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EM NOME DO ESTADO: dos delitos e das penas

2.4 Política criminal

Consideram também os juristas algo denominado de política criminal. Ciência ou não, ela se ocupa dos critérios para a escolha do conteúdo do direito penal e, isenta do aprisionamento que significa, numa perspectiva positivista, a interpretação do dever ser, permite-se o emprego da crítica.

72 Grifei.

142 Para Antonio Carlos Santoro Filho, a política criminal é, antes de tudo, uma das várias políticas do Estado e da sociedade [...] (2000: 129). Nilo Batista a vê como resultante lógica

do incessante processo de mudança social, dos resultados que apresentem novas ou antigas propostas do direito penal, das revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das instituições que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia (2005: 34).

Conforme esse autor, ela estaria portanto destinada a se caracterizar por “princípios e recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação (ibidem).

Sob o manto dessa política criminal se abrigam incontáveis tendências, algumas tão díspares quanto o movimento da lei e da ordem e o abolicionismo, todas ocupadas em sugerir diferentes modelos de conteúdo para o ordenamento criminal, assentadas em visões de mundo bastante diversas.

Essas duas orientações de política criminal merecem algumas considerações. O chamado movimento da lei e da ordem tem origem nos Estados Unidos e seus principais defensores estão situados entre aqueles que não se conformam com o gradual processo de limitação da ação do Estado contra os indivíduos e com a afirmação dos direitos humanos e nisso enxergam a causa da ousadia cada vez maior, segundo entendem, dos criminosos.

Porque as leis são brandas os delinqüentes não se intimidam e fazem da população honesta prisioneira de suas próprias casas. Há uma luta do bem contra o mal e a receita para a vitória do primeiro é o endurecimento da legislação, que deve tratar com maior rigor o criminoso, a fim de fazê-lo temer as conseqüências de delinqüir. Esse endurecimento supõe penas mais severas, rigidez na forma do seu cumprimento, utilização freqüente de instrumentos processuais coativos, como a prisão provisória no caso de delitos graves.

Exemplo da influência desse pensamento no Brasil foi a edição, no ano de 1990, da denominada Lei dos Crimes Hediondos, que, elegendo determinados tipos penais, os classificou como tais e adotou para com seus supostos autores medidas como a proibição da

liberdade provisória e da progressão de regime prisional, assim como o aumento do período de prisão para obtenção de livramento condicional.73

Do outro lado do espectro localiza-se o abolicionismo penal, corrente que tem seus grandes expoentes no direito escandinavo, e que propõe a pura e simples eliminação progressiva do sistema punitivo penal, argumentando com o seu fracasso na tarefa de evitar a prática de crimes.

Sua linha de raciocínio assenta-se naquilo que considera a irracionalidade do direito criminal e de suas agências punitivas, incapazes de realizar o trabalho de prevenção que deles tem sido esperado. Argumenta com as cifras negras, vale dizer, a quantidade de infrações que não são levadas ao conhecimento dos órgãos estatais e às quais a sociedade acaba destinando modos de solução diferentes da sanção criminal.

Quando não fosse por isso, tratar-se-ia de procedimento eticamente insustentável o de utilizar o sofrimento imposto a alguém com o fim de obter resultados sociais previamente delineados. Dessa forma, os conflitos hoje tidos por pertencentes à órbita do direito penal passariam a ser administrados por outras instâncias sociais, de natureza administrativa, que atuariam no sentido de sua pacificação. Nessa atividade estariam compreendidas ações que incluiriam até mesmo formas de integração entre criminoso e vítima.

Claro que não é difícil fazer objeções a essas duas tendências de política criminal, facilitadas pelo extremismo de suas postulações e simplismo de suas conclusões.

Ao movimento da lei e da ordem, por exemplo, passa despercebido o fato de que a criminalidade tem principalmente causas econômicas e sociais e que, sendo assim, o enfrentamento do problema passa pela mitigação de tais causas, antes de se cogitar do agravamento da legislação e das penas, o que significaria uma atuação meramente voltada aos efeitos da delinqüência.

Tampouco se conhece o alcance real do poder intimidativo de sanções severas, sendo lícito questionar se a confiança do delinqüente na impunidade não o estimula mais a agir do que a eventual brandura das leis. Ademais, a consolidação dos direitos humanos, inclusive dos criminosos, não representa necessariamente uma diminuição da segurança,

73 Posteriormente a Lei n. 11.464/07 revogou o dispositivo que determinava o cumprimento integral da pena em regime fechado, remetendo a questão à sistemática do Código Penal, que expressamente adota o sistema progressivo.

144 mas uma garantia contra um Estado que está longe de ser uma instância aglutinadora, desinteressada e imparcial dos clamores sociais.

Ignora também que a democratização e a agilização das informações permite um contato próximo com a criminalidade em todo o mundo e esse é um instrumento utilizado com incontestável competência pelos meios de comunicação, em geral privados, necessitados de audiência e de anunciantes, que pagam preço de ouro por inserções publicitárias, especialmente em horários considerados nobres.

O abolicionismo igualmente comporta o mesmo volume de críticas. Estas, na realidade, se entrecruzam, pois os argumentos em favor de cada uma dessas tendências acabam geralmente se constituindo nas bases para a contestação da outra.

Do abolicionismo penal se pode dizer que inexistem - e não há perspectiva de sua existência no horizonte visível – agências reguladoras74 com capacidade para gerenciar as relações sociais a ponto de prescindir da sanção penal como instrumento de controle. Elas restam como uma idéia, mas, por ora, sem qualquer amparo, mesmo longínquo, na realidade concreta.

Mas não é somente a falta de elementos reais que parece inviabilizar a proposta abolicionista, que, ainda assim, poderia restar como uma utopia, com um considerável potencial de efetivação futura, como é próprio de idéias capazes de, tempos depois, se concretizarem na vida material. A principal crítica ao abolicionismo contém uma negação de sua própria base conceitual. Essa crítica toma por fundamento a idéia de que só a resposta severa, representada pela pena criminal – que é a única apta a restringir alguns direitos elementares do homem, entre os quais a liberdade – pode significar uma forma de obstáculo a impulsos extremos contra direitos também elementares – como a vida, a liberdade sexual etc..

É bem verdade que o poder intimidativo da pena é limitado, mas é incontestável que ele existe e, dentro de certos níveis, funciona, mesmo que não dê conta de impedir totalmente a prática do ato indesejado. Há casos de relatos sobre greves de policiais com notícia de nítido aumento da criminalidade nesses períodos. Como narrado pela edição n. 1709, de 18 de julho de 2001, da revista Veja On line, uma greve da Polícia Militar de Salvador (BA), ocorrida na semana anterior, produziu um cenário de desordem

generalizada, com saques em lojas e assaltos a bancos e ônibus. A média de homicídios a cada 24 horas aumentou de três para dez casos.75

E não é só isso. A função de organizar a sociedade, ainda que se admita que ele faz isso guiado por posturas ideológicas e parciais,76 permanece sendo do Estado, o qual, do contrário, abrindo mão de parcela tão expressiva de sua autoridade, deixaria de se caracterizar como locus de agregação social, colocando mesmo em questão uma das razões de sua existência. A observação de Santoro Filho esse respeito é bem objetiva:

Um Estado Abolicionista deixaria, evidentemente, de constituir-se como um Estado de Direito e tenderia, diante da extinção do princípio do monopólio da distribuição da justiça, a tornar-se uma instituição meramente formal [...] (2000: 146).