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EM NOME DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO: do pecado ao inferno

1.16 Justificativa para repressão

A teologia ressalva o aspecto sinistro que reconhece na existência de uma ordem repressiva e parece procurar justificar-se por mantê-la, argumentando com a necessidade de uma coesão interna. Esse aparente desconforto pelo patrocínio de um sistema penal reflete ainda a sensação negativa herdada dos tempos da Santa Inquisição.

Não é difícil compreender a dinâmica desse ponto de vista. A expressão santa inquisição, ou sagrada inquisição, traz em si a simbologia de uma fase considerada obscurantista e cruel da história da Igreja Católica. Em nome da salvação e da purificação não se hesitava em sacrificar seres humanos ditos hereges. Herege era qualquer um que desafiasse a autoridade da Igreja, ou do papa, ou de qualquer forma, por seu comportamento ou palavras, pusesse em dúvida certos dogmas religiosos.

Os processos eram muitas vezes sigilosos, sendo admitida a prática da tortura como meio de prova. A verdade, que podia ser estabelecida por intermédio de expedientes dessa natureza, era algo a que se chegava de um modo que estava longe de assegurar qualquer aproximação com o exercício da ampla defesa.

Mas a culpa que a Igreja aparenta carregar por conta dessa etapa de sua história não necessariamente precisa relacionar-se com esse remorso confesso por impor aos seus seguidores um código de infrações e de penalidades.

Uma coisa é uma instituição manter um estatuto organizado de condutas, direcionado para um objetivo previamente traçado. Esta é característica de qualquer instituição. Que esse estatuto também prescreva normas de procedimento e defina especificamente o que as afronta e ainda que, por conta disso, estabeleça sanções, configura igualmente um traço comum a todos os grupos humanos razoavelmente organizados; assim, não parece haver motivo para que por isso a Igreja precise ocupar-se tanto em justificar e quase se desculpar pela adoção de um código contendo dispositivos repressivos.

O que essa postura na realidade sugere é uma culpa considerável por uma herança incômoda, a provocar um movimento pendular no sentido oposto, ou seja, levando a Igreja a se desculpar até por coisas que, por si sós, não chegam a constituir nada de notável no sentido de ofender princípios elementares da vida civilizada. Vale dizer, por reconhecer que se excedeu no passado, a instituição preocupa-se em justificar demais seu código definidor de infrações e penas, estatuto afinal de contas comum em quaisquer agrupamentos humanos.

Essa justificação, por isso aparentemente carregada de remorso, evoca uma categoria reconhecidamente necessária à manutenção e à estabilidade dos grupos sociais em geral: a coesão interna. De fato, nenhuma instituição, nenhum Estado, é capaz de subsistir a partir do momento em que são rompidas completamente as ligas entre suas partes componentes.

A permanência dessas ligas está condicionada a uma razoável observância das normas institucionais, que, elaboradas de modo concatenado e com a vista voltada a um objetivo determinado, próximo ou distante, devem conter em si mesmas os remédios para possíveis transgressões. Dessa forma, as transgressões são resolvidas dentro do próprio sistema normativo e de acordo com as previsões que ele estabeleceu. Até certo grau, apurado quantitativa e qualitativamente, a transgressão é suportável e não chega a desafiar o sistema normativo.

Para além de um limite, entretanto, a transgressão pode chegar a constituir uma negação do sistema; essa negação, se for perene, acaba por destruí-lo e com isso se rompem de maneira insuportável as ligas do grupo, desaparecendo, por conseguinte, a instituição.

A necessidade de manter a coesão interna é utilizada como justificação do código repressivo da Igreja – como de resto seria utilizada, legitimamente e sem motivo para sobressaltos, por qualquer outra instituição.

Acrescente-se que a pena, que está situada na ponta da linha de todo ordenamento repressor, configura, também nos domínios do ordenamento religioso, uma inequívoca afirmação de autoridade; autoridade da norma e daqueles investidos de poder para concretamente aplicá-la.

Idêntica situação ocorre relativamente ao ordenamento penal estatal, conforme é ampla e pacificamente reconhecido. A pena configura, lá e cá, reação do corpo social à

112 ofensa, representada pela transgressão à norma, e reafirmação da vigência dessa norma, fator de manutenção das ligas entre os componentes institucionais.

Importa aduzir, por fim, que a adoção de um tal ordenamento repressivo, na visão oficial, alardeada por porta-vozes como o autor mencionado, convive com uma função educativa da Igreja, constituindo, graças ao comentado remorso por erros do passado, um senão no curso desse processo, algo como um mal necessário.

A Igreja, instituição educadora, ao se rever, sabe que não deveria necessitar da pena para garantir obediência. A afirmação é reveladora de duas coisas: que a Igreja se sente educadora, isto é, formadora de uma determinada cultura, e que seu sistema repressivo parece estar na contramão desse processo educativo. Na verdade, como se verá, está no cerne dele.

Bem se percebe que a estrutura repressiva da ordem religiosa constitui para a Igreja um acervo de símbolos que chega a lhe causar certa repulsa.

