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Em setembro de 1864, é lançada pela Garnier a coletânea de poemas Crisálidas, o primeiro livro de versos de Machado. Conforme Barreto Filho (1980, p. 62), o surgimento do livro “constituiu um acontecimento, alguma coisa de surpreendente”, saindo com um empolgante prefácio de Caetano Filgueiras, no qual este amigo de Machado espalha generosos elogios ao poeta, destacando a inspiração e originalidade de sua poesia. Machado, em posfácio, intitulado Carta ao Dr. Caetanto Filgueiras, replica ao prefácio amenizando os elogios e reconhecendo que o seu livro não é “resultado de uma vocação superior”, mas sim “é esse pouco que tu caracterisaste tão bem attribuindo os meus versos a um desejo secreto de expansão” (ASSIS, 1864, p. 163).

Barreto Filho entende que falta ao poeta de Crisálidas “o caráter único, novo, imprevisto, do momento poético autêntico” e conclui que o que se destaca no livro são as qualidades formais, a saber, a “virtuosidade artística e a qualidade verbal superior”, o que “lhe asseguram uma posição predominante nas letras com a publicação desse livro” (FILHO, 1980, p. 64). Diante da época de sua publicação, isto é, um pouco antes da morte de Gonçalves Dias e muito antes da estreia de Castro Alves, dois dos maiores nomes da poesia romântica brasileira, Lúcia Miguel-Pereira (1936, p. 137) aponta que Crisálidas “aparecia no meio de um silêncio das grandes vozes poéticas, o que deu maior ressonância ao seu timbre indeciso”.

A despeito da recepção crítica ou do valor poético de Crisálidas, um aspecto nos chama a atenção: a numerosa presença de epígrafes nos poemas, resultado, decerto, dos “anos de estudo, de exercício, de assimilação dos clássicos” (FILHO, 1980, p. 62). As epígrafes significariam, pois, para os poemas, o que as alusões e citações significam para a sua prosa: exprimem a variedade de leituras do autor mediante as dinâmicas relações de trocas culturais ocorrentes no texto machadiano.

Em dissertação de mestrado de Audrey Ludmilla do Nascimento Miasso, defendida em 2016, encontramos apontamentos bem interessantes sobre as epígrafes na poesia de Machado de Assis. Ali, a autora detém-se na análise dos poemas enfatizando a função das epígrafes nas suas relações com a temática dos textos, descortinando um processo dialógico

75 na poesia de Machado de Assis. Miasso revela que, dos 28 poemas do livro, 14 são epigrafados, mas o número de registros é maior que o número de composições, dado o fato de que o poema “Versos à Corina” comporta uma epígrafe para cada uma de suas seis partes.

A autora presume que a reunião de autores consagrados, dentre eles, Alfred Musset, Camões e Victor Hugo, pode resultar de uma intenção particular por parte de Machado. Sendo o seu livro de estreia na poesia, o autor, provavelmente, “buscou amparo em excesso para os seus versos” (MIASSO, 2016, p. 9). No trabalho de análise dos textos, a pesquisadora faz recortes relevantes que levam em consideração o idioma, a nacionalidade, o período literário predominante, a tradução ou não, a forma da assinatura e o abandono progressivo das epígrafes.

Dentre os autores “convocados” por Machado de Assis para “participarem” dos poemas de Crisálidas, está Madame de Staël com uma epígrafe no poema “Os arlequins”. Quer tenha uma funcionalidade política, quer poética, a escolha do autor por Staël só assume a receptividade da autora francesa na literatura machadiana. Vejamos agora como se dá o registro alusivo à pensadora franco-suíça no poema de Machado.

