento:

O primeiro amor, que vem da necessidade de amar não é indelével. Porém quando já se conheceu a vida e se encontra o espírito e a alma que em vão procurávamos, a nossa imaginação é subjugada pela verdade e é com razão que sucumbimos à desgraça (STAËL, 1945, p. 256).

Machado, portanto, recorre à máxima staeliana de que os primeiros amores não são os mais fortes, pois eles nascem da necessidade de amar.

Pelo menos, em duas ocasiões, o autor brasileiro faz uso explícito dessa proposição de Staël. A primeira delas, segundo consta no volume 5 da coleção A vida dos grandes brasileiros – Machado de Assis, das Edições IstoÉ, está em uma carta datada de 2 de março. A epístola destina-se à sua esposa Carolina Novais e o ano é, provavelmente, 1869, pois: “No começo de 1869 as doenças de Faustino se agravaram. Carolina subiu com ele para Petrópolis, na esperança da ajuda do clima. Já então se correspondia com Machado. Já estavam unidos pelo amor profundo, da vida inteira” (COSTA, 2001, p. 106). Encontramos referência a essa carta também no site da Academia Brasileira de Letras numa breve apresentação intitulada “Guardados da Memória: Duas cartas de Machado de Assis a Carolina”66, assim como em Barreto Filho (1980, p. 76-77). De acordo com este, a correspondência de Machado fora queimada sob recomendação do autor, sobrando duas cartas, dentre elas, a na qual encontramos a referência ao fragmento de Corinne.

66 Disponível em http://www.academia.org.br/abl/media/RB%2056-GUARDADOS%20DA%20MEMORIA.pdf.

78 De acordo com Lúcia Miguel-Pereira, as cartas são “os melhores documentos para penetrar na sua intimidade”, o veículo de comunicação mais eficaz para os namorados pois, na época, ainda mal visto o futuro casamento pela família de Carolina, os irmãos da moça mantinham vigilância para com os dois (PEREIRA, 1936, p. 125-126).

A sentença de Madame de Staël advoga por Machado, lhe enrijece o argumento do amor pela portuguesa. Fica aparente nesse trecho da carta que “Machadinho” esclarece uma curiosidade, talvez ciúmes, que Carolina expressara também em carta, que ele assume ter recebido. Carolina anseia saber sobre um amor passado ao que Machado explica:

A minha história passada do coração resume-se em dois capítulos: um amor, não correspondido; outro, correspondido. Do primeiro nada tenho que dizer; do outro não me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. Não me acuses por isso; há situações que se não prolongam sem sofrimento. Uma senhora de minha amizade obrigou-me, com os seus conselhos, a rasgar a página desse romance sombrio; fi-lo com dor, mas sem remorso. Eis tudo.

A tua pergunta natural é esta: qual destes dois capítulos era o da Corina? Curiosa! Era o primeiro. O que te afirmo é que dos dois o mais amado foi o segundo.

Mas nem o primeiro nem o segundo se parecem nada com o terceiro e último capítulo do meu coração. Diz Staël que os primeiros amores não são os mais fortes porque nascem simplesmente da necessidade de amar. Assim é comigo; mas, além dessa, há uma razão capital, e é que tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido (ASSIS, 1869, p. 353-354)67.

No excerto, nota-se a extrema atenção que o namorado dava ao seu relacionamento com Carolina e ao fazer uso do fragmento de Staël, Machado revela não apenas ter conhecimento do romance da autora francesa, como também adota o aforisma da personagem à sua própria experiência de vida. Na argumentação a Carolina, percebe-se que a cumplicidade entre os textos não ocorre de modo passivo; Machado soma à razão da “necessidade de amar” uma outra “razão capital”, de modo a complementar o pensamento staeliano.

A inserção de Madame de Staël na carta à futura esposa reflete o hibridismo existente na relação entre a literatura e a vida privada. Machado traz ao universo epistolar íntimo do casal saberes veiculados no romance romântico francês, condição sistematizada por Espagne

67 Guardados da memória. Disponível em https://www.academia.org.br/abl/media/RB%2056-

79 (2017) e enfatizada por Helenice Rodrigues (2010, p. 206) como formas de “imbricações e de seus hibridismos (cruzamentos de gêneros diferentes)”.

Isto posto, é instigante pensar como o olhar sobre a circulação de bens culturais e simbólicos descortina a íntima rede de conexões semânticas estabelecida na história das formações humanas; uma sentença adormecida na página de um romance do início do século, proferida sob condições específicas, é fisgada pelo olhar pormenorizado de um jovem escritor, por sua vez situado num outro momento histórico, que, depois de filtrada e modificada, ganha significação nas páginas de uma outra narrativa ou penetra na expressão mais íntima de um casal apaixonado, através de um outro gênero textual. O trânsito não se faz nessa aparente banalidade. Entre esses dois contextos, um de produção outro de recepção, atuam agentes mediadores muitas vezes esquecidos, quase sempre suprimidos da constituição da história dos povos. Dos agentes, enumeram-se editores, tradutores, comerciantes, viajantes, exilados, grupos de pessoas, atores, músicos, emigrantes; dos fatores, a escolha por uma obra, por uma tradução, motivações comerciais, políticas e ideológicas, intenções pessoais, dentre outros.

