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EM NOME DO ESTADO: dos delitos e das penas

2.11 Crime, fato típico: tipicidade

Para constituir crime, a conduta também deve estar prevista em lei, quer dizer, definida como crime e com uma pena estipulada. Nesse ponto a Constituição Federal e o Código Penal impõem o chamado princípio da legalidade, isto é, a lei - e é preciso uma lei, não outro tipo de norma - definidora do crime deve estar em vigor antes de alguém concretamente praticar uma conduta nela enquadrável.82

O princípio da legalidade é um desenvolvimento da teorização do direito criminal praticada durante o Iluminismo. Nesse período o ideal racionalista, inspirador de postulados como liberdade e igualdade, e de categorias como o contrato social e a autonomia da vontade, produziu seus frutos também na seara penal, onde vicejaram um humanismo explicável pela visão do homem como figura de destaque no universo, bem como uma busca por fins utilitários para o direito e seus institutos, entre os quais a pena.

Nesse contexto, a organização necessária à ordem jurídica reclamava que fosse prévio o conhecimento sobre tudo quanto era definido como infração penal e sobre as penas correspondentes a essas infrações. Surge então o princípio da legalidade, apresentado como garantia dos cidadãos contra possíveis abusos do Estado, na medida em que se estava, teoricamente, impedindo que este atuasse coativamente sobre alguém por conta de algo cometido sem a prévia definição da natureza criminosa da conduta praticada.

Assim é que o princípio da legalidade se estabelece nos ordenamentos dos países ocidentais, ganhando, muitas vezes, estatura de norma constitucional, como acontece no ordenamento brasileiro, onde se observa sua presença na Constituição Federal e também no Código Penal. Seu enunciado no texto constitucional estipula que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. (art. 5º, XXXIX).

Essa definição deve também observar o princípio da taxatividade, quer dizer, a definição do delito, na lei, deve ser clara e determinada, sendo inaceitável - e inconstitucional - a descrição vaga ou imprecisa das condutas criminosas.

82 Desse princípio decorrem também medidas de caráter procedimental, valendo lembrar que o ato da administração deve estar legalmente previsto para poder ser praticado. Nessa ordem de idéias, é interessante verificar que a Lei estadual paulista de n. 6374/89, ao tratar da produção de provas materiais da infração tributária, permite a apreensão de mercadorias, medida que ostenta claríssimo poder de pressão sobre o contribuinte para que se submeta aos interesses do fisco. Essa providência, no entanto, tem sido proscrita pela jurisprudência, como se evidencia pelo teor da Súmula n. 323 do STF: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.

170 Assim previsto em lei, diz-se que o fato tem, enfim, tipicidade.

Na sua definição entram necessariamente as elementares, que são as suas características identificadoras (sem elas o crime não existe, ou não será aquele crime) e podem entrar, eventualmente, as circunstâncias, que significam fatos situados na periferia do fato principal, que servem para elevar ou diminuir a pena que possivelmente será imposta ao agente. São todas, conjuntamente, os elementos do tipo penal.

É usual classificar, de acordo com a sua composição, os tipos em normais e anormais. Normais são aqueles que contêm somente elementos objetivos, cuja verificação demanda unicamente uma observação sensorial, como leciona Fragoso, que completa o seu raciocínio, afirmando que a identificação de tais elementos dispensa qualquer valoração (Lições, 1994: 159). Anormais são os tipos que, além de elementos objetivos, possuem também outros, que exigem apreciação de uma vontade especial do agente, a interpretação de expressões jurídicas, ou o exercício de um juízo de valor. Tais elementos são chamados, no primeiro caso, de elementos subjetivos do tipo, e, no segundo, de elementos normativos.

Tipo normal seria, assim, o do crime de homicídio, cuja descrição é matar alguém; anormal, o do delito de supressão ou redução de tributo (suprimir ou reduzir tributo [...]), em que o termo tributo exige uma interpretação jurídica, o da corrupção ativa (oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público [...]), ou o de injúria (injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro), onde as expressões funcionário público e ofensa ao decoro devem ser interpretadas à luz de sua definição legal ou dos costumes vigentes. De seu turno, o crime de abandono de recém-nascido somente ocorrerá se o agente atuou para ocultar desonra própria, o que exige compreensão de uma especial intenção sua, sem a qual o fato praticado não terá tipicidade.

Podem ocorrer certas circunstâncias em torno do fato típico que alterem, ou excluam, sua qualidade de fato típico.

