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DIVERSIDADE PRODUTIVA E USO MÚLTIPLO DOS RECURSOS NATURAIS COMO ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO

2 AS BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM ÁREAS DE VÁRZEA

2.1 Crítica à ciência moderna para uma abordagem interdisciplinar do desenvolvimento sustentável

Chegará o dia em que a sustentabilidade escape das mãos e sites dos que fazem o pseudo-discurso do desenvolvimento sustentável e passe a ser incorporada como uma verdadeira onda de solidariedade sincrônica e diacrônica criando-se uma ética da solidariedade entre as atuais gerações e destas para com as futuras gerações (CAPORAL, 2009, p. 48).

2.1 Crítica à ciência moderna para uma abordagem interdisciplinar do desenvolvimento sustentável

Para pensar a discussão do desenvolvimento sustentável em áreas de várzeas, sob uma abordagem interdisciplinar, foi necessário refletir, ainda que de modo sucinto, sobre a crítica à ciência moderna e sua racionalidade instrumental, tendo em vista que, ao longo do desenvolvimento capitalista, estas se configuram como força motriz predominante. Assim, o próprio desenvolvimento da ciência moderna tem origem na racionalidade, particularmente, com o deslocamento dos eixos revolucionários da liberdade e do programa de bem-estar da humanidade, como afirmam Habermas (1985); Giddens (1991); Touraine (1994); Beck (1986); Latour (1994, 2004); Morin (2007); Santos (2010).

Para Habermas (1973), o conceito de racionalidade foi introduzido por Weber para caracterizar a forma capitalista da atividade econômica sob a forma burguesa das trocas em nível do direito privado e a forma burocrática da dominação. A racionalização designa a extensão dos domínios da sociedade submetida aos critérios de decisão racional. Nesse sentido, o autor chama atenção para a “racionalização crescente da sociedade ligada à institucionalização do progresso científico e técnico” (HABERMAS, 1973, p. 4). Assim, a modernidade, desde suas origens, desenvolveu-se lutando pela busca de emancipação do sujeito em nome da ciência (COPETTI; FRIZZO, 2009b).

Para Eid (1994), Marcuse foi o primeiro a pensar teoricamente a fusão entre a racionalidade técnica que proporcionou a dominação no contexto da sociedade capitalista, fazendo avançar na própria lógica da produção a partir do progresso técnico e científico, pois

a racionalidade da ciência e da técnica é uma racionalidade da dominação sobre a natureza e sobre os homens [...]. A utilização da tecnologia significa ausência de liberdade para o homem. Ele será “tecnicamente” impossível de ser autônomo e determinar a si mesmo e a própria vida (EID, 1994, p. 162- 163, tradução nossa).

O capitalismo, desta forma, enfeixa um conjunto de processos cumulativos que vai desde o desenvolvimento das forças produtivas, favorecidas pelas descobertas científicas e tecnológicas, a fim de potencializar o aumento da produção com o objetivo de gerar lucro. E, para a regulação desse conjunto, o poder político é estabelecido de forma centralizada nas estruturas do Estado, a partir da formação de identidades nacionais, propagadas por meio de direitos de participação política, criando valores e padrões designados pela individualização do sujeito humano e pela lucratividade do capital. Para Touraine (1992, p. 240, tradução nossa).

A modernidade foi completamente definida pela eficiência da racionalidade instrumental, o domínio do mundo possibilitado pela ciência e a técnica. Essa visão racionalista não deve em nenhum caso ser rejeitada, porque ela é a arma crítica, a mais poderosa contra todos os holismos, todos os totalitarismos e todos os integralismos. Mas ela não dá uma ideia completa da humanidade, como liberdade e como criação.

Ainda segundo Touraine (1992) há duas figuras constituintes do diálogo sobre a modernidade. São elas: a racionalização e a subjetivação. Mas o sucesso da ação técnica não deveria esquecer a criatividade do ser humano. Isto porque, sob essas dimensões, “[...] o mundo terá mais unidade, apesar das repetidas tentativas de cientificismo; o homem certamente pertence à natureza e é objetivamente conhecimento, mas também é objeto e subjetividade.” (TOURAINE, 1992, p. 240).

A racionalidade, vista de forma impessoal, criou uma ciência e uma técnica alienadas da relação entre homem e natureza, tornando-o objeto de conhecimento. Assim, ciência e técnica, ao fazerem essa separação entre o homem e a própria natureza, passaram a desconhecê-lo como tal, ou seja, como ser criativo, ao mesmo tempo em que o tornou objeto de conhecimento, de forma fragmentada dessa unidade essencial, devido aos corpos de conhecimento dos diferentes campos das ciências naturais e sociais.

A unidade entre homem e natureza destruída favoreceu o aparecimento de duas entidades — homem e natureza — criadas pelas leis da racionalidade, de forma que o homem, ao ser tornar objeto, passou a ser manipulado pelo conhecimento moderno, pela racionalidade instrumental, ou seja, se tornou mais um elemento das forças produtivas e, sob esse mundo, passou a ser deslocado do centro da razão objetiva, dando lugar ao declínio da modernidade com seus princípios de liberdade e criatividade, para impor a ciência e a técnica como se fossem neutras, gerando, com isso, um sistema autocentrado de produção deslocado das necessidades reais, para expandir seu poder de destruição criadora, ao ser aplicado à

acumulação e centralização de capitais, não importando os efeitos e catástrofes que a ciência e a técnica instrumentalizadas têm criado como resultado da separação original entre homem e natureza como expressões de conhecimentos abstratos.

Neste campo, a ciência moderna tornou-se um instrumento importante na aplicação social de conhecimentos produzidos pela racionalidade instrumental. Como mostra o autor, desde o século XIX, o modo de produção capitalista já havia estabelecido, principalmente na Inglaterra e na França, a institucionalização do mercado de trocas. A pesquisa aplicada à produção industrial ampliou a escala de produção mercantil e a expandiu devido ao uso das técnicas de elevação da produtividade, sustentada pelo progresso das ciências modernas.

Os saberes tecnológicos, nesse sentido, não se limitaram à extrações de matérias- -primas tradicionais ou mesmo de suas transformações relativas às práticas socais do trabalho humano concreto, mas, sobretudo, tornaram-se fórmulas científicas abstratas e capazes de criar novos valores.

A incorporação de métodos e técnicas de racionalização tecnológica passou a produzir mercadorias cada vez mais agregadas de conhecimentos científicos, estruturados de modo segmentado e fragmentado pelas diferentes ciências aplicadas, não importando se esses conhecimentos traziam efeitos maléficos para a sociedade como um todo; importando somente a fabricação de novos produtos para quem detinha o poder de aplicação desses conhecimentos transformados em lucro.

A racionalidade instrumental, portanto, constitui o eixo das ciências modernas, como um de seus princípios, o qual está em crise em face da ameaça do próprio desaparecimento do planeta. Embora a modernidade não seja constituída unicamente da razão e menos ainda da destruição dos laços sociais e do homem com a natureza, dos sentimentos, dos costumes e crenças das sociedades tradicionais, ela enfeixa e hegemoneiza as relações entre os homens, e destes com a natureza.

Latour (2004) mostra que a ciência moderna separou natureza e sociedade em duas ontologias, humana e não humana, dos sujeitos e dos objetos, da ecologia e da política, das coisas e das pessoas, da natureza e da sociedade, criando um paradigma presente na sociedade moderna, pelo fato de existir uma divisão da política e da ecologia “natureza”. O paradigma dominante da ciência moderna, sustentado pelos valores capitalistas separou sociedade e natureza, visa a aperfeiçoar a vida de espécies, da população e dos indivíduos, a partir da lógica da produção e do consumo.

A modernização capitalista3 acentua a racionalidade, cujo resultado é a sociedade do consumo sem limites, uma sociedade que se encontra intimamente ligada e relacionada à produção de mercadorias como centro da sociedade do capital. Esta evolução trouxe conquistas para a humanidade, mas paradoxalmente apresenta sinais de colapso, à medida que suas consequências geraram um horizonte de insustentabilidade e incertezas quanto ao presente e ao futuro, confluindo para uma sociedade de risco (BECK, 1986, 2007; COPETTI; FRIZZO, 2009a), institucionalizada com a crise da sociedade capitalista (GIDDENS, 1991; TOURAINE, 1994; PAIXÃO et al., 2004).

Para Leff (2009), a racionalidade econômica instaurou um núcleo duro da racionalidade moderna expressa em um modo de produção fundado no consumo destrutivo da natureza que vai degradando o ordenamento ecológico da terra e minando suas próprias condições de sustentabilidade.

A crítica da modernidade aparece, enfim, quando os princípios que a constituíram deixam de ser cultivados, para dar lugar à sociedade regida, em última instância, pelas leis do mercado, desviando, assim, de sua identidade histórica. Quando seus atores deixam suas referências culturais, fomentam uma sociedade onde o universo tecnológico e a organização entra em desordem e colide violentamente com os desejos e as identidades contemporâneas, que passam a reivindicar novas demandas sócio-históricas, a partir de novas concepções que passam a combater essa ciência moderna e sua racionalidade instrumental.

As grandes promessas da modernidade, na ânsia de responder às necessidades humanas concentram-se nas conquistas da ciência e da tecnologia, impondo um processo crescente de valoração das coisas, num sentido eminentemente materializado (CENCI; SCHONARDIE; SILVA, 2012). O desenvolvimento científico promoveu uma tecnologização da vida e uma economização da natureza, substituindo valores da natureza por valores subjetivos individuais e pessoais, transformando bens de uso em bens de negócio e de livre mercado, produzindo, com isso, uma crise de civilização. A modernidade é regida pelo predomínio da razão tecnológica sobre a organização da natureza (LEFF, 2001b).

Este novo referencial abrangeu não apenas os produtos da indústria, mas avançou em relação aos bens que estavam fora de seu domínio, especialmente a natureza, coisificando a terra e extraindo tudo aquilo que pudesse ter valor no grande mercado das relações

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O que é modernidade? Como uma primeira aproximação, digamos simplesmente o seguinte: "modernidade" refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e tornaram mais ou menos mundiais em sua influência que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta (GIDDENS, 1991, p. 11).

econômicas e sociais, desde as coisas materiais até os saberes que invadem os direitos de autodeterminação dos povos (COPETTI; FRIZZO, 2009a).

Nestes termos, a sociedade moderna tem dois aspectos: por um lado, o mito global de que as sociedades industriais atingem o bem-estar e reduzem as suas desigualdades extremas, proporcionando aos indivíduos o máximo de felicidade que uma sociedade pode dispensar; por outro lado, a concepção redutora de que o crescimento econômico é o motor necessário e suficiente de todos os desenvolvimentos sociais, psíquicos e morais (MORIN, 2007).

A sociedade industrial se identificou com o crescimento econômico, tecnológico, urbano, internalizada pela lógica da acumulação e da produção capitalista, em todas as esferas da vida social, consolidando um modo de vida desenvolvido ou “moderno”, estabelecido como um caminho evolutivo, linear e inevitável a ser trilhado pelas sociedades. Logo, o paradigma de desenvolvimento a ser alcançado era a sociedade de consumo (SCOTTO; CARVALHO; GUIMARÃES, 2008).

Assim, construíram-se as sociedades dependentes do capital, segundo Furtado (1996) como resultado da divisão internacional do trabalho e da troca desigual de mercadorias, além da degradação ambiental, nesse processo expansivo de globalização do capital (BIFANI, 1980; LEFF, 2009). Isto impediu o desenvolvimento de meios técnicos apropriados para o aproveitamento da produtividade primária dos ecossistemas e para induzir um manejo integrado de seus recursos, bloqueando o desenvolvimento sustentável de suas forças produtivas e a capacidade de autogestão de seus recursos naturais (LEFF, 2009).

Portanto, com o processo de dependência e exploração dos recursos naturais, tem ocorrido a destruição do patrimônio cultural e ambiental dos povos, degradando o potencial produtivo dos ecossistemas naturais (LEFF, 2009). Significa dizer que o desenvolvimento científico e tecnológico contemporâneo vem promovendo a desestruturação dos sistemas naturais que está na base do aquecimento global e do atual processo de desastre ecológico (CENCI; SCHONARDIE; SILVA, 2012). Neste sentido, as “crises ambientais” ou “ecológicas”, divulgadas com tanta amplitude nessa primeira década de século XXI manifestam muito mais como um problema de constituição política generalizada, do que propriamente uma designação de uma parte do universo herdado da modernidade (LATOUR, 2004).

Segundo Latour, (2004) a crise determinada pelo ritmo de desenvolvimento da sociedade moderna tem proporcionado à crítica em busca da reconciliação do homem com a natureza. Concepção esta corroborada pelas contribuições teóricas e metodológicas de autores como Giddens (1991); Touraine (1994); Beck (1986); Latour (1994; 2004); Sen (2000); Leff

(2001b, 2009, 2010, 2012); Sachs (1980, 1986); Morin (2007), que nas últimas três décadas têm discutido em torno da relação sociedade-natureza, tanto em níveis internacionais quanto nacionais.

Nesse contexto, a crítica à modernização capitalista (TOURAINE, 1994) precisa encontrar a “crítica ambientalista”, a qual tem emergido a partir do debate sobre o desenvolvimento sustentável, um paradigma complexo e, muitas vezes, impreciso, pois há vertentes que buscam conciliar crescimento econômico, desenvolvimento social e conservação dos recursos naturais.

A sustentabilidade, portanto, requer o próprio freio à expansão do capital, na medida em que este alcançou graus de desenvolvimento (de elevação na sua composição orgânica) e sua reprodução tem se expandido sobre novas fontes, gerando em consequência, a dependência entre nações e pessoas, em busca de acumulação (LEFF, 2009). Esse novo paradigma passa a fundamentar a crítica da visão que entende a sociedade reduzida ao mercado e ao fluxo incessante da ciência moderna, como instrumento sob os ditames do capital.

Nestes termos, toma-se essa crítica como referência para construir os caminhos teórico-metodológicos na construção da tese sobre as práticas das sociedades ribeirinhas em territórios de várzeas, como observado no Território do Baixo Tocantins, onde se pode conferir uma realidade concreta para desvendar o processo de desenvolvimento com sustentabilidade em contraposição ao modelo racional de desenvolvimento consolidado pela sociedade moderna dominante.

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