Machado voltaria a mencionar o nome de Madame de Staël numa outa carta, desta feita, ao amigo José Veríssimo, datada de 31 de dezembro de 1898.68

O dito da personagem de Staël irá ressoar num outro diálogo machadiano, desta vez no romance Ressurreição, de 1872, publicado pela Garnier. É Lívia que, revolvendo o passado, tal como o faz Machado, tal como o faz Corinne, compartilha do mesmo pensamento sobre os primeiros amores. A experiência do insucesso dos amores juvenis faz com que o criador e a criatura adotem a reflexão de Madame de Staël. Um outro aspecto interessante que não se deixa ignorar é a semelhança entre as atitudes dos pares de personagem de Corinne ou l’Italie e de Ressurreição: Corinne e Lívia amam e se entregam, são mulheres decididas e externam as certezas e emoções; Lord Oswald e o Dr. Félix não se entregam de todo, hesitam em assumir a relação, fogem da felicidade ou parecem não crer nela. O abandono temeroso contrasta com a entrega. Lívia não é tão romântica para morrer de amor, mas carrega também as suas desgraças, parece fazer jus à palidez emocional de suas chagas evocada no nome que carrega.

Machado não nos deixou evidências suficientes de uma possível inspiração em Corinne, entretanto, Lívia “já é uma dessas figurinhas tão numerosas em sua obra, ‘que ele esculpia meticulosamente, servindo-se da matéria-prima admirável e duradoura que foi tomar

68 Biblioteca Digital de Literaturas de Língua Portuguesa. Disponível em Disponível em

80 à oficina dos grandes clássicos’” (ALVES, 1908, p. 116). Já vimos, então, que no trato com a obra de Staël e de tantos outros autores, Machado não apenas se “serve” de modo sumariamente imitativo, ele provoca o diálogo mediante a adaptação. O imediato fato de traduzir a sentença nos dois casos analisados já sinaliza a “passagem de uma cultura para outra” (PASSOS, 2006, p. 81).

Os momentos de leitura de Machado de Assis são comprovados em toda a sua obra: são incontáveis menções a autores estrangeiros e nacionais, obras antigas e contemporâneas suas, como atesta Marta de Senna (2008); tais momentos refletem nos seus personagens:

Os personagens dos contos de Machado lêem reclinados sobre um sofá, ou estendidos num divã, ou deitados na cama, ou diante de uma escrivaninha, ou de pé. Lêem no escuro e no claro, com a luz do dia e com luz de vela ou de um candeeiro de querosene. Lêem trancados no quarto. Lêem para matar o tempo. Lêem para chamar o sono. Lêem até cansar de ler. Lêem pela satisfação dos sentidos. Lêem para fazer uma digestão literária, porque ler depois de jantar é excelente. Ou nunca lêem depois do jantar, porque ler depois de jantar perturba a digestão. Lêem e transportam-se ao tempo da obra. Lêem os grandes nomes literários da época. Lêem em francês. Conversam sobre livros. Citam banalidades de romances para puxar assunto. Lêem em voz alta para os outros. Lêem para ensinar e para saber mais coisas sobre o mundo. Enterram a cara nos livros. Mergulham no meio de uma chusma de livros. Enlouquecem de tanto ler e adoecem de tanto ler. Lêem tanto que a cabeça lhes pende um pouco para a frente. Lêem mais de um livro por vez. Lêem um mesmo livro várias vezes, cinco vezes, ou sete vezes, ou onze vezes, ou mais de vinte vezes. Lêem romances todos os dias. Lêem o dia inteiro. Lêem livros sobre música e sobre pintura, sobre a vida psíquica dos animais, sobre a anatomia dos olhos e sobre as razões físicas e metafísicas do amor. Lêem às carreiras, como quem vai salvar o pai da forca. Ou lêem devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre as letras. Marcam a página com um lenço, com uma conta do alfaiate, com uma tira de papel rubricada. Lêem bebendo café e fumando charutos. Lêem chorando. Lêem para encontrar consolo. Quando estão realmente aflitos, tentam ler e não conseguem ler nada. (BREUNIG, 2006, p. 13)

Podemos afirmar, enfim, que o manuseio e a presença de livros frequentes na sua ficção fazem da leitura uma das constantes mais fortes de sua obra literária. Mas, para além da

81 ficção, Machado chega a revelar as suas preferências de leitura, como faz na seção Cartas Fluminenses, no Diário do Rio de Janeiro de 4 de março de 186769:

Não privo com as musas, mas gosto delas. Leio por instruir-me; às vezes por consolar-me. Creio nos livros e adoro-os. Ao domingo, leio as Santas Escrituras; os outros dias são divididos por meia dúzia de poetas da minha predileção; consagro a sexta- feira à Constituição do Brasil, e o sábado aos manuscritos que me dão para ler. Quer tudo isto dizer que à sexta-feira admiro os nossos maiores, e ao sábado durmo a sono alto (ASSIS, 1867, p. 1).

Por fim, esses registros, espalhados por toda a sua produção escrita, dão mostras da circularidade de obras no entorno de Machado de Assis, da seletividade das mesmas e desse hábito diário do escritor carioca.