Um sistema de sanções, promessas de castigos perpétuos, tudo acompanhado de procedimentos institucionalizados tendentes a obter do fiel o comportamento desejado, em certa medida repugna a Igreja, que pretende ensinar um código de condutas com um método brando e suave, consentâneo com a pretensa doçura da maioria de seus cânones. Mas, de toda forma, ela não abre mão da sanção como último recurso para o controle do comportamento do fiel, nisso se apresentando de forma diferente de outros processos educativos. De outro lado, observa-se que a institucionalização de um mecanismo de sanções correspondentes às infrações, tudo permeado por um procedimento de purificação do infrator arrependido, remete à idéia do castigo como elemento purificador, que faz sacro o espírito do delinqüente, mesmo que seu corpo físico pereça. Vale notar que a ordem normativa do direito penal, mais tarde, irá se apropriar dessa mesma estrutura teórica, legitimando a instituição da pena por intermédio da idéia de que ela é uma medida purificadora.

Mas há necessidade de um outro olhar sobre a questão religiosa, que a observe de fora e que se ocupe do conteúdo de seu acervo ideológico, ao invés de seus mecanismos internos, que proponha uma visão do universo em contraponto à visão do átomo. Assim, tomada, por exemplo, a ótica do materialismo histórico, cujo desenvolvimento científico é devido ao trabalho intelectual e político de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels

(1820-1895), a religião, qualquer que seja, se localiza naquilo que é chamado de superestrutura do universo social. Faz parte do mundo cultural do homem, que é determinado de acordo com as relações de produção, estas sim, formadoras de uma estrutura, em função da qual tudo o mais é construído no campo das relações humanas. Buscando um elemento fundante da história do homem, o marxismo começa perguntando qual é o princípio que governa a vida humana, para em seguida responder que

a primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da natureza [...] Mas, para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, morar, vestir- se e algumas outras coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; e isso mesmo constitui um fato histórico, uma condição fundamental de toda a história que se deve, ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora a hora, simplesmente para manter os homens com vida [...] O segundo ponto a examinar é que uma vez satisfeita a primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento já adquirido com essa satisfação levam a novas necessidades - e essa produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico [...]. (Marx: Engels, 2002: 10, 21-23).

Quer dizer que, como base de tudo o mais, o homem tem necessidade de

viver, em outras palavras, antes de poder começar a fazer ou pensar qualquer coisa. Esta é também a base na qual Marx e Engels declararam estar, em última análise, a causa de toda evolução histórica, e não na mente do homem, nem em sua crescente percepção da verdade absoluta e da justiça [...] (Balinky, 1973:42).

Nessa linha de raciocínio, quer as instituições, como a Igreja, quer a maneira desta se relacionar com os homens, através de suas regras e de sua doutrina – vale dizer, a religião -, constituem um componente das relações humanas que, tanto quanto outros – como a escola, os tribunais, o sistema de valores, os costumes, a filosofia -, manifestações sociais que são, moldam-se e se modificam de acordo com as modificações ocorridas nas relações de produção.

Tome-se, por exemplo, a transição do mundo feudal para o capitalista. Naquele, em que a terra é o principal fator de produção e vige um sistema fechado de trocas, sendo tudo

114 produzido e consumido na própria unidade econômica, sem mercados externos, o governo é monárquico e seu poder legitima-se segundo a teoria do direito divino de investidura dos reis. A religião é organizada nos moldes da igreja medieval, que tem sua teologia própria, a refletir uma determinada e específica visão do mundo. A seguir, com o desenvolvimento de novas forças produtivas, levando a diferentes relações de produção, em que o capital, e não mais a terra, é o grande agente produtor, o processo de troca se alarga, o comércio e as cidades assumem grandes proporções e a burguesia surge como titular do comando dessa nova ordem econômica, rapidamente se altera a superestrutura do universo social, com a monarquia sendo substituída pela democracia burguesa e com a criação do direito moderno, necessário para os contratos.

Assim é que, para a doutrina do materialismo histórico, a filosofia ou as ideias religiosas não foram concebidas por intermédio do raciocínio puro, ou da revelação divina, mas sim por estarem relacionadas com a base econômica predominante em certo momento da história. Segundo o Manifesto do Partido Comunista, assinado por Marx e Engels,

O que demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se modifica à proporção que se modifica a produção material? As ideias dominantes de uma época são sempre as ideias da classe dominante. (1982: 111)

Levado o raciocínio a extremo, as categorias teóricas (e simbólicas) que a religião apresenta, como componentes de seu específico processo educativo – pecado, salvação, penitência, virtude, indulgência, revelação, sacramento, verdade, perdão etc. –, configuram, também elas, o resultado de uma moldagem levada a cabo de conformidade com a específica estrutura de produção da vida material, própria de específicos momentos históricos. Está instalado assim o prisma relativista pelo qual se vê o bem e o mal, o devido e o indevido, o certo e o errado, categorias situadas no núcleo mais central quer da educação ministrada pela religião, quer daquela proporcionada pelo direito.

Por fim, não se retire a legitimidade do marxismo para falar de coisas da religião, por conta do assumido ateísmo dessa doutrina: ela relativiza a religião, especialmente aquela que Marx e Engels viram na prática, mas jamais descarta uma origem transcendente para o mundo. Seu materialismo é muito mais voltado para aquilo que o homem faz. De

resto, em termos de materialismo mesmo, puro e convicto, nada supera a ideologia e a prática do capitalismo.

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CAPÍTULO II

EM NOME DO ESTADO: