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EM NOME DO ESTADO: dos delitos e das penas

2.19 Crítica do direito penal

A mais severa crítica que se faz ao direito criminal, enquanto ciência, norma e fato social,90 adota, para uma análise desse fenômeno jurídico no mundo social, o referencial teórico do materialismo histórico e, para uma avaliação mais concentrada no próprio sistema de tal fenômeno, o da criminologia crítica91 e sua matriz, situada no interacionismo simbólico, vertente interpretacionista das ciências humanas. Vamos a ela.

O direito penal é agente do Estado, este considerado representante da classe dominante. Como não há uma existência ontológica do que seja crime, o Estado burguês, modelo hegemônico no mundo ocidental, seleciona condutas indesejáveis com fundamento nos valores do capitalismo e assim protege aquilo que chama de bens jurídicos, que são, na verdade, os bens necessários ao desenvolvimento do sistema capitalista e interessam de perto à classe dos detentores dos meios de produção. Ao fazê-lo, o direito penal, embora se proclame neutro e orientado apenas pelo ideal do bem comum, escolhe uma clientela preferencial, que são os componentes das classes dominadas, autores dos delitos contra aqueles bens de fundamental importância para o sistema. Aplicando-lhes pena, ou simplesmente os ameaçando com essa possibilidade, o direito criminal rotula e estigmatiza essas pessoas, contribuindo para lhes determinar seu papel social e sua subalternidade, assim reforçada pelo estigma da pena.

Fragoso é objetivo em suas conclusões:

90 Adotada a metodologia de Montoro, que vê o fenômeno jurídico sob cinco facetas, a saber: justiça, norma, faculdade, fato social e ciência. Op. cit..

91 Uma evolução da antiga Criminologia, preocupada com as funções reais desempenhadas pelo sistema penal, antes que com as causas da criminalidade.

A Criminologia, voltando-se para a análise do próprio mecanismo repressivo, veio revelar que a justiça criminal funciona seletivamente sobre os pobres e desfavorecidos. Como disse muito bem Eduardo Novoa, o Direito Penal é o direito dos pobres, não porque os tutele e proteja, mas sim porque sobre eles exclusivamente faz recair sua força e seu rigor. Eles é que constituem a clientela do sistema e são por ele, virtualmente, oprimidos. Só os pobres sofrem os processos por vadiagem e só eles são vítimas das batidas policiais com o seu cortejo de ofensas e humilhações. Só os pobres são ilegalmente presos para averiguações. Os ricos livram-se facilmente, contratando bons advogados, recorrendo ao tráfico de influência e à corrupção. Eles nunca vão para as prisões. Quando, em situações excepcionais, isso vem a suceder, logo ficam doentes e são transferidos para os hospitais. Pode-se imaginar o impacto que tais constatações produzem nos que se ocupam com a elaboração técnica do Direito Penal, procurando aperfeiçoá-lo. Parece certo que a realização do sistema punitivo funciona como um processo de marginalização social, para atingir uma determinada clientela, que está precisamente entre os mais desfavorecidos da sociedade (Lições, 1994: 444).

Uma tal abordagem do direito penal vem ao encontro do que constitui eixo de raciocínio da chamada criminologia crítica, segundo a qual ele não cumpre suas funções declaradas, de prevenir a ocorrência de novos crimes. Com freqüência é lembrado o exemplo dos Estados Unidos, país que tem um sistema repressivo e penitenciário sabidamente rígido e que, apesar de tudo, apresenta consideráveis índices de criminalidade e de violência.

Na verdade, o Estado seleciona comportamentos, na fase da chamada criminalização primária, elegendo os bens jurídicos que quer tutelar, a partir do interesse que possuam na lógica do sistema, no caso o capitalista. Na etapa da criminalização secundária, isto é, a da aplicação concreta da lei penal, os agentes do Estado também selecionam a quem aplicar as normas repressivas. Há uma escolha que recai nas camadas mais subalternas, mais pobres e menos educadas do espectro social, havendo um etiquetamento das pessoas sobre as quais se despejam os efeitos reais da norma penal. A pessoa, assim rotulada, tenderá, mais tarde, a repetir o comportamento criminoso, a isso se dando o nome de desvio secundário.

Esse descumprimento das finalidades apregoadas pelo direito penal se torna mais evidente ainda a partir da constatação do que se convencionou chamara de cifra negra, que levou Samyra Naspolini Sanches a concordar com os que vêem na criminalidade o comportamento de uma maioria e não de uma minoria anormal. Conforme lembrado por ela,

196 [...] as pesquisas sobre a cifra negra da criminalidade, nas quais encontramos os crimes de colarinho branco, demonstram que muitas situações que se enquadrariam nos tipos penais não chegam sequer a entrar na máquina da repressão penal. Entre a criminalidade real e a criminalidade aparente, existe uma série de condutas que seriam criminosas e que jamais chegarão ao conhecimento do sistema penal (2006: 156-157).

O sistema penal, dessa maneira, acaba por cumprir uma outra função, não declarada, e nisso funciona muito bem: a de reforçar a subalternidade das camadas que são a sua clientela preferencial; além disso, a de desenhar, definir os contornos e iluminar a parcela da realidade que quer chamar de desvio, dando a impressão de que toda a criminalidade se encontra ali, e acabando por deixar livres condutas e pessoas que não interessa reprimir.

Tal análise é feita, conforme se disse, pela chamada criminologia crítica, que se inspira no interacionismo simbólico, para afirmar que os objetos do conhecimento não têm uma natureza apriorística, inerente (o crime não é mau em si), mas são o que as pessoas vêem neles, certo que essa visão é determinada pela interação entre pessoas através da simbologia da comunicação.

Na realidade, essa crítica vai a um ponto menos profundo do que poderia ir. Ela explica uma espécie de mecânica interna do sistema, mas não investiga por que o sistema atua assim. Para compreender a questão na sua totalidade é indispensável recorrer aos postulados do materialismo histórico. Dele partirá a constatação de que o Estado, na sociedade capitalista, é o Estado da classe dominante, não o Estado de todos, que objetiva o bem comum.

Aí está uma função não declarada também do Estado, origem do direito positivo e, conseqüentemente, do sistema penal. Ora, se o Estado, fonte da normatividade, tem tal natureza, não deveria existir admiração alguma ante o fato de que o sistema penal atua seletivamente. Mas claro, afinal o próprio Estado, em sua formação, já é seletivo.

Que o sistema capitalista se vale de qualquer oportunidade para reafirmar a sua lógica de exploração do homem pelo homem, o que, na verdade, é da natureza de qualquer sistema dominante, tampouco é de surpreender. A criminalização primária é mesmo feita seletivamente, na medida em que o patrimônio é o centro da maior proteção por parte da legalidade penal, reservadas para os seus transgressores as maiores penas; a aplicação de

tais normas é, de seu turno, e ainda muito compreensivelmente, direcionada às camadas subalternas, como se sabe as menos protegidas e com menor acesso aos bens públicos, como saúde, educação, previdência, justiça, informação. É a classe alienada intelectualmente, que vende sua força de trabalho e é conduzida, pelos meios de comunicação a serviço da classe dominante, a pensar como esta, impedida, até onde seja possível, de formular uma ao menos pálida consciência de classe e uma compreensão de sua situação de dependência.

É sobre essas pessoas dóceis e facilmente manipuláveis que age a força repressiva do sistema penal. Claro que à sociedade em geral não é dado ver as coisas dessa maneira. A linguagem do Estado, refletindo os interesses dos dominantes, é tal que direciona seu facho de luz para onde é conveniente. Muito naturalmente, portanto, mostra o crime como algo proveniente da classe subalterna, aí identificando a violência que convém combater. Não mostra, evidentemente, a carga de violência que pode haver, e frequentemente há, em condutas praticadas pelos habitantes do andar de cima, contra o sistema econômico, o meio ambiente, as relações de consumo e outros bens coletivos. É que essas pessoas e esses comportamentos são perfeitamente toleráveis pelo sistema. O que ele não tolera, nem pode, é a agressão ao patrimônio individual, base de todo o movimento da máquina do capitalismo.

Esse ângulo de visão ninguém, nem nada, melhor que a teoria do materialismo histórico, fornece. Compreendida essa ordem de coisas, nenhuma surpresa causa o modo como o sistema penal funciona, nem o motivo de ter uma finalidade declarada e uma outra oculta, sendo forçoso convir que esta última é desempenhada exemplarmente.

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CAPÍTULO III

EM NOME DA FÉ, DA ORDEM E DO PROGRESSO

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