A tentativa é uma delas. Se um sujeito dá início à execução de um fato definido como crime, desejando o resultado, mas não conseguindo obtê-lo por motivos que lhe escaparam do controle (foi incapaz, foi contido pela polícia etc.), manda a lei que se considere isso como uma tentativa de crime, daquele crime definido em lei que o sujeito queria praticar. A conseqüência será uma pena reduzida e o fato típico será o do crime desejado em combinação com a figura da tentativa.

Esse recurso a uma norma de organização (definidora da tentativa) para justapor o fato à descrição do tipo penal leva ao que se costuma chamar de adequação típica de subordinação mediata, para significar a presença de um componente intermediário entre o fato e a figura legalmente descrita como crime. Sem tal intermediação, ter-se-á uma adequação típica de subordinação imediata.

A tentativa supõe o início da execução de uma conduta definida como infração penal. O sujeito começa a fazer o que a norma descreve mas não chega a produzir o resultado que almeja. Isso pode acontecer ou porque o agente não conseguiu terminar sua ação – por ter sido impedido, por exemplo, por uma reação da vítima -, ou porque, mesmo tendo esgotado seus esforços, o resultado, por um outro motivo, acabou não sobrevindo. No primeiro caso tem-se uma tentativa imperfeita e, no segundo, uma tentativa perfeita.

Há delitos que, por sua natureza, não podem ser tentados: ou se consumam, ou nem sequer chega a ter início a sua execução; ou ainda são incompatíveis com a intenção de se obter o resultado. É o caso, por exemplo, dos crimes omissivos, dos culposos etc..

O contrário da tentativa é a consumação. Significa dizer que o agente praticou a conduta definida em lei e obteve o resultado desejado. Aí existe uma adequação típica de subordinação imediata, isto é, direta.

Se, em outra hipótese, o sujeito, tendo iniciado a execução do crime, desiste voluntariamente de chegar ao resultado e pára, ou se, tendo feito tudo que podia, se apressa e evita a produção do resultado, estar-se-á diante, respectivamente, das figuras da desistência voluntária e do arrependimento eficaz83, também com conseqüências na aplicação da pena. De novo o fato típico representado pelo crime inicialmente desejado pelo agente mistura-se com essas figuras e portanto se altera. O efeito prático é que, nesses casos, o sujeito receberá a pena correspondente ao tipo penal representado pela definição legal dos atos praticados, desprezada a intenção inicial, que naturalmente o colocaria no âmbito de uma outra figura típica, certamente mais grave.

Também pode acontecer de alguém, pensando e querendo estar cometendo um fato típico, por engano escolher meios totalmente ineficazes para obter o resultado querido; ou

83 Não deixa de representar uma forma de arrependimento eficaz – na esfera administrativa, mas com efeitos na órbita penal (pois o fato deixa de ser típico) – a hipótese prevista pelo art. 138, caput, do CTN: A

responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.

172 ainda que o objeto visado seja inteiramente impróprio para que se produza o resultado almejado.

O exemplo clássico dessas situações é o caso do sujeito que atira num cadáver, desconhecendo que o indivíduo visado já está morto; e ainda o do mesmo agente que, desejando matar alguém (que está vivo), lhe administra pequena quantidade de bicarbonato, ou qualquer outra substância inócua, pensando que se trata de um poderoso veneno. Essas figuras são chamadas de crime impossível. Nesse caso não há crime, por inocorrência de um fato típico. Constituiria, por exemplo, também um crime impossível alguém, desejando lesar o Município, ocultar fato que não é gerador de obrigação alguma, como o ato de respirar o ar daquele local.

Outra possibilidade de alteração, ou exclusão, do fato típico é a do chamado erro de tipo. Ele acontece quando o sujeito ativo desconhece, ou compreende mal, um fato que faz parte do crime, assim como ele é legalmente definido.

Se o agente subtrai um objeto alheio pensando que se trata de coisa própria, não pratica o fato típico descrito como furto, pois o furto é a subtração de coisa alheia. Se um contribuinte deixa de informar um ato de importação porque desconhece que aquilo era uma importação (e conseqüentemente não recolhe o tributo), não incide no fato típico que define o crime de supressão de tributo.

Claro que, nesses casos, o sujeito deve agir de boa-fé, o que exclui o dolo da sua conduta; na hipótese de o fato praticado (ou não praticado) configurar um crime meramente culposo, deverá ser verificado se o sujeito não foi descuidado, devendo prever o que era previsível; se ele foi assim desatento, deverá responder por tal crime culposo (apenas quando essa modalidade for admitida).