A epígrafe atribuída a Madame de Staël está presente no poema “Os arlequins”, um texto de gênero satírico, conforme subtítulo e segundo o próprio Machado em notas no final do livro:

Esta poesia foi recitada no Club Fluminense, n'um saráo litterario. Pareceu então que eu fazia satyra pessoal. Não fiz. A satyra abrange uma classe que se encontra em todas as scenas políticas, - é a classe daquelles que, como se exprime um escriptor, depois de darem ao povo todas as insígnias da realeza, quizeram completar-lh'a; fazendo-se elles próprios os bobos do povo. (ASSIS, 1864, p. 169)

O poema foi recitado no Club Fluminense em 4 de abril de 1864 em uma festa de literatos, conforme Caldwell (1970, p. 20) e faz uma aproximação da classe política aos arlequins ou “bobos do povo”, o equivalente no Brasil.

O poema traz esta epígrafe em francês logo abaixo do título e do ano de publicação: “Que deviendras dans l’éternité l'âme d'un homme qui a fait Polichinelle toute sa vie?” (O que será na eternidade a alma de um homem que tem feito polichinelo toda a sua vida?) (Trad. nossa). Não encontramos, em nenhuma das obras de Staël, o excerto utilizado como epígrafe. Porém, logo abaixo da mesma, Machado registrou a autoria com a assinatura Mme. De Stael. A partir de indicação de Miasso (2016), consultamos a obra Une lecture par jour, nouvelles leçons de litterature, historiques, morales et religieuses (1839), de A. Boniface e J. Janin,

76 onde verificamos, na página 41, o excerto “Quelle sera dans l’éternité la part d’un homme qui a fait Polichinelle durant soixantes années de sa carrière?” conferido a Madame e Staël. O mesmo texto nos esclarece que o Polichinelle é um personagem importante para as farsas napolitanas, assim como o Arlequin o é para as farsas venezianas. Há, portanto, uma aproximação entre os dois personagens cômicos. Machado, então, intitula seu poema com o segundo enquanto se utiliza de uma epígrafe que versa sobe o primeiro.

Embasado dessa carga de sentido das personagens, Machado volta a comparar os políticos com os arlequins no folhetim “Ao acaso”, do dia 16 de maio de 1865, quando ironiza: “Ficam avisados todos os arlequins políticos de que nos achamos na boa disposição de não admitir facécias e insultos anônimos, sob pretexto de defender um ministério” (ASSIS, 1865, p. 1)65. Aqui, Machado retruca uma crítica recebida anonimamente em ocasião da publicação de alguns versos dele sobre um acontecimento político.

Se compararmos o texto da epígrafe machadiana com a citação no texto de A. Boniface e J. Janin, notamos algumas diferenças entre palavras. Essas diferenças, segundo Miasso (2016, p. 120), intensificam o sentido do pensamento, posto que “o brasileiro altera as palavras da francesa e adiciona certa intensidade a elas ao incluir “l’âme”, a alma. Além disso, os sessenta anos de carreira serão ampliados para toda a vida”.

Em Corinne ou L’Italie, Staël, ao comentar sobre as festas populares na Itália, menciona várias características da atuação dos arlequins. Esses personagens são relacionados na obra francesa a entretenimento popular, à impessoalidade, aos homens incultos, ao estilo carnavalesco, ao ridículo e às máscaras. Esses aspectos ressoam no satírico poema machadiano, quando o eu-poético

constrói não apenas a imagem do homem da política como também antecipa sua sentença e pinta suas glórias sempre como desprezíveis e seus feitos como falsos, por iludir o povo que, por sua vez, ignora o espetáculo digno de um palhaço que se dá a sua frente (MIASSO, 206, p. 125).

Machado, portanto, toma de empréstimo o excerto staeliano tornando-o emblemático na composição e na temática d’Os Arlequins. A epígrafe, em francês, destoa um tanto da citação de A. Boniface e J. Janin. Não podemos assegurar, sem dúvidas, se foi o escritor carioca que operou a mudança vocabular, caso afirmativo, deu mostras de que a composição de Staël, servindo à sua crítica, não o faria sem uma sutil adaptação. Este aspecto configura,

77 em determinada escala, os processos de importação, seleção e adaptação que “fornecem subsídios para uma melhor compreensão dos bens culturais (RODRIGUES, 2010, p